EDUCAÇÃO, CIVILIZAÇÃO e BARBÁRIE.

 
 
               A violência é tema recorrente nas conversas de calçadas, imprensa falada/escrita, palestras, conferências. A sensação que temos é que estamos vivendo em um mundo sem lei. Há quem afirme que estamos vivendo um retrocesso. A falta de respeito para com o próximo, a  corrupção presente nas mais variadas instituições, a atitude dogmática diante de alguns conceitos, a recusa em reexaminar as posições conservadoras, a indiferença diante do sofrimento do outro, a incapacidade de identificação com os diferentes, os chamados crimes de ódio, a apologia ao sexo livre cada vez mais freqüente na mídia e a crescente onda de assaltos, são apenas alguns dos sintomas da violência em nosso cotidiano. 
 
               Se olharmos atentamente a história da humanidade vamos perceber que a violência está presente em toda sua caminhada. Não podemos esquecer que a violência é filha ou mãe da barbárie. Concordo com J. F. Mattei quando ele diz que a “história da humanidade é a história da barbárie”. Mesmo se apresentando de formas diferente e, muitas vezes, envolvida por um “objetivo nobre”, a barbárie é um traço marcante em nossa história. Para Edgar Moriin a origem da barbárie pode estar no Homo Ludens, ou seja, no homem do jogo, do desperdício. É neste homem etnocêntrico, capaz de produzir delírios de grandeza, ódio, desprezo e indiferença ao sofrimento alheio que vamos encontrar as raízes dos jogos cruéis, que buscam o poder político e econômico. No egocentrismo e na frieza dos cálculos puros em detrimento das realidades afetivas estão as características que potencializam a barbárie.
 
               Fizeram (e ainda fazem) guerra por alimento, matéria-prima, produtos de subsistência. Mas, não podemos negar que foi em nome dos ideais de liberdade e justiça que a barbárie massacrou, escravizou, violou e destruiu sistematicamente muitas civilizações. No processo de civilização há uma barbárie que se formaliza; se legitima em nome do poder colonizador. Nesse contexto, a barbárie não parece ser apenas um ingrediente das grandes civilizações, mas parte integrante da mesma. A civilização produz barbárie. Isso, embora pareça um paradoxo, é observado em cada traço da história da civilização. Os colonizadores europeus sempre impuseram seu “modelo” de sociedade pela força; a civilização romana, uma das mais violentas da história, construiu seu império de forma violenta e bárbara. O imperialismo americano é um dos exemplos mais recentes do uso da barbárie como elemento “civilizador”. Lá, na terra da “liberdade”, há muito sangue derramado em nome do progresso. 
 
               A Barbárie religiosa, intensificada com a imposição do cristianismo como religião oficial, foi uma das mais sangrentas de nossa historia. Em nome de Deus muitos homens foram sacrificados, em busca de vida eterna vidas terrenas foram ceifadas e muito se condenou em nome da salvação. A intolerância religiosa é uma das formas mais cruéis de barbárie. A intolerância racial, aliada a religiosa, ainda hoje é responsável por grandes barbáries, embora seja o desejo de domínio e posse de nações, ditas subdesenvolvidas, o grande agente provocador de barbáries na contemporaneidade. 
 
               Diante do crescente risco de “barbarização” dos valores da civilização, precisamos estar atentos para a preservação do estado de direito, o respeito e o convívio com as diferenças humanas, a livre garantia do debate de idéias, a difusão do conhecimento científico e a sustentação do ensino laico, aliás, é no ensino que vamos encontrar um forte aliado para combater a barbárie.  A educação, mais especificamente, o ‘ensino’[e não a ‘doutrinação’ baseada em livros religiosos ou laicos tomados como dogma], quando investe na manutenção das conquistas humanas fundadas no conhecimento dialógico, pode contribuir para evitar/prevenir a metástase da barbárie no todo da sociedade. Porém, o conhecimento científico, a idéia de progresso, e a razão prática,sozinhos não garantem que a civilização se sustente. É preciso olhar ao nosso redor. 

               A realidade que nos cerca expressa a barbárie e está prenhe de fatores que apontam para o risco da regressão. O mundo globalizado impele as pessoas em direção ao xenofobismo, a intolerância diante do outro, a idéia de que há uma inevitabilidade histórica, ao consumismo e ao individualismo desenfreado. Naturalizam-se as mazelas e misérias da condição humana, em nome de um determinismo amparado num viés tecnicista e nas necessidades da concorrência internacional, isto é, da predominância do mercado. As possibilidades históricas são suprimidas pelo discurso único. 

 
               Os espaços onde deveriam frutificar a reflexão crítica servem, via de regra, de palco para disputas de poder, pedantismo acadêmico e, muitas vezes, não passa de uma grande fogueira de vaidades. A crítica cedeu lugar ao ceticismo e, em alguns casos, ao servilismo. Muitos intelectuais, aliados a grupos de comando, salvo honrosas exceções, acataram o discurso vazio, fatalista. Os problemas sociais que afligem enormes parcelas da humanidade, excluídas da mais elementar cidadania, parecem inevitáveis. A desnutrição cresce num mundo onde a tecnologia já tornou possível a superação da fome. 

