Notas de um novo lar - Do dia 15 ao dia 20

DIA 15

Schopenhauer e os banhos gelados - A animalização do homem através do futebol - A complexidade do Brasil - Riqueza e pobreza sob o mesmo tempo - O falso uso do multiculturalismo - Da preferência para Gana - Crescimento de Sophie

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Não se é recomendável seguir as propostas de Schopenhauer em todas as estações. Ousei tomar banho gelado, a fim de combater a ansiedade e, ao mesmo tempo, despertar meu ânimo para os exercícios físicos. Tudo terminou com um resfriado, horas mais tarde.

Há dias, meus dedos duros não permanecem por mais de vinte minutos diários ao piano. Sinto como se estivesse à busca de inspiração, como se recolhesse o pólen do qual meu estímulo se alimenta.

José Monir Nasser estava certo, quando nos disse que o futebol – e mais especificamente a Copa do Mundo – é capaz de animalizar os homens. Assim encontrei um mundo completamente estranho e assustador, quando ingenuamente fui às ruas, após a vitória brasileira, em busca de um lugar onde pudesse fazer algumas impressões. As palavras de Enéas pareciam correr ao meu encontro: “Um quadro dantesco... Uma coisa estúpida... Se não nos cuidarmos, poderemos desenvolver uma úlcera!”.

Não há dúvidas de que o Brasil consiste em algo demasiado complexo, de difícil compreensão. Vive-se no país mais rico do mundo, com o mais belo de todos os hinos, com a maior de todas as riquezas culturais, com um idioma esplêndido, dono de uma história tão recente e, entretanto, parece que tudo é descartável à maioria dos que se dizem brasileiros. O amor pela nação toma força a cada quatro anos. Vez ou outra, quando se pune um brasileiro no estrangeiro, o orgulho dá indícios de reaparecer. Nossos heróis passaram a ser aqueles que na primeira oportunidade, deixam o país que dizem tanto amar. E que triste é esse povo brasileiro! Ignora todas as riquezas frente a uma bola. Só se faz isto. E, no entanto, nem o próprio futebol – cujas conquistas deveriam ser uma verdadeira obrigação – não lhe traz alegrias. Paga a maior taxa de juros do planeta. É testemunha de uma das piores distribuições de renda de toda história. Dá margem para que os lucros dos bancos sejam astronômicos. Paga o imposto mais elevado do mundo, sem ver resultados. Elege a alguém que acreditava ser do povo, quando este, na verdade, é apenas um fantoche para iludi-lo. É enganado. Lá fora, caçoam de si.

Eu separava uma sacola de materiais de lixo reciclável e a deixava em frente ao portão. Um velho logo a apanhou. Sem que minha expressão mudasse, por dentro, já próximo da amargura, eu me questionava: "Como é possível se estar no país mais rico do mundo e pessoas em idade para desfrutar do descanso merecido, após décadas de trabalho árduo, estejam hoje vivendo do meu próprio lixo?".

Como é possível estar no país mais rico do mundo, étnica e culturalmente falando, e necessariamente todos terem de ser "afros"? Como é aceitável que todos tenham quase que a obrigatoriedade de gostar do mesmo modelo de mulher e de ter de elevar à categoria de fé o que outrora era um simples esporte saudável? Não há dúvidas: vive-se também, à parte da sua riqueza, no país mais estranhíssimo de todos os existentes.

Está escrito no livro mais proibido do mundo que se faria com que os esportes passassem a distrair os povos, a fim de impedi-los de pensar. Acaso no Brasil não ocorre o mesmo?

