“Leitor, se não tens desprezo
De vir descer às senzalas,
Trocar tapetes e salas
Por um alcouce cruel,
Vem comigo, mas… cuidado…
Que o teu vestido bordado
Não fique no chão manchado,
No chão do imundo bordel.”
            Castro Alves (no poema “Tragédia no Lar")

Estamos todos, indivíduos, sociedades e governos, a caminho de mudanças conscienciais no que se refere às diferenças étnicas, culturais, religiosas e sexuais. Mas, as atitudes discriminatórias oriundas de iniciativas individuais e de grupos retrógrados de todas as esferas de poder ainda são uma chaga muito viva dentro de todas as formações sociais, econômicas e políticas. E hoje envolvem questões que vão além de fatores históricos e ambientais. Têm a ver também com o jogo de interesses do capitalismo apocalíptico que vivemos hodiernamente e que há de ter um fim daqui a algum tempo.
A seguir, vamos tecer um rosário de argumentos que tentam jatear um pouco de luz a mais sobre essa questão, especificamente sobre a questão negra, ainda que seja apenas uma luz de fósforo em relação aos holofotes elucidativos de autores mais gabaritados e especializados. Tudo que lereis está mais para uma prosa ficcional, amparada principalmente em meras hipóteses e imaginações, do que para um texto científico, que exige pesquisa, precisão de dados e uma linguagem acadêmica.
 

RAÇAS HUMANAS E A IDEOLOGIA DA ESCRAVIZAÇÃO NEGRA


Creio ser inegável que as formações sociais não evoluem ao mesmo tempo. Umas estão mais adiantadas do que outras do ponto de vista filosófico, científico, espiritual, cultural e artístico. Mas a consciência disso nunca foi a mesma, inclusive pelas formações sociais mais desenvolvidas de todos os continentes, do ponto de vista intelectual.
Efetivamente, houve épocas, inclusive até o século XX, em que, do ponto de vista de comportamentos, muitos grupos humanos pouco se diferenciavam dos animais selvagens, praticando até o canibalismo para sobreviver, para premiar vitórias bélicas ou para atender a rituais religiosos zoologizados.
Muitas tribos americanas, africanas e australianas, por exemplo, tinham práticas extremamente primitivas, rudes e bestiais. Tais costumes faziam ser considerados seus indivíduos como seres não humanos, próximos dos animais. Era a ótica reinante entre os intelectuais, pensadores e filósofos europeus e árabes, até o século XIX. [Os brancos que eram vistos nas proximidades das tribos negro-africanas eram particularmente alvo preferencial das flechas. Por quê? Porque historicamente os nativos já sabiam que os brancos não estavam se aproximando por lá para trocar experiências, mas, sim, para dardejá-los com flechas psíquicas subjugadoras, para depois atacá-los de verdade e dominar-lhes os territórios. E isso acabou acontecendo em quase toda a África.]

Hodiernamente é inconcebível em todo o mundo a prática dos sacrifícios torturantes e do canibalismo. As tribos sociais, mesmo as ainda selvagens, de todos os quadrantes terrestres, humanizaram e espiritualizaram suas culturas e seus rituais, graças, inclusive, às miscigenações e interinfluências com outras consciências coletivas menos animalizadas, e pelo maior tráfico de intercâmbio entre as formações étnicas espirituais.
[Outrora, era normal se encarnar dezenas de vezes em um só grupo étnico. Havia, pois, as raças humanas puras, quer do ponto de vista genético, quer do ponto de vista memético.
A partir desse prisma, o que é raça humana? Identidade fisioétnica combinada com identidade culturoética.
Hodiernamente, não há mais raças puras, principalmente no Brasil que é um país tradicionalmente multiétnico.
Desde o início da colonização estrangeira do Brasil pelos portugueses e pelos africanos, começou a haver miscigenações interétnicas, que avançaram explosivamente no século XIX. Mas sempre houve também uma miscigenação espiritual no histórico dos negros, dos brancos e também dos índios. Ou seja, na África negra antiga as raças eram bipuras. Não só não havia miscigenação com brancos fisioepidérmicos, como também não havia transmigração de espíritos africanos para encarnarem em outros continentes e vice-versa. A grande maioria encarnava e desencarnava no seu próprio continente.
Particularmente, nós, americanos, temos uma ligação profunda com a África, primeiro porque há milhões de anos, ela formava um todo com a América do Sul. Segundo, quando modernamente ocorreu a chegada maciça dos africanos ao continente americano, estendeu-se um tapete espiritual entre os dois continentes. A África e a América religaram-se novamente, por fios invisíveis, mesmo que, no plano material, a escravidão econômica tenha sido de começo a motivação de frente.

