A Humanidade em Hamlet.

Quatrocentos anos depois de escrita a tragédia do príncipe da Dinamarca mantém a mística de se renovar a cada nova encenação ou leitura, seja pela complexidade do seu protagonista e mesmo pelo caráter universal dos conflitos que perpassam o universo habilmente conformado pela astúcia e genialidade de William Shakespeare.

Esta síntese tem a finalidade de realizar notas sobre as origens deste texto universal, juntando algumas considerações sobre o personagem central e a complexidade fascinante impressa por Shakespeare ao dotar seu personagem de elementos notadamente subjetivos nos contornos do personagem.

Dentro do objeto de atenção será possível estabelecer uma relação de contigüidade entre o autor e a personagem situando as tensões que contribuíram para a maturidade de Shakespeare e como estes eventos influenciam a escrita, deixando marcas de Hamlet na composição da personagem e realizando uma dinâmica particular nas descrições realizadas no texto.

A tarefa de recompor a gênese de um dos mais intrigantes personagens da dramaturgia inglesa e relacionar sua criação ao mito que o sucedeu, obriga a uma observação do ambiente Ur-Hamlet, nas possíveis intertextualidades, nas obras correlatas e nas tramas que de alguma forma recordam os elementos que a tragédia narrada por Shakespeare contém. Não há, contudo, objetivo de esgotar, mediante análise, a argumentação que tal matéria exige.

É de conhecimento corrente a existência de um Hamlet anterior a Shakespeare, mas a obra não conseguiu chegar aos nossos dias e não há consenso sobre a sua autoria. Entretanto, a maioria dos estudiosos dá o crédito autoral a Thomas Kyd, autor de A Tragédia Espanhola, que consolidaria o modelo tradicional para as chamadas ‘peça de vingança’. Porém, Peter Alexander encontra melhor explicação ao cogitar a autoria deste Ur-Hamlet ao próprio Shakespeare, possivelmente antes de 1591, no início de sua carreira de dramaturgo; apesar da oposição de grande parte da comunidade acadêmica.

A hipótese de Peter Alexander sugere um período de composição de pouco mais de uma década. Considerando a sua versão original, a peça é demasiado longa, obrigando a cortes como forma de viabilizar encenações dentro da conformação da época. Há consenso, porém, na desproporção entre o Príncipe e a peça. Hamlet apresenta consciência e complexidade que avança além da representação ocidental de uma peça sobre vingança. Então é possível inferir que Hamlet é, de fato, mais que uma peça de vingança.

O caráter da representação na complexidade do protagonismo de Hamlet confere a peça uma situação especial dentre as obras fundamentais do cânone ocidental, alinha-se sem prejuízo com Divina Comédia, Paraíso Perdido, Fausto, Ulisses ou Em Busca do Tempo Perdido, conferindo forma ao que sucederia na alta literatura, pela arquitetura narrativa, pela gênese dos personagens influenciando desta forma a nossa visão do conceito de “humano”.

A Tragédia situa a vingança como elemento significativo em toda narrativa, mas o que melhor descreve a trama desenvolvida por Shakespeare é a complexidade que dá forma as angústias e ações do personagem, desde o amor e lealdade ao pai, a amizade fraterna por Horácio e a capacidade de renuncia diante de Ophélia, tudo excede a vingança que serve de linha mais evidente na condução do enredo, mas não conseguiria sustentar toda a energia que desprende do personagem e se acumula em toda representação.

O personagem é demasiado intenso e a encenação não se encerra com o cair do pano; Hamlet extrapola diante do nosso ideal de catarse, ele não é a idealização ou representação do humano, ele alterna em suas escolhas e ações com a mesma intensidade e insegurança por onde oscila a natureza humana.

A literatura universal não nos contempla com tantos modelos de personagens intensos e difusos, geralmente as alegorias limitam-se as dicotomias de bem e mal, certo e errado, numa linearidade que limita a reação uniforme do leitor.

A complexidade de Hamlet traz a tona contornos mais próximos da natureza humana que as representações ordinárias para o desenvolvimento dos enredos, esta complexidade e difusão dão ao personagem a estatura que cristaliza a sua presença em todos os fatos que costuram a tragédia utilizada como alegoria para nos apresentar à humanidade caustica e controversa do personagem.

Seria interessante considerar as escolhas de Shakespeare para avaliar algumas concepções marcantes na dramaturgia do autor. Observando os estereótipos de situação mais evidente, os vilões Iago, Edmundo e Macbeth, não são capazes de dar conta do sarcasmo e da ironia que brilha em Hamlet, nenhum personagem é capaz de confrontar com êxito o carisma que o Príncipe dispõe, elevando a sua condição para alguns níveis acima do necessário para a dramaticidade exigida para a peça.