Não me agradam os dias de copa. Não me agrada o fervor das ruas. Não me agrada sequer a seleção alemã. Não para menos, torci, ao modo de alguns amigos, para todas as seleções mais próximas de suas origens. Dizia um amigo que preferia Gana à Alemanha. Ele estava certo. Em algum lugar do mundo, alguém deverá concordar comigo: quanto mais Angela Merkel vibra, mais algo de errado e nocivo está a ocorrer ao “seu” país. Constitui um caso único na história, em uma estranheza semelhante a que se vive no Brasil, o fato da mesma Ministra ter viajado, nos anos 70, a um país estrangeiro, com o intuito de comemorar a derrota da própria Alemanha. Pois não bastou invadi-la. Não bastou mudar seu hino. Não bastou reeducar o seu povo, a fim de submetê-lo a horas de pornografia cultural vinda da tal dita Democracia. Não bastou dividir seu país, separar suas famílias e fazer com que seu povo retornasse à escravidão por parte dos bancos e do ouro. Não bastou trocar sua bandeira. Não bastou fazer com que as novas gerações passassem a cuspir no estandarte surrado, carregado com orgulho por seus avós. Multinacionais alienígenas trouxeram imigrantes para seu país, que agora o defendem. E a velha propaganda aliada ainda esfrega na cara do alemão dos dias de hoje: “Você não tem Goethe, nem Schopenhauer ou Wagner... Você não tem nada... Canalize seu orgulho em torno dos estrangeiros que usam sua camisa e defendem seu país”. E o pobre alemão, de bom coração, ainda vibra. E o pobre estrangeiro que defende aquele país que não é seu, também não sabe que faz parte de um jogo em outro campo, cujo verdadeiro técnico é muito mais poderoso do que se imagina, onde se sabe que independente do quanto se corra e se esforce, somente ele será o seu único vencedor. Diante de tudo, eu me pergunto: e quanto ao brasileiro? Ele aceitaria tudo passivamente se somente estrangeiros defendessem o seu país?

Minha filha cresce. E como! Assisti consigo ao documentário “Eram os deuses astronautas?”. Diante da abertura, de uma música que talvez ela mesma lembrasse, pediu para se sentar. Não apenas isto: pediu para que eu me sentasse ao seu lado. “Ogo... Ogo... Ogo!”, ela dizia desesperadamente, ao apontar para o fogo posto em palha, onde nativos contemplavam os céus a esperar que novos aviões americanos fossem ao seu encontro. As cenas pareciam chamar sua atenção.

DIA 16

Reunião com o Prefeito - A aprovação de um texto - Edmundo Schwab - Márcia Sielski

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Em casa, pensei que poucas eram as noites em que me sentia tão disposto quanto naquele dia.

Hoje, foi possível estar em uma reunião junto do prefeito da cidade. Eu estaria ali mais como um acompanhante da discussão que gira em torno da construção de um monumento em homenagem aos imigrantes alemães. Foi atencioso e bem-humorado. E observou ao esboço com carinho, dizendo que, contudo, assim como nós, jamais imaginaria que fazia alusão à antiga Cervejaria Adriática de Ponta Grossa. “Fazemos votos”, disse ele, “para que um dia ela volte a funcionar”. Nosso amigo Carlos havia feito um incrível esboço de como seria esse monumento. Disse que deveria contar com minha ajuda. Ali, eu me comportei. Consideraria a mais importante reunião dos últimos tempos.

Nós nos reunimos, então, logo próximo ao lugar onde estávamos. Deveríamos discutir sobre certas questões referentes a um jantar que aconteceria no mês seguinte. Eu ansiava por aquele evento. Deveria fazer o lançamento do meu novo álbum e de um quarto livreto. Com um misto de ansiedade e atenção, passava meus dias a revisá-lo e a sonhar com a oportunidade de levá-lo a público. Em meio à conversa, Carlos dizia que sua mulher havia lido e gostado muito de um texto que eu lhe havia entregado em nossa última reunião, onde, entre outras questões, falo sobre a primeira vez em que encontrei meu amigo Edmundo Schwab. “Ela disse que não há uma só vírgula com a qual ela discorde. Está irretocável”. Meu rosto se avermelhava. E eu me limitava a esticar a ponta dos pés, como se, através disso, eu expressasse a timidez. Minha amiga Márcia Sielski completava, afirmando que, na verdade, aquilo deveria ser um grande orgulho para mim, pois partia de uma pessoa bastante familiarizada com literatura e que ocupa a cadeira de nº5 da Academia de Letras dos Campos Gerais. “Ela”, dizia Carlos, “deseja lhe presentear com um livro... E gostaria de saber se há possibilidades de você reduzir em algumas partes aquele seu escrito. Ela deseja publicar na coluna da Academia de Letras dos Campos Gerais”. Com que orgulho e surpresa recebi a esta informação!

Ocorrera um exemplo de sincronicidade. Há poucos dias, eu checava as fotos de um projeto neoclássico que fizera uma apresentação ao vivo na Alemanha. Por um instante, deixei-me levar pela idéia de que um dia, talvez, seria possível participar do mesmo festival. Foi então que um rapaz chamado Dirk me escrevera, dizendo que pelo fato de ter ouvido e gostado do meu trabalho, achava que eu era merecedor de participar dos eventos que deveriam ocorrer na metade de 2011.