Hoje a miscigenação espiritual tem pulverizado mais e mais os traços fortes de caráter e de cultura baseados em origens ambientais puras. Tem havido, por exemplo, muitos brancos multiexistenciais encarnando na África sob epiderme negra e há muitos africanos históricos encarnando na Europa sob epiderme branca. Atualmente, quando muitos europeus ou americanos excursionam ou vão morar no interior da África, estão mesmo é regressando à terra natal. A memória afetiva de ambientes onde se viveu antes durante centenas de anos não se apaga logo após se encarnar em um ambiente novo. A transmigração de almas conduz também toda uma bagagem de impressões e de expressões profundamente gravadas no perispírito.
Conseqüentemente, é mais lógico dizer que não há mais raças humanas, já que não há mais identidade fisioétnica nem culturo-ética preservada sem misturas.]

Entretanto, antes dessa maior troca de genes e psicogenes (memes) entre as formações étnicas negras e brancas, havia, sim, a visão de inferioridades e de superioridades raciais entre as formações sociais humanas, que se utilizou durante séculos, principalmente na Europa, para justificar, inclusive, a escravidão dos negro-africanos na Idade Moderna. Foi uma ideologia montada mais ou menos sobre o seguinte silogismo:
Premissa maior: Os negro-africanos têm hábitos selvagens e não humanos.
Premissa menor: tu és negro-africano.
Conclusão: tu não és humano.
Foi um silogismo totalmente equivocado, mesmo porque as culturas, as religiões, as etnias e as civilizações africanas nunca foram homogêneas. A premissa maior é preconceitualmente generalizante, portanto aberrantemente falha.
Aliás, qual é a premissa maior que é perfeita no que se refere a seres humanos? A única premissa perfeita é esta: toda formação social, por mais homogênea que seja na aparência, é intrinsecamente contraditória, para impedir a formação de qualquer premissa conceitual generalizante sobre si mesma.
Ademais, de que lado costumam se prestigiar as verdades disseminadas socialmente? Historicamente, e ainda hoje, a questão maior se cinge à diferença cultural entre etnias culturalmente distintas.
É histórico que a cultura, a religião e os costumes de quem manda é que são tidas como as verdadeiras, as abençoadas por Deus. O mandado, consequentemente, é visto como ignorante, atrasado, involuído e selvagem. Na idade moderna, usava-se a arma de fogo para se impor verdades. Hoje predominam as armas dos meios de comunicação de massa, da união de grandes corporações ideológicas e dos discursos fascistas confeitados e enfiados goela abaixo do povão, de forma macia, porquanto aditivadas de drogas sociais dessensibilizantes e alienantes.
E, mesmo em relação às tribos humanas animalistas, jamais seria o caso de sua subjugação para trabalho forçado, e, sim, deixá-las se autoevoluírem naturalmente, como ocorreu com todas as formações sociais do mundo em épocas pretéritas.
Até o início das primeiras grandes colonizações europeias (século XVI), a maioria das tribos e nações negro-africanas era desconhecida do ponto de vista social. A ideia falsa (ou falseada) que se tinha era a de que os negros africanos eram iguais em todos os sentidos, simplesmente, porque eram homoetnicamente negros. E eram convenientemente reunidas nos mesmos conceitos tanto as tribos selvagens como as tribos e formações sociais evoluídas e civilizações de toda a África Negra, inclusive a egípcia. É a velha estratégia de misturar e confundir conceitualmente, para justificar a subjugação coletiva.
Outra falha de visão conceitual era em relação ao próprio conceito de “civilização”. O conceito reinante de civilização impulsionou a burguesia capitalista europeia a acoplar a ideia de progresso ao domínio paternalista e colonial sobre os povos selvagens. Estes sempre foram ideologicamente tratados como “bons selvagens”, que precisavam ser “educados”.
O eurocentrismo ou europeísmo influenciava todo o planeta a reconhecer apenas na Europa os modelos ideais de cultura, de religião e consequentemente de civilização. Era uma visão praticamente natural no conceito dos europeus e do resto do mundo, ao ponto até de grandes gênios e homens de notável saber de todos os continentes terem sido influenciados por essa limitada visão eurocêntrica, o que ainda acontece nos dias atuais.
E, assim, quase todos os povos do continente europeu, com toda sua garbosa civilização, foram também extremamente ignorantes e bestiais no que se refere à visão global do mundo. Praticaram canibalismos ideológicos e estupros culturais contra os povos de outros continentes distanciados de seus padrões de cultura e de beleza. Praticaram genocídios, massacres, etnocídios e civilizocídios, tudo em nome de reis, expansões territoriais, missões civilizatórias e até em nome de Deus. E praticaram a emigração forçada e a escravização de negros africanos, em nome do capitalismo exploratório.
[Na nossa hodiernidade, a maior forma de discriminação é o descaso dos países economicamante ricos com a sorte dos povos que vivem na sarjeta socioeconômica do planeta. E a maior demonstração de selvageria dos chamados povos civilizados, principalmente os do primeiro mundo, é explorar as riquezas do continente africano e dar as costas para os graves problemas sociais e econômicos de seus países pobres. Destaque-se inclusive que muitas guerras entre nações africanas são fomentadas com armas adquiridas dos Estados Unidos.
Qualquer enriquecimento montado a partir de passivos ambientais, morais ou econômicos é falso e costuma se converter em condições resgativas muito penosas tempos adiante, quer para os indivíduos, quer para as sociedades que se locupletam disso.]

