Sobre a Morte

Falar sobre o que se chama morte é um tanto complexo, por nos faltar o conhecimento devido, pois desejamos obter seu significado e quando conseguimos deixamos de existir, ou seja, ela é quando deixamos de ser.

Começo expondo Montaigne:

"Pode qualquer de nós, por uso e por experiência, fortificar-se contra as dores, a vergonha, a indigência e outros que tais acidentes; mas, quanto à morte, não a podemos experimentar mais que uma vez: somos todos nós aprendizes, quando lá chegamos.

Acharam-se alguns homens na antiguidade, tão excelentes ecônomos do próprio tempo, que tentaram até na morte, tomar-lhe o gôsto e saboreá-la, entensando o espírito para ver como era feita essa passagem; mas nenhum dêles voltou para nos contar suas novidades."(MONTAIGNE,1961: 250 e 251)

A morte é de um hermetismo inviolável, desde tempos remotos, que o mais que se obteve foram especulações ou divagações não muito palpáveis a respeito do tema, mesmo no que se refere a religiões, como as espíritas por exemplo, ainda apresentam-se argumentos um tanto quanto "vagos", talvez aos vivos caiba apenas saber da vida, enquanto a morte esteja em outros domínios. O objetivo não é questionar de forma ácida as doutrinas religiosas, mas buscar alguma logicidade em uma argumentação que versa sobre um tema tão desprovido de comprovação que vai além da finitude percebida.

E sigo com Montaigne:

"Se vives penando, a culpa é da tua covardia: para morrer só te falta querer."(MONTAIGNE,1961: 232)

Parece-me que a morte é aquilo que se tem direito de fato, pois somos concebidos e lançados ao mundo sem a possibilidade de impedir nossa existência, embora existam teorias, como as kardecistas, que salientam o aspecto do espírito escolher a sua condição de nascimento, embora não queira neste breve ensaio entrar em questões religiosas, mas não é possível deixar de mencionar o mínimo.

Realmente, Montaigne expõe um fato interessante, a todo instante podemos utilizar nosso direito de morte e não o fazemos, me recordo inclusive de Sartre mencionando a responsabilidade também dos judeus em relação ao holocausto, pois poderiam ter ido contra seus algozes, mesmo retirando a própria vida para não subjugar-se, entretanto, não o fizeram, o que os tornaria de certa forma coniventes a condição imposta.

Desde o dia do nosso nascimento - há fisiologistas que dizem que inclusive antes disso - lutamos contra esse direito de morte, pois procuramos resistir e sobreviver, talvez pela condição natural de preservação e perpetuação da espécie.

Assim:

"ensinar a morrer é ensinar a viver."(MONTAIGNE,1961: 36)

Eis a arte que desde a gênese da Filosofia se professa, pois sabendo de nossa meta-morte, devemos não aprender a morrer, pois sabemos que a morte nos é desconhecida, mas sim viver com os ensinamentos da idéia de morte, ou seja, a consciência da morte e consequentemente a responsabilidade sobre sua vida. A vida é um direito público, pois precisa de no mínimo dois para concebê-la, mesmo utilizando de técnicas modernas de inseminação, pois ainda precisaria de uma contribuição de um macho e uma fêmea, inclusive não podendo a vida ser contida, apenas seu nascimento, a não ser com sua extinção, o que a faria deixar de ser vida e tornar-se morte. Portanto, a vida não nos pertence, somos concebidos sem consentimento prévio e mesmo quando desejamos gerá-la, ainda assim precisamos compartilhar.

Já a morte é um direito individual, pois você pode executar só, inclusive contra você mesmo. Ainda podendo ser um atentado a propriedade privada, quando resolve extinguir a vida alheia, impondo seu direito de morte sobre a vida de outro, inclusive parece desprovida de sentido lógico a frase "direito a vida", nosso verdadeiro direito se refere a morte.

E mais:

"É incerto onde a morte nos espera: esperemo-la em tôda parte. A premeditação da morte é premeditação da liberdade: quem sabe morrer não sabe ser escravo. Não existe o mal na vida para o que compreendeu bem que privar-se da vida não é um mal. O saber morrer liberta-nos de tôda a sujeição e de todo o constrangimento."(MONTAIGNE,1961: 33)

A premeditação da morte é uma forma de agirmos conforme nossa vontade e não sendo exposto ao acaso de um acontecimento, como é o caso da vida. O que legitima o suicídio, por mais que contrarie a moralização ocidental acerca desse melindroso tema.