               As guerras declaradas, as guerras civis não-declaradas nos centros urbanos e as políticas governamentais funcionam como a foice da morte a ceifar a vida de milhares de crianças e jovens precocemente enviados para o além, cujo maior pecado foi, simplesmente, ter nascido sem poder aquisitivo para consumir. Estas pessoas, no Brasil, na África, na Índia e mesmo nos países desenvolvidos, não contam como humanos, são estatísticas, apenas. A condição humana continua a ser aviltada em situações que antes horrorizavam os bem-pensantes membros da classe média intelectualizada. 

 
               Em nome da eficiência quantificamos tudo. Dessa forma “coisificamos” as relações humanas. A partir do momento que não nos indignamos diante da realidade social, que aceitamos como naturais determinados fenômenos sociais, acabamos por admitir que parcelas de seres humanos são coisas descartáveis. Ao perdermos a noção do humano, o que Adorno denomina de “consciência coisificada”, nos tornamos coisa e tratamos os outros como coisas. 

               Longe de pura abstração filosófica, este fenômeno está presente em nosso cotidiano nas questões que nos parecem mais banais: a delinqüência juvenil; os assassinatos motivados por roubos de pequenas quantias ou mesmo por uma discussão com o motorista de ônibus; o domínio do tráfico e quadrilhas semelhantes (onde o fator humano só conta como consumidor de drogas e meio de enriquecimento). Numa realidade onde a vida humana vale menos do que um objeto material qualquer a tendência é a crescente banalização do mal. Perdemos os limites. 

 
               Como educadores, temos responsabilidade social diante de tudo isso. Então, ao invés de nos perdemos em discussões intermináveis e estéreis, de nos afogarmos em nossa própria vaidade, de gastarmos nosso precioso tempo na mesquinhez do emaranhado burocrático e na luta pelo poder de controlar os meios de prejudicar o outro, de nos desgastarmos em picuinhas e academicismos eduquemos no sentido da autorreflexão crítica e nos dediquemos à tarefa de esclarecer, para que se produza um clima intelectual, cultural e social que não legitime a barbárie. O primeiro passo é repensarmos nossas práticas como educadores e nos indignarmos com tudo que nos aproxima da violência. 
 
               Em hipótese alguma podemos esquecer que a única garantia de humanidade ainda se sustenta numa certa confiança na razão, na ética e no diálogo entre os diferentes. Um único ato de barbárie faz a humanidade retroceder no que considera avanço da civilização. A educação, o ensino e as artes constituem, quase que exclusivamente, formas de impedimento a evolução da barbárie – que prova, todos os dias, ser constitutiva da humanidade. “Um animal ou um Deus não pode cair em barbárie, pois o animal, puro instinto, ou o deus, pura razão, para empregar a linguagem de Pascal, estão abaixo ou acima do humano” (Mattei, 2002 : 58). 

               Só o homem pode cometer atos de barbárie, porque como é fruto da cisão entre razão e pulsão-instinto, do entendimento e da paixão, a pulsão não educada ou não civilizada suficientemente, pode levar um sujeito ou grupo humano aos desatinos sem volta. 
O grande perigo da barbárie hoje é ter pretensões apocalípticas de destruição da humanidade e do próprio planeta. Entretanto, há otimistas – estou entre eles - que entendem que nossa dimensão demasiadamente humana pode ser educada e transformada em desejo canalizado em prol da cultura, da linguagem dialógica e da construção de uma verdadeira civilização dotada, sobretudo, de  sabedoria.
 
               Nossa esperança se sustenta na educação e na cultura – e não na repressão policial, na guerra ou no terror. Inicialmente caberia a educação e a cultura um papel fundamental para evitar a metástase da barbárie no mundo. Cabe a escola, a universidade e a mídia uma importante função: ser agentes da civilização. O professor é um agente que ajuda a sustentar a ou transformar o mundo em sua volta. Educadores e intelectuais acadêmicos precisam se voltar para o mundo real, quebrar as correntes que os mantêm presos as veleidades da ambição acadêmica, as vaidades dos títulos, usados como prova de pretensa superioridade intelectual. É preciso fugir da mesquinhez que alimenta o ego com o quinhão da arrogância e fetichiza a técnica e o conhecimento sem atentar para o fato de que o domínio da técnica sem o uso da razão humanizada pode significar a supressão da humanidade.
 
                Em certo sentido, toda a diversidade, complexidade e profundidade do tema está nos conduzindo à banalização da vida. Neste contexto vamos aceitando tudo, perdendo a sensibilidade, achando tudo natural, perdendo o calor humano e nos fechando num individualismo estéril. Vamos deixando morrer pouco a pouco a chama de humanidade que ainda crepita em nós. Precisamos resgatar nossos valores, usar a política educacional como um ato de criação, justiça, um caminho para solidariedade. Um espaço para salvar vidas, devolver esperança a quantos a tristeza, a solidão, o abandono, a miséria, a desilusão enfraqueceram o espírito, a recuperar o gosto pela participação comunitária, pela construção de um meio social sadio e libertador, enfim, que todos juntos, façamos a escolha pela vida sem violência.
 
Ângela M Rodrigues O P Gurgel
Enviado por Ângela M Rodrigues O P Gurgel em 18/09/2010
Reeditado em 30/12/2010
Código do texto: T2506439
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