 
BELEZA NEGRA. FORA DO CATÁLOGO DOS PADRÕES ESTÉTICOS TRADICIONAIS

Em relação à beleza humana, houve uma ideologia reinante no Velho Continente, de reconhecer como pessoas bonitas somente aquelas que mais se aproximavam dos contornos faciais exigidos pela chamada “proporção áurea”, que era um padrão geométrico criado e utilizado por artistas e matemáticos europeus para expressar formas tidas como suaves, harmoniosas e perfeitas.
[Segundo a “proporção áurea” para a beleza facial, a largura da boca deve ser 1,618 maior do que a largura do nariz. A largura do dente incisivo central deve ser 1,618 maior do que a largura do incisivo lateral. E a largura da boca seja 1,618 maior do que a distância entre o canto da boca e a ponta da bochecha.]
O próprio pintor renascentista Leonardo da Vinci utilizou tais medidas para desenhar a Monalisa. Tal regra de geometria certamente influenciou nas ideologias racistas e preconceituosas de inferioridade dos negros africanos, já que estes em nada se adequavam a essas medidas artificiais, pelo menos se considerarmos como parâmetro o rosto da famosa pintura leonardesca.
Ainda hoje existem discutíveis padrões oficiais de beleza, pelo menos corporalmente, nos concursos de misses. As medidas ideais são europeizadas (as medidas tradicionais giram em derredor de 80cm de busto, 60cm de cintura e 85cm de quadril) e sempre desestimulam a maioria das mulheres negras a concorrer. A única mulher negra a vencer o certame no Brasil até hoje foi a gaúcha Deise Nunes, em 1986, mas porque suas medidas estiveram perfeitamente de acordo com as medidas oficiais.