E Montaigne prossegue:

"Diz Cícero que filosofar nada mais é que preparar-se para a morte. Assim é, porquanto, pelo estudo e pela contemplação, nossa alma se retira para fora de nós, ocupando-se apartada do corpo, o que, de certo modo, é aprendizagem e semelhança da morte; e, também, porque tôda a sapiência e dicurso do mundo se resumem neste ponto, de nos ensinar a não ter mêdo de morrer."(MONTAIGNE,1961: 28)

Embora saibamos que os estudos não são algo extra-corpóreo, como se pensava - ou como muitos ainda pensam -, mas sim relacionados a funcionalidade do nosso cérebro, que também faz parte de nosso corpo físico, mas de fato, projetamo-nos em uma abstração para criar e nesse aspecto realmente assemelha-se a morte, pois assim como desconhecemos a abstração, mas a utilizamos como parâmetro ou talvez um não-parâmetro, o morrer também nos é desconhecido, mas o concebemos para darmos o sentido à vida. Mais uma vez, pensando em Sartre na obra "O Ser e o Nada", é a falta de sentido que motiva o homem, ou seja, o sentido do não-ser, tornando-os captadores de um sentido-presente e de um sentido-ilusório, pois criamos o sentido daquilo que pensamos ser, embora o sentido do devir seja outro, o ponto de ligação é o próprio sentido.

Talvez Tocqueville possa esclarecer:

"O homem é o único dentre todos os seres a mostrar um desgosto natural pela existência e um imenso desejo de existir: ele despreza a vida e teme o nada."(TOCQUEVILLE,1998: 348)

E Montaigne toca em outro ponto:

"E santamente o disse Santo Agostinho: 'A ordem dos funerais, o arranjo da sepultura, a pompa das exéquias, são mais para a consolação dos vivos que para o sossêgo dos mortos."(MONTAIGNE,1961: 11)

O que fazemos em vida tendo como referência a morte é de utilidade aos vivos e para a vida, pois o que se refere a morte nós desconhecemos. Todos os ritos são de caráter físico, o meta-físico torna-se o sentido-ilusório que promove a ritualística.

Sartre também determina:

"O homem está condenado a ser livre." (SARTRE,2006)

Sua liberdade é poder morrer, pois escolhemos quando temos consciência e podemos alterar o "jogo da vida", fazendo acontecer.

Que não me entendam como um apologista ao suicídio, sou na verdade apologista da vida e essa tem como fim a morte, portanto, sou um homem que observa o fim, não ignorando os meios. A morte é o fim que justifica o meio chamado vida (alá vulgata Mmaquiavelista), entretanto, a vida é um fim-em-si, pois se consolida como meio, sabendo também que o fim também precisa ser justificado por um início, portanto, o viver é o início do morrer, ou seja, a partir do momento que vive já começa a morrer, somos cadáveres a priori, como setenciou Fernando Pessoa.

E por fim, uma reflexão sobre o nosso ato de agir, conforme a responsabilidade que temos em relação a liberdade sobre o direito de morte:

"O essencial não é aquilo que se fez do Homem, mas aquilo que ele fez do que fizeram dele." (SARTRE apud SALDANHA;MACHADO,1980: 14)

Referências Bibliográficas:

MONTAIGNE. Seleta dos Ensaios de Montaigne. tradução: J. M. De Toledo Malta. prefácio de Leo Vaz. Tomo I. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1961. (Coleção Rubáiyát)

TOCQUEVILLE, Alexis de. A Democracia na América: Livro I – leis e costumes de certas leis e costumes políticos que foram naturalmente sugeridos aos americanos por seu estado social democrático. tradução: Eduardo Brandão. prefácio, bibliografia e cronologia: François Furet. São Paulo: Martins Fontes, 1998. (Paidéia)

SARTRE, Jean Paul. A Náusea. tradução: Rita Braga. 1. ed. especial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006. (40 anos, 40 livros)

SALDANHA, Jô; MACHADO, J. A. Pinheiro. O Testamento de Sartre. tradução: Régis Debray e J. A. Pinheiro Machado. Entrevista: Agência O Estado. introdução: Agência O Estado. 15 Anos de Opiniões J. A. Pinheiro Machado. Porto Alegre, RS: L&PM Editores Ltda., 1980. (Série Oitenta Especial vol. I )