DIA 17

Disciplina e escrita - Dias de frio - Serviços domésticos - Da minha relação inseparável para com os papéis - Tentativas de leituras em francês e italiano - Sobre a diferença das línguas - Lembranças do Natal de 2009 - Lendas japonesas

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Às vezes me é necessário policiar o meu próprio comportamento, a fim de que não se apague o exercício da escrita. Não comer demais me parece fundamental. Não estar com sono. Limitar a música ouvida a poucas horas diárias. Combater a indisposição com a prática de exercícios físicos, sendo que até mesmo os trabalhos domésticos contam.

Constantemente nos dias de frio, eu me pegava a ouvir discos que marcaram minha adolescência. Uma doce nostalgia veio ao meu encontro. Sinto-me velho, mas como que dono de uma poção mágica. Ainda me é possível sonhar e viver. Sinto como se de fato velho o fosse, gozando de uma aposentadoria que o permite reservar seu tempo às suas ocupações prediletas.

Raramente faço os serviços domésticos de modo apressado. Sempre um bloco de notas me acompanha. O movimento do corpo, conciliado com o que ouço, oxigena meu cérebro de modo a me fazer próximo de idéias de quando forçadamente diante dos livros e papéis, sempre têm um aspecto nebuloso.

Parece-me que tudo se encaminhou de tal forma que em tempos, já não me era mais possível me separar dos papéis. Ainda quando pequeno, ao tomar dois ou três ônibus da nossa antiga morada até a casa da minha tia Antônia, minha segunda mãe, recordo que carregava um bloco de notas sobre o colo. Deixava que o ônibus nos guiasse e entre curvas e pedregulhos, as figuras eram formadas. Queria eu, no fundo, formar figuras misteriosas. Ser guiado pelo instinto e pela naturalidade parecia ser como que o meu primeiro lema.

Recorro às anotações feitas a lápis, pouco antes de assistir às aulas de alemão, onde, por instantes, me foi possível acessar a biblioteca da escola de idiomas onde estudo. Li na língua de Dante uma reportagem que dizia sobre o comportamento dos budistas da Itália na atualidade, junto à modernização do mundo. Em francês, arrisquei ler um capítulo de "Le disaparition". Ele tratava especificamente sobre uma moça que começa uma amizade com um rapaz que acaba de chegar de outro colégio. Ela investiu o possível para conhecê-lo, até que se tornou amiga sua. Ambas as leituras foram feitas com certa naturalidade. Familiarizado com o português, isto me abriu espaço para compreender, mesmo que superficialmente, o italiano e o francês. Aquele sempre me pareceu a língua da Ópera, da emoção, dos cantos triunfantes. É sonoro, vivo, intenso. Este, por sua vez, é poético, refinado, romântico. Nunca o imaginei senão desta maneira. A ele, não se reserva a agressividade, tampouco rodeios: mesmo nas mais simples expressões, ele me soa como uma bela poesia.

No mesmo dia, eu reencontrava minha antiga professora de alemão. Ela atendeu ao meu pedido, trazendo consigo o telefone da senhora Ida Schneider, alguém muito amável que eu havia conhecido em dezembro de 2009, em uma feira de Natal na colônia Witmarsum. Seu alemão era agradável, tanto quanto era ela como pessoa. Tive a sorte de deixar consigo alguns dos meus trabalhos de piano. Naquela ocasião, ela falou muito sobre o chimarrão; sobre como este a acompanhava, de manhã ao entardecer, no seu trabalho no campo. Mas dado à minha desorganização, eu havia perdido seu telefone. Ainda junto de minha professora, tive a oportunidade de mostrar-lhe uma resenha a respeito de meu trabalho feita em solo alemão. E por mais que não tivesse dado importância especificamente aos pontos que consegui, frisei que havia sido avaliado bem, mesmo com um trabalho que, na minha opinião, ainda necessitaria ser mais lapidado. Ela me felicitou.