 

IDEOLOGIAS SOCIOLÓGICAS SUSTENTADORAS DA TESE INFERIORIZANTE

Para reforço ideológico, ainda reinava o entendimento, sustentado pelas ideias de Aristóteles (retomadas pelo Renascimento), de que o trabalho escravo seria uma espécie de terapia ocupacional para os homens “inferiorizados pela natureza”.
Prevaleceu também o conceito de “determinismo biológico”, defendido por Émile Durkhein (1858-1917; professor francês, considerado um dos pais da Sociologia), segundo o qual os grupos humanos exercem papéis sociais estanques e padronizados, em razão, inclusive, de seus traços físicos. [Ele baseava-se no princípio de que os fatos sociais devem ser analisados como coisas. Ainda bem que apareceu no fim do espetáculo escravista.]
Várias formações sociais historicamente prestigiadas na Europa do século XIX aplaudiram o chamado Darwinismo Social (expansão da teoria da evolução das espécies entre os animais levada para as sociedades humanas), para justificar sua tese de soberania racial sobre os demais povos da Terra, particularmente sobre os negros africanos.
Esse conceito sociodeterminista se expandiu para os seres humanos individualmente.
O criminologista italiano Cesare Lombroso (1835-1909), festejadíssimo por “positivistas entendidos”, pré-classificava muitos excluídos congênitos como criminosos natos, a partir da análise de seus traços antropométricos! Já pensou: diga-me como é sua nuca, que eu direi qual é, ou qual vai ser o seu caráter! Fez sucesso até no Brasil.
Já no início do século XIX, houve um precursor dessa ideia, o médico alemão Franz Joseph Gall (1758-1828), que desenvolveu a Frenologia, (segundo a Wikipédia, “teoria que reivindica ser capaz de determinar o caráter, características da personalidade, e grau de criminalidade pela forma da cabeça (lendo "caroços ou protuberâncias")”.
A própria Sociologia como ciência, nascida no século XIX, na Europa, foi marcada por conceitos positivistas, materialistas, e, consequentemente, frágeis e limitados acerca dos homens, suas formações sociais, suas culturas e seus destinos. Essa espécie de separatismo conceitual foi reforçada pela Antropologia e pela Etnologia, também nascidas no mesmo continente e século e com as mesmas bases sociodivisionais hierarquizantes.
Tudo isso serviu como forma de justificar e até de aumentar a dominação dos chamados “povos civilizados” sobre os povos africanos, os quais, além de fisicamente, eram também psicoideologicamente subjugados, para viabilizar a mantença do regime.

Os escravizados eram também objetificados. Objeto ou coisa em Direito é tudo aquilo de que se pode dispor na qualidade de proprietário, para compra, venda, alteração da substância ou até para destruição. Era um gancho de raciocínio para alívio da consciência social como um todo. Considerar convencionalmente alguém como coisa, e acomodar esse conceito no inconsciente coletivo, foi um facilitador para a aceitação do regime de trabalho forçado.
Os escravizados eram adrede desqualificados como seres humanos, e acabavam aceitando a condição inferiorizada, porque passavam a se ver mesmo como coisas. Então, era um conceito com bons resultados comerciais e psicodominiais.
Por falta de uma supervisão socio-humanística do mundo, muitos homens de boa-fé, de boa índole e até de grande visão social tiveram homens escravizados a seu dispor.
[Aqui no Brasil, é consabido que a família de Castro Alves tinha escravos. Sabe-se, através de pesquisas acadêmicas, que houve negros livres que tiveram e negociaram escravos no Brasil. Alguns estudos polêmicos apontam para o fato de que houve negros reescravizados no próprio Quilombo dos Palmares. Muitos escravos que negavam participar de fugas eram assassinados, para não delatarem os fugitivos.
Em algumas fazendas escravistas a convivência da casa grande com a senzala era relativamente harmoniosa, considerando a relação vertical impositiva. Muitos escravos, principalmente velhos e inválidos, eram tratados de forma humana e quase como membros da família senhorial. Isso funcionava, pelo menos, enquanto cada um dos polos opostos exercia com habilidade seus papéis. Durava enquanto não houvesse maiores arranhões ou qualquer ponta de ameaça para o sistema geral nem para o sistema particular de tratamento. Os conflitos afetivos e as crises de relações íntimas geralmente se resolviam não com a separação, mas, sim, com a retomada da relação hierárquica senhorial-escrava e seus castigos decorrentes.]
Bem, estamos aqui pegando apenas um fragmento da relação senhorial-escrava reinante em tempos que já lá vão na história da vida privada do Brasil Colônia e do Brasil Império. Nesse terreno, a História constrói-se também com histórias dedutivas e indutivas, não com fatos reais. Havia milhares de tipos de relação social e microssocial que não foram flagrados pelos primeiros historiadores-testemunhas presenciais e que não foram documentados para informar o universo livresco futuro. Cada formação social tem sua própria história e seus próprios fatos ocultos, inclusive muitos deles ligados a muitos outros fatos maiores, não somente da macrossociedade, mas também de matrizes ocultas à lente de qualquer observador científico e formal-acadêmico.