Caberia ainda comparar com os protagonistas de outras peças e seus contextos, para aferir a densidade e proporção atribuídas pelo seu criador, e desta forma obter algumas evidencias que permitam estabelecer relações mais claras quanto à gênese. Na dramaturgia de Shakespeare, apenas Sir John Falstaff de Henrique V apresenta a composição complexa encontrada em Hamlet, ainda assim o seu caráter espirituoso dilui as marcas de maior tensão que é perceptível no personagem. Apenas como fonte para comparação Dickens nos fornece Mr. Pickwick, Cervantes nos apresenta Dom Quixote, porém estes protagonistas estão inexoravelmente presos ao enredo e suas características estão na ordenação do enredo, como realização autoral de um demiurgo.

Dentre os grandes personagens apresentados, apenas Hamlet sustenta-se além do texto, tem em suas escolhas vias menos complexas a que o publico é tão docilmente induzido a percorrer. A atuação contida pela forma que o texto é oferecido ao personagem oferece ao publico dois Hamlet, o primeiro é o Príncipe das ações que realiza escolhas difíceis e surpreendentes, capaz de grandes sacrifícios e dividido pelos sentimentos antagônicos que retardam as suas reações enquanto nos apresenta o outro Hamlet. Lúcido, isenta-se de inquirições morais, conduzindo um ardiloso plano de vingança cujo limite não se oferece gratuitamente para os espectadores.

Não há, porém, como instintos mais aguçados e espíritos mais ferinos deixar de inquirir alguma influencia dos contornos da representação de O Príncipe, de Maquiavel na gênese de Hamlet, os atos e, talvez, suas conseqüências poderiam conduzir a esta possibilidade, no entanto, a contradição apresentada nos solilóquios inviabiliza esta hipótese. O príncipe de Maquiavel é uma idealização justificada pela responsabilidade geral que obriga a pesar suas opções e os benefícios que possam proporcionar a curto e longo prazo, enquanto Hamlet é conduzido exclusivamente por desejos e considerações pessoais, alheio as conseqüências dos seus atos na corte de Elsinore.

As transições mais tensas da representação são os solilóquios que demarcam as áreas de sombra do interior da personagem, onde a duvida sobre a sua origem, a sublimação edipiana e a confrontação com sua própria gênese realizam as variações que justificarão os atos do Príncipe. Esta natureza conturbada, ressentida e culpada deixará exposta toda à fragilidade que a vingança do pai reclama estabelecendo a circunstância única para que Hamlet tome a condução dos atos em Elsinore.

A estrutura interna da personagem pode suscitar variadas interpretações, todas derivadas das leituras possíveis que a complexidade do príncipe permite inferir.

Para Goethe: “Hamlet mata Polônio, por exemplo, (Os anos de aprendizagem de Wilhelm Meister, livro IV, cap. 3 e 13), registrou que a verdadeira tragédia de Hamlet, ou que pelo menos mais o tocou, a ele Goethe, deu-se pela súbita ruína que acometeu aquele jovem na sua até então vida segura e de aparente bom convívio familiar. Num repente, com a súbita aparição do espectro do pai, deu-se um terremoto na vida dele. Sofreu desmoronamento total da confiança na ordem ética que era representada pelo elo que o ligava aos pais, que amava e honrava, e que se rompera de uma maneira tão horrenda ao descobrir a sordidez que envolvia a morte do pai e o repentino casamento da sua mãe, a rainha Gertrudes.

Era Hamlet, para ele, um jovem terno, sensível, que procurava o mais elevado caminho ideal. Modesto, mas com insuficiente força interior, vê-se num repente diante da necessidade de: "uma grande ação" que lhe "é imposta a uma alma que não está em condições de realizá-la.”... "um ser belo (...) que sucumbe sob a carga que não pode carregar sem a jogar para longe de si." Tornou-se uma espécie de paradigma involuntário do intelectual, pois quase sempre suas ações eram paralisadas pela exuberante atividade do seu pensamento.”

Para Freud: “A "modernização" psicológica de Hamlet deu-se pela abordagem que Freud fez no seu A Interpretação dos Sonhos, de 1900, quando o comparou à figura de Édipo, o trágico rei de Tebas, personagem de Sófocles. Observou, porém, Freud que a fantasia infantil de Hamlet ficou temporariamente reprimida, só aflorando numa situação similar à da neurose, bem mais tarde.