Ainda junto do sofá, fiz uma pequena leitura sobre lendas japonesas. Comecei por "Momotamo" ou "Menino pêssego". É a história de um casal de velhos que não tinha filhos. "Um belo dia" acabam encontrando, em meio à floresta, um pêssego gigante. Dentro dele está um menino. Ele cresce. E quando um demônio ataca a ilha onde seus pais vivem, o menino pêssego pede-lhes para enfrentá-lo. Mesmo diante de uma história aparentemente simples, encontrei uma menção, em suas entrelinhas, ao caráter heróico presente nas histórias nipônicas: seus pais aceitaram sua missão, pois "o ideal de salvar o povo era algo nobre e irrecusável".

Pela tarde, busquei uma solução nas agências de correio mais próximas de minha morada. Enfrento problemas com relação às minhas cartas. Elas têm retornado aos seus remetentes, por uma simples confusão de endereços.

Com as mãos leves, toquei quinze músicas, uma em seguida da outra, que deverão compor o repertório de minha próxima apresentação. Àquele dia, preparava-se também o esboço do texto de acompanhamento da contracapa de meu "Sobre as leituras e os escritos".

DIA 18

Dias frios e chuvosos - A selvageria da Democracia - Um mundo estranhíssimo - O shopping enquanto uma verdadeira jaula - A orquestração dos jovens através das tribos urbanas - A corrupção dos movimentos estudantis - Quando os crimes dos maestros não são notados

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Dias frios e chuvosos. Os ossos parecem se atrofiar. Querem hibernar. A madrugada é acolhedora, mas traiçoeira quando se tem compromissos importantes no dia seguinte.

Enquanto caminhava pelas ruas, chovia lentamente. Notei um velho com sua gaiota. Ele disputava espaço entre os pedestres que aproveitavam o sinaleiro fechado para atravessar o asfalto. Era um choque, bem na verdade. Vive-se na mais impactante de todas as selvas, sem que se queira perceber que apenas estamos envoltos em uma roupagem de polidez e civilidade. Um velho, que deveria estar gozando de bons dias de frio, acolhido em casa, agora, por necessidades da vida, arriscava-se à chuva pelo seu pão. E como é possível que tão poucos sejam capazes de notar a selvageria do cotidiano em que se vive, sob as palmas da Democracia?

Países que não possuem 1/10 das nossas riquezas naturais sequer permitem que um imigrante velho – independente de sua índole ou de suas intenções para lá estar – não deixe de desfrutar do mínimo de conforto após a meia-idade, enquanto que no Brasil seus verdadeiros herdeiros são tratados a cuspe. Brasil, um país maravilhoso e, ao mesmo tempo, inquestionavelmente estranho. Vive-se em uma mansão, com os armários cheios e por motivos específicos, se passa fome e se vive em uma grande miséria.

Que há com o meu olhar? Devo eu estar errado? Nasci tardiamente? Eu me pergunto. Pois ao deixar os aposentos meus, tudo à volta me choca. Não compreendo o que leva crianças a se maquiar. Roupas tão esquisitas. Aparelhos que emitem batidas que retardam a mente. O glutamato que se consome. Os preços exorbitantes das coisas desnecessárias. Dado às cores que revestem a tudo, poucos notam a pobreza cultural e espiritual de nossa era.

O shopping me parece o ambiente ideal - a jaula, quem sabe - na qual se nota a que ponto a pobreza humana pôde ter chegado. Rodeados de propagandas, de lojas a que se paga caro por futilidades, os jovens perambulam de um lado para o outro. Consomem os mesmos tóxicos. Vestem-se conforme a moda. Tudo tão estranho. Por um momento, perco a noção de que, na verdade, também eu, um dia, fui um deles. Também eu, em certa carência, quis ser como os demais. Também eu, em determinada época, tomei como heróis meus aqueles que não eram senão monstros. Considero o despertar como uma grande dádiva, mas de nada me valeria se dentro disto, não existisse um estímulo para mover as forças poderosíssimas que assim como descansam em cada povo, como o grande Gustavo Barroso havia observado, também tomam conta dos jovens - "quem souber despertá-las", dizia ele, "moverá montanhas".