Sempre foi normal os favorecidos sociais ou econômicos se locupletarem, consciente ou inconscientemente, com as discriminações étnicas. Entretanto, naqueles tempos já recuados não era tão marcante o preconceito. O que prevalecia era a discriminação estamental. A maioria das pessoas não tinha plena e real consciência das condições objetivamente humilhantes dos escravos, nem a maioria destes próprios.
Muitas fugas, levantes, revoltas e movimentos pontuais marcaram o regime escravista no mundo e particularmente no Brasil, mas sempre foram estrategicamente abafados ou violentamente reprimidos pelos poderes sociais dominantes.
Grandes líderes de resistência, muitos deles implacavelmente assassinados ou perseguidos sem trégua, foram enterrados nos arquivos mortos da história colonial, a exemplo de Ganga Zumba, Zumbi dos Palmares (século XVII), Carucango, Luiza Mahim e Zeferina (século XIX), no Brasil; Nzinga Mbandi Ngola, rainha de Matamba e Angola (século XVII), Mackland (guineano), no Haiti (século XVIII), e os irmãos ganeses Lanu e Avakó, no Suriname (século XVII).
 

AS FERIDAS PELO AZORRAGUE E PELA CHIBATA AINDA SANGRAM

A força cultural e religiosa africanista serviu de base de sustentação e de amenização da própria submissão forçada de grande parte dos negros vitimados pelo regime da chibata e seus estresses mentais contínuos.
Com o sincretismo afrocristão-eclesial, carregado de símbolos e imagens comparativas, a própria inteligência espiritual do povo negro se enriqueceu e enriqueceu também a religiosidade luso-brasileira, em que pese à histórica intolerância e perseguição oficiais ao livre-cultismo africano por estas plagas.
Apesar do impositivo cristianismo eclesial e toda sua dogmática vaticanista, os negros reconheceram e passaram, de alguma forma, a se identificar também com a mensagem pura do cristianismo crístico, que é eterna e universal e se perpassa por entre todas as formações ideológicas congregacionais. E grandes parcelas da população negra brasileira, como um todo, também perceberam com mais nitidez a força espiritual das inteligências invisíveis que influenciam e corregem nossos destinos humanos, considerando que as culturas religiosas africanas são essencialmente espiritual-interativas.

Com o passar das gerações, muitos escravos nativos do Brasil já nasceram naturalmente dentro de um ambiente de sincretismo religioso e cultural. Não sofreram o trauma múltiplo da separação familiar, étnica e territorial dos escravizados estrangeiros. Não sofreram, especificamente, a longa e torturante travessia transatlântica, nos porões dos tumbeiros ou navios negreiros. Não foram considerados meras mercadorias, ao ponto de serem jogados ao mar quando os capitães precisavam aliviar a carga dos navios ameaçados de naufrágio com o peso de pedras portuguesas que também vinham para as construções da Colônia. [E os escolhidos para aliviar o peso eram os já fragilizados psíquica e fisicamente pelo rigor do transporte.]