Para Freud, Hamlet era um histérico que aparentava ter, como demonstram suas atitudes para com Ofélia, repulsa ao sexo.

Não o vê, porém como um incapaz, concentrado apenas a executar vinganças imaginárias. Afinal ele livra-se, com uma maquinação digna de um discípulo de Maquiavel (obra que Shakespeare conhecia), dos cortesãos Guilderstern e Rosencrantz, que estavam ao serviço do rei Cláudio, como também foi capaz, como se viu, de, num gesto fulminante, trespassar com seu florete a Polônio (que o espionava por detrás da cortina no quarto da rainha Gertrudes). Freud observa que a inação de Hamlet devia-se a que o seu tio Cláudio fizera o que o jovem príncipe (ainda que em seus instantes mais sombrios e reservados momentos oníricos), desejava ter feito: matar o próprio pai! Mesmo reconhecendo que a criatividade de um poeta é formada por diversos motivos, Freud enfatiza que (como não podia deixar de ser para o fundador da ciência da subjetividade), ao escrever Hamlet, o fez sob o impacto da morte do seu pai, John, o que explicaria a presença de um espectro paterno no primeiro ato da peça, e lembra também que um dos filhos dele chamava-se Hamnet, concluindo que "a vida anímica do personagem não era outra senão a do próprio Shakespeare".

Dessa maneira a mais longa peça de Shakespeare seria aquela que carregava as maiores evidências da subjetividade do autor, a que trazia as digitais do gênio por assim dizer.”

A condução da estrutura formal de Hamlet nos leva a ponderar sobre os aspectos complexos da personagem e os efeitos conseqüentes da representação. Pouco mais de setenta por cento do texto é composto em versos brancos, determinando desta forma o ritmo proposto para a interpretação de cada fala. O restante são as marcas realizadas em prosa para a descrição da situação e composição cênica da atmosfera exigida.

O ritmo imposto pelos elementos de versificação vai imprimir formalidade declamatória em oposição ao ritmo retórico de algumas encenações da época, estabelecendo mais um elemento dinâmico na representação, desde a dinâmica dos fatos a evolução conseqüente das ações do personagem tudo segue um ritmo que evolui para o desfecho trágico que a peça nos reserva.

Considerando o tempo consumido desde a primeira aparição de Ur-Hamlet até a versão datada de 1600, é possível presumir que as experiências pessoais de Shakespeare de alguma forma influíram na conformação do personagem, seja pela intensidade das suas ações, seja pela condução alheia, passiva logo que a encenação inicia.

Teóricos importantes chegam a atribuir a Hamlet co-autoria na peça, tamanha presença que a personagem impõe ao universo criado em torno de si. As alterações do estado emocional de Hamlet são tão significativas que T.S. Eliot chega a considerar as conseqüências desproporcionais a melancolia que predomina na descrição inicial do estado do personagem e se permite considerar, de um ponto de vista particular, que a peça representa um fracasso artístico por conta da catarse violenta no ato final que Eliot considerava contraditória diante da melancolia inicial.

Quanto há, de fato, de Shakespeare em Hamlet, eis uma questão que se apresenta desde a complexa personalidade ao comportamento deliberadamente errático, passando por uma aguçada capacidade intelectual; havemos de anotar muitas semelhanças entre criador e criatura.

Não é possível omitir a brilhante encenação conduzida por Hamlet como estratagema para desmascarar Claudius, o teatro dentro do teatro, num franco exercício de metalinguagem que ainda hoje conquista e arrebata platéias. Ainda dentro da estrutura narrativa é possível perceber a condução ambígua entre Hamlet e Shakespeare, alternando-se, ora são os fatos que produzem conseqüências nas ações de Hamlet, para em seguida as intervenções de Hamlet provocar as conseqüências que vão construindo a tensão em torno dos personagens.

A encenação de A ratoeira coloca Claudius numa situação defensiva e o compele a promover a traição dos amigos de Hamlet, que por sua vez escapa do atentado provocando a morte dos conspiradores, toda esta tensão acumulada atinge o limite no ultimo ato e Hamlet mostra-se implacável em sua vingança, que irá aniquilar toda a corte de Elsinore, enquanto restabelece a sua condição e consuma a sua vingança.

A força desta tragédia está no equilíbrio sutil entre as duas narrativas, a primeira objetiva e factual está na tessitura dos fatos na corte de Elsinore, em suas conspirações, traições e assassinatos que ganham unidade por conta do desejo de vingança evocado pela aparição do rei morto.