As tribos urbanas em sua grande maioria não são mais que fantoches de um sistema alienígena, de grande poder, que canaliza o potencial da juventude a seu favor. Até mesmo aqueles que acreditam estar lutando contra essas forças, atuam, no fundo, em seu benefício. É como se ao adotar a tribo X ou Y, ganhássemos um novo sentido de vida. Uma vida que não é mais nossa. Errada está a família, os valores, a decência. A vida comum se torna sem graça. Seus elementos primordiais precisam ser renovados. Ao jovem, estipula-se agora o que comer, como se vestir e a quem atacar. Assim como se faz com os países, também o sistema fomenta o conflito entre tribos urbanas, porque, no fundo, deseja ver disperso o espírito inquebrantável do Berserk que somente a juventude pode reviver.

Tamanha é a eficiência que o lobby chegou a comprar o espírito de boa parte dessa mesma juventude moderna. Mesmo os movimentos estudantis, em sua grande maioria, são comprados e financiados pelos mesmos poderosos a quem, diante de nós, o jovem pretende combater. Quando os estudantes se manifestam a favor das cotas raciais, atribuindo a desigualdade social necessariamente a uma concentração maior ou menor de melanina, arrancando a meritocracia do nosso cotidiano; quando incansavelmente lutam pela legalização do aborto, das drogas ou alegam que qualquer manifestação em público de uma conscientização heterossexual seja caracterizada como homofobia; ou ainda quando repudiam a vinda de um presidente iraniano que reergue seu país, não atuam mais que pelos interesses de seus patrícios. Há de se notar, por exemplo, que não há qualquer mobilização estudantil em massa que se manifeste contra os lucros astronômicos dos bancos, ou contra a forma criminosa com que a indústria farmacêutica, em parceria com certos setores da mídia internacional, fez a humanidade de cobaia, através de uma pandemia irreal fabricada e manipulada, que foi a H1N1. Não. Os movimentos estudantis apenas se mobilizam por interesses partidários. Quando ou outro “se lembra” que os conflitos na Faixa de Gaza e todas as atrocidades cometidas contra o povo palestino são reais, não o faz senão por vontade de um ou outro partido de esquerda. E quanto àqueles que se julgam eleitos de uma entidade superior, donos do maior poderio financeiro e bélico da nossa época? Sionismo? Sequer os movimentos estudantis falam a respeito. Ou se trata de um tabu, ou simplesmente é um termo inexistente em suas cartilhas. Para eles, é mais importante legalizar o assassinato de bebês em seus ventres, alegando que 99,9% foram gerados através de estupros, que denunciar os crimes do mais sanguinário de todos os estados. Estranho é o critério de suas balanças, onde as bombas de fósforo não doem.

Admiro o poder de mobilização e a coragem de muitos jovens dos movimentos estudantis. Não são conformados. Não compactuam com a mentalidade burguesa de muitos que vêem ao mundo com indiferença, desde que tenham à sua disposição dígitos e prazeres em forma de ócio. Apenas lamento o fato de que muitos ainda não fizeram a descoberta de que seu inconformismo está sendo orquestrado, onde, por fim, os crimes dos seus maestros nunca são notados.

DIA 19

Murmúrios da floresta - João Manuel Simões - Dos criadores e suas obras - Leitura técnica e apaixonada - Shakespeare e Ibsen - Borges, Graham Greene, Ortega y Gasset e Simões - A política literária em Anatol Rosenfeld diante de Knut Hamsun - Da necessidade de escrever - Navegar é preciso

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Do velho toca-fitas, soa a esplendorosa "Murmúrios da floresta", de Wagner. Se a sabedoria hindu era com a qual meu escritor americano preferido se banhava pelas manhãs, diria eu que escolhi banhar o meu início de dia com o maior compositor germânico de todos os tempos.

Considero uma oportunidade única ter-me deparado com "Os criadores e seus obras", de João Manuel Simões, com o qual eu já havia estado em contato através de outras publicações, embora nada se igualasse à profundidade dessa proximidade mais recente. Seu exemplar estava ali, parado, despercebido, em meio aos livros de uma estante que eu havia ignorado da última vez que eu visitara aquele sebo. Como as coisas são! Há alguns meses eu o desejava, tendo lido sobre o seu lançamento em uma revista de cultura curitibana. Sempre me chamou a atenção o saber enciclopédico de Simões. Ele parece reunir o essencial dos escritos sobre os quais retrata. Eu, que recém havia deixado a caverna da obscuridade, em direção à luz do universo literário, buscava uma introdução a determinados escritores. Quis a sincronicidade, uma vez mais, ter sido em minha vida um exemplo prático, pois encontrei em sua compilação de palestras e ensaios não apenas o que buscava em termos introdutórios, pois Simões me parecia ser membro daquela categoria restrita e seleta, admirável e até mesmo invejável, em um bom sentido, das pessoas que são capazes de conciliar a leitura apaixonada, cega, que geralmente fazemos quando somos jovens, ao mesmo tempo em que estava apto para extrair os detalhes mais técnicos e gerais que integram a composição de uma grande obra ou um grande mentor por trás de todas as suas manifestações artísticas, tal como eu já havia presenciado, na prática, com José Monir Nasser.