“Era um sonho dantesco... o tombadilho
Que das luzernas avermelha o brilho.
Em sangue a se banhar.
Tinir de ferros... estalar de açoite...
Legiões de homens negros como a noite,
Horrendos a dançar...”
Castro Alves (em “O Navio Negreiro – Tragédia no Mar”)

Essa brasilidade difusa, cafuza e confusa lhes amenizou a relação com os açoites, com os pelourinhos e com a própria tortura continuada do trabalho gratuito e obrigatório. Propiciou-lhes alguma felicidade, ainda que clandestina, ao lado da evolução natural dos tratamentos mais humanizantes que foram recebendo no decorrer principalmente do século XIX, inclusive do ponto de vista legal.

Em 1831, uma lei libertou todos os cativos que tinham vindo da África, ainda que para atender a imposição britânica para o reconhecimento da independência brasileira. Em 1850, surgiu a lei que aboliu o tráfico negreiro, que não foi, contudo, eficiente para impedir o tráfico clandestino, que ainda perdurou por cerca de vinte e cinco anos. Em 1871, foi promulgada a Lei do Ventre Livre. A partir de sua vigência, todos os negro-brasileiros filhos de escravas já nasciam automaticamente livres, ainda que tivessem de permanecer sob a tutela dos senhores de seus pais, até os vinte e um anos. [Por isso tal lei não teve eficácia plena, já que dezoito anos depois de sua vigência ocorreu a Abolição da Escravatura no país.] Logicamente, considerando que a média de vida dos escravos era quarenta anos, tem-se que nos anos setenta e oitenta do século XIX quase todos os senhores de escravo eram fora da lei. Em 1885, promulgou-se a lei do sexagenário, que libertava todos os cativos maiores de sessenta anos, mediante polpuda indenização governamental a seus senhores, o que para estes foi um excelente negócio, considerando que geralmente os escravos que conseguiam chegar a tão vetusta idade já não tinham mais qualquer capacidade produtiva. [Em verdade, foi também uma vitória de pirro. Veja art. 3º, § 10: “São libertos os escravos de 60 anos de idade, completos antes e depois da data em que entrar em execução esta Lei; ficando, porém, obrigados, a titulo de indenização pela sua alforria, a prestar serviços a seus ex-senhores pelo espaço de três anos”.] Só vigeu três anos, já que em 1888 veio a tão esperada Lei Áurea, que foi o resultado final de uma evolução legislativa. Foi o coroamento também de uma evolução de consciência social e de um bombardeio de pressões internacionais, considerando que o Brasil foi um dos últimos países a extinguir o regime negro-escravista. [O último foi a Mauritânia, oficialmente em 1975.] Foi igualmente a vitória de uma sequência de revoltas pontuais e localizadas e de movimentos abolicionistas, tanto dos próprios escravos quanto de intelectuais e artistas negros e brancos.

Já havia uma insatisfação crescente do povo em geral, que andava incomodado, percebendo a incongruência de um regime caduco em relação aos esclarecimentos e novas percepções sociais do fim do século XIX. O povo estava se alfabetizando, ouvia histórias e romances, lia jornais. Já surgia uma literatura romanesca genuinamente brasileira. Havia rodas e saraus de leitura, discursos em palanques... O povo estava aprendendo a pensar criticamente. Alguma consciência negra já ecoava na sociedade largamente mesticizada.
Enfim, a abolição era coisa de dias, o que se consolidou com a assinatura da Lei Áurea, em 13 de maio de 1888, pela Princesa Isabel, que  estas regendo o império em lugar de D. Pedro II, que  estava fora. Houve a libertação do cativeiro e seus trabalhos forçados e totalmente gratuitos.
 

QUEM VAI AGORA COTIZAR A DESPESA?