A segunda narrativa é subjetiva e claustrofóbica e ocorre dentro das sombras que dão forma aos sentimentos contraditórios que Hamlet reprime em sua melancolia, em seu luto permanente e que começa a ganhar rumos a partir da morte de Polônio.

A parte subjetiva não está desenvolvida no mesmo nível da narrativa dos fatos, o tempo cronológico se rompe num fluxo que é de fácil verificação, mas o efeito conseguido por conta das conseqüências das ações está bastante claro como elemento na dinâmica narrativa empregada pelo autor, esta superposição da composição do personagem atuando sobre a seqüência das ações permite esta percepção da modificação de estado e motivação de Hamlet. É possível conjecturar que há uma evolução, quase maturidade entre o Hamlet inicial e o Hamlet do quinto ato.

Há na peça sete solilóquios, momentos exclusivamente subjetivos para dar a conformidade necessária para a condução das ações de Hamlet, nestes momentos, prevalecem à visão particular, as emoções contraditórias e as duvidas que tornam Hamlet juiz e carrasco no seu plano de vingança.

Há as ausências cênicas do personagem utilizadas como preâmbulo para a tensão crescente, a viagem a Inglaterra e a morte dos amigos, mas mesmo longe dos olhos do público, haverá sempre um dos dois Hamlet dentro da encenação. Apenas no ato final se dará a fusão plena de ato e conseqüência e ainda que tenha sido desmascarado anteriormente, quando da encenação de A ratoeira, Hamlet enfrenta a catarse de seu personagem com intensidade e entrega absoluta, se abstém dos cuidados mundanos, ignora qualquer conselho de prudência e preocupa-se exclusivamente em manter a dignidade de sua memória.

A presença de Shakespeare pode ainda ser captada nas máximas que possibilitam dialogar com o seu público:

“A Dinamarca é uma prisão.”

“Palavras, Palavras, Palavras.”

A sentença final, “O resto é silencio.”

Há uma trajetória complexa desde o século XII segundo algumas fontes, mas para compor e conduzir uma peça da magnitude é necessário uma condução autoral impecável que supere os maneirismos, avançando sobre os modelos de representação do humano, Shakespeare inventa o teatro do mundo ao conformar, um personagem tão ambíguo quanto as emoções que nos governa, tão humano que seja capaz de submeter-se ao mal, fascinante por trazer a luz uma porção do que nos difere e qualifica e real por suas dúvidas, fragilidade e ao final por sua aniquilação.

A contradição que permeia Hamlet é tão profunda que ao fugir do estereótipo das idealizações do homem contemporâneo Shakespeare idealizou o herói trágico fundamental, projetando uma poderosa sombra sobre toda dramaturgia e sobre toda literatura.

Hamlet é uma peça que sempre desafia e empolga. Os caminhos para abordá-la são inúmeros: é possível entendê-la como um drama político ou uma lição a respeito das relações entre os sexos, ou ainda uma análise meramente psicológica de alguns personagens exemplarmente construídos. Contudo, é necessário lembrar sempre que essas análises parciais são incapazes de compreender a peça em toda a sua profundidade. Assim, a melhor abordagem de Hamlet, e de todas grandes obras literárias, será habitualmente a filosófica e, mais ainda, a teológica, que engloba todos os aspectos da vida humana.

A poesia em Hamlet não se esgota, mesmo diante das imagens dramáticas do quinto ato, fica evidente a continuidade da presença do herói, a morte em Hamlet é transcendência, uma alteração que restaura e atesta as ações e reflexões do personagem, ainda quando abandona a sala de espetáculos ou encerra-se a leitura é Hamlet quem conduz a cena, “O resto é silencio.”

O caráter universal de Hamlet tornou esta representação universal, os aspectos inerentes aos valores morais, as respostas do instinto e aspectos reprimidos aproxima o príncipe da humanidade em geral. Shakespeare inaugura em Hamlet a representação complexa e difusa dos aspectos humanos, a derrocada moral da corte não interfere na redenção elaborada para Hamlet e nos coloca humanos, subordinados as representações admitidas pela nossa consciência.

Há na forma de apresentação do texto uma série de elementos inerentes aos recursos empregados para a confecção do texto, desde os cuidados com a versificação, até o percentual de narração prosaica, mas são pormenores que servem para acrescentar atributos neste poema único, que desvenda, ainda que de forma parcial, as áreas de sombra que toda a humanidade trás em si.

Bibliografia

Bloom, Harold - Hamlet – Poema Ilimitado (Editora Objetiva, 2004).

Schilling, Voltaire – Interpretando Hamlet (Artigo em http://educaterra.terra.com.br/voltaire/artigos/hamlet.htm)