O livro comprado ainda possuía uma dedicatória a um grande nome da literatura local, a quem Simões se referia como "brilhante". Fora entregue a este em setembro de 2009. Com isso, eu me sentia duplamente privilegiado.

Em "Os criadores e suas obras", fala-se sobre os gênios da literatura, teatro e poesia. Dostoievski, Ibsen, Goethe, Camus, Cervantes, Shakespeare, Proust e outros. São ensaios curtos, sucintos, mas que ao modo de Thoreau, sugam a medula de suas vidas e obras. Sua escrita é atrativa. Com que talento Simões brinca com as palavras! Faz o uso de parêntesis, expressões e frases no francês, italiano, inglês e alemão. Projeta ao iniciante de escritor a certeza de que se é possível dar vida a um texto da forma mais natural o possível; um parto normal, da gravidez cujos empecilhos quase não se sentem nos meses de gestação. Tudo parece ser tão bem pensado. Suas idéias tão bem argumentadas que, ao seu caso, seria ele, para usar a idéia de Borges, alguém que dá vida a um "sonho guiado" chamado escrita. Há tempos não encontrava tanta satisfação ao estudar algo relacionado à literatura quanto com Simões.

Ao comparar dois grandes criadores, "o torrencial e prolixo" Dostoievski com "o Shakespeare burguês" que é Ibsen, o autor luso-brasileiro encontra, entre os contrates nórdico-eslavos, não mais que uma sede de liberdade, bem como "o mesmo sentido trágico em presença do espetáculo excitante da vida". Ambos, a seu ver, "comungam da mesma consciência dilacerada em face da luta dos homens com as forças ocultas, que inexoravelmente comandam seu périplo existencial". Também são colocados como criadores do que em seu ensaio foi definido como "matrizes embrionárias de concepções e movimentos da posteridade, trazendo indicativos em torno de questões sobre o inconsciente individual e coletivo, do existencialismo e da condição humana sui generis”. E ao fim, conclui ele que Dostoievski e Ibsen foram mais que simples extraordinários criadores de vida; "foram construtores de homens que, embora feitos de words, words, words, parecem muitas vezes mais nítidos, mais reais, mas tangíveis, do que tantos vultos com quem nos acotovelamos no dia-a-dia, nas esquinas do mundo, nos labirintos do cotidiano".

No ensaio “Borges, Graham Greene, Ortega y Gasset & Eu”, Simões me obrigou a elogiá-lo, em forma de escrita, logo ao primeiro parágrafo. “Meu amigo, você brinca com as palavras!”. Assim era o meu rabisco. Ele coloca os dois primeiros nomes como injustiçados, os quais, tal como ocorrera com Ezra Pound, não foram vítimas senão daquilo que se definiu como “política literária”, pois, como se colocou, “tinham todas as condições possíveis e imagináveis para conquistar a famosa láurea”. Não foi senão a “política literária” que levou Anatol Rosenfeld a expressar seu ódio, em forma de palavras contra Knut Hamsun, definindo-o como “um primitivo estragado pela civilização e por leituras intensas e degradadas”. Teve ainda a petulância de afirmar que Hamsun era um “autodidata ressentido e orgulhoso” pelo fato do norueguês ter declarado, como recusa ao prêmio de Doutor Honoris da Universidade de Köln, que era simplesmente um camponês poeta.

Simões então afirmou que a exemplo dos três nomes acima – embora se considere, segundo suas próprias palavras, como “um pigmeu diante de gigantes” –, escreve, em primeira instância, para si próprio. O segundo estágio, ele o faz para seus amigos. E mesmo com essa forma desapegada do sucesso, da obrigatoriedade profissional, dos temas estipulados por editoras, afirma que independente de se destinar os escritos somente a nós mesmos e às pessoas que lhe nos são próximas, “escrever é preciso. Ainda que a pena queime e o ombro doa. Ainda que as teclas da máquina onde se movimentam os dedos, digitantes insones, sejam ferro em brasa (...). Sim, o ato de escrever, a liturgia da escrita, é também uma forma peculiar de navegação. E o que é navegar? É ir a busca de terras maravilhosas que se escondem ao longe, além dos escolhos onde as sereias cantam o seu canto hipnótico, além das brumas longínquas – ilhas, Índias, eldorados, pasárgadas? É ir muito além do nevoeiro denso que há dentro de mim: aqui e agora (...). Navigare necesse. Navegar é preciso. Por isso navego”.

DIA 20

Dias de pouca escrita - Bisneto de três fronteiras - Uma canção em italiano - Minhas origens e suas contribuições à minha personalidade - Paraná e Europa - Caminhada - Visita a Krause - Pensamento em Edmundo Schwab - Pessoas que se vão - Academia de Letras dos Campos Gerais - Nassim Haramein e o tabu da física

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Muito vivo e pouco escrevo. No carro, ouvia a uma entrevista de Jorge Luis Borges. Ele dizia que qualquer reconhecimento lhe era válido, pois a vida de um escritor é sempre muito solitária. Neste sentido, tenho sido um mau escritor. Recolho dados e fontes, nos acontecimentos extraordinários da vida, sem que os registre. Vivo dias de Sócrates, sem ter à disposição o meu próprio Platão.

Brinquei hoje com um jogo de memória com Sophie. O que é a memória de uma criança! Uma a uma, ela definia o que era visto. Moça. Tubarão. Lobo. Coelho. Apenas confundia “Pirata” com “Batata”.

Uma música de nome “Figli di una frontiera” toca o meu coração. É de autoria de Massimo Morsello.

E nela, conta-se a história de um italiano que conheceu uma húngara em uma estação de trem. Um cigarro os uniu.

"Somos filhos do mundo, de calcanhares adentro, que se ajudaram uns aos outros quando todos fugíamos da miséria das prisões; filhos de um cigarro, de uma sirene que nos apressa; filhos de um trem que parte e não espera. Somos filhos da noite, sem sequer uma foto sobre o passaporte, que se ajudam mutuamente quando navegamos em um mar aberto (...)”.

Pensei nas circunstâncias em que meus pais se conheceram e puderam fazer de mim um paranaense bisneto de três fronteiras européias. Minha mãe recém havia deixado o campo, rumo a Ponta Grossa. Ainda moça, conseguira seu primeiro emprego como uma garçonete. Meu pai a conheceu quando estava separado. Era boêmio. E apesar a profissão bem sucedida, parecia buscar na bebida e na companhia feminina um refúgio para sua solidão.

Acaso também eu não seria, à exceção do sangue português, um autêntico prenipote di tre frontiere, bisneto de três fronteiras? Itália (neste caso, fronteira da Áustria, alemã por si só), Alemanha, Polônia e Ucrânia.

Ainda que eu tenha escolhido – ou tenha sido escolhido para mim – a identificação com os alemães, noto meus instintos e atribuo a eles minhas origens. Não me culpo por isso. Apenas atuo diferentemente dos demais, que costumam, por exemplo, relacionar determinados aspectos de sua personalidade aos signos. Talvez eu seja perfeccionista, metódico e romântico como um alemão, ainda que falador e emotivo como um italiano. E talvez também eu seja orgulhoso e apegado às origens como um ucraniano, mesmo sendo nervoso e engraçado como um polonês. E tudo revestido pelo maior presente que Portugal, esta semente de Impérios conforme a definição do grande Gustavo Barroso, pôde me dar: a língua.

Considero como uma feliz determinação da sorte que o Paraná tenha sido destinado para lugar do meu nascimento. Este compõe um dos três estados sulinos. Ao pensar nele, não vejo senão a minha própria ancestralidade. Wilson Martins estava certo, quando o definiu como “um Brasil diferente”, nos seus mais variados aspectos, pois ele é, sem rodeios, um grande reflexo da colonização européia. Parece-me que sob as mais variadas formas, o Paraná se ajustou às expectativas dos imigrantes europeus, fazendo daqui também uma espécie de Nova Europa, uma Europa que apesar de ter sido abençoada por pequenos núcleos homogêneos intactos até os nossos dias, não impediu a fusão e a união