Hoje, os povos de todos os continentes, sejam brancos, sejam negros, repudiam a escravocracia das gerações pregressas. Entretanto, as sequelas etnoeconômicas resultantes ainda causam grandes prejuízos para a maioria dos afrodescendentes, sejam para os de epiderme negra, melanoderma ou anegrada, morena ou amorenada ou faioderma (parda ou pardacenta).
{Esse jogo de matizes epidérmicas serve apenas para hilariar um pouco a velha e ainda não pacificada questão acerca de quem é mesmo negro ou branco no Brasil. E se tomarmos a lupa da Genética, aí fica mais complicado ainda. Lembra-se daquela pesquisa do geneticista Sérgio Pena, encomendada pela BBC Brasil? Concluiu que o sambista Neguinho da Beija-Flor e a ginasta Daiane dos Santos são geneticamente mais brancos do que negros.
A convenção hoje reinante é a de que negro é quem se diz negro e de que branco é quem se diz branco. Esse é o principal entrave ao sucesso da política de cotas, principalmente considerando que, a rigor, a grande maioria do povo brasileiro é composta de mestiços ou faiodermas (pardos), quer do ponto de vista epidérmico, quer do ponto de vista genético.
Sob a ótica etno-histórica, uma classificação talvez também válida é a de que negros são os negro-africanos e de que brancos são os branco-europeus e suas descendências disseminadas pelo mundo. Mas, vale lembrar que nem na África existe uma única etnia negra, nem na Europa existe uma única etnia branca. As próprias cores das etnias não intermiscigenadas são variadas. Daí, poderíamos ilar, também, que não existem etnias nem raças humanas, considerando, inclusive, que todos somos originários da África. [Segundo pesquisas, os australopitecos mais antigos viveram no sul da África há aproximadamente três milhões de anos.] Mas, isso aí já uma ilação talvez muito avançada, quem sabe para viger no transfuturo (dos anos 2060 em diante).
Como no Brasil a predominância é a descendência miscigenada de ambos os extremos, negro aqui passou a ser mais uma cor conceitual e político-afirmativa do que necessariamente epidérmica, étnica ou antropológica. [Isso para não falar da influência genética indígena e asiática em quase todas as regiões do país.]
Com a cada vez maior expansão da consciência negra, a maioria dos afrodescendentes e dos mestiços negro-genéticos faz questão de assumir sua negritude ou a negritude de sua constituição física ou psíquica. A consciência negra é antes de tudo uma consciência de afirmação, de superação e de felicidade.}

As próprias políticas públicas atuais de reparação se justificam não por questões negrais em si, mas, pelo menos, por dois motivos históricos e bem objetivos.
Em primeiro lugar, em todo o período escravista, os escravizados, quer tenham sido negro-africanos, quer tenham sido negro-brasileiros ou miscigenados, eram proibidos de frequentar escolas. Mesmo depois da abolição houve leis restritivas contra eles, inclusive uma que os impedia de se reunir. Houve leis pós-abolição no sentido de não jogarem capoeira, de não praticarem o Candomblé, de não votarem, de não poderem ser funcionários públicos, de não poderem casar com pessoas brancas, de não estudarem juntamente com os brancos etc.

“O processo educacional brasileiro fez com que brancos tivessem muitos privilégios. Durante muitos anos depois da abolição os negros não podiam estudar nos mesmos lugares que os brancos. Os negros e negras só podia estudar aos finais de semana. Depois, somente à noite, onde os cursos eram mais fracos. A educação não privilegiava os negros nem no ensino, porque durante muitos anos a história dos negros foi negada e manipulada.” - Marco Davi de Oliveira.
Fonte: http://negreirosurbanos.blogspot.com/2008/05/influencia-da-ideologia-do.html.

Em segundo lugar, ainda no tempo do cativeiro, todos eles, inclusive os “negros de ganho” (escravos que trabalhavam na rua a fim de conseguir dinheiro para seus senhores), eram proibidos de acumular riquezas para uso inteiramente livre e para legar a seus descendentes. Exceção apenas para os poucos “negros de aluguel”, que podiam juntar dinheiro para comprar sua própria alforria ou para contribuir com fundos de entidades negro-protetivas, já no século XIX.
Josenilton kaj Madragoa
Enviado por Josenilton kaj Madragoa em 02/01/2011
Reeditado em 30/01/2014
Código do texto: T2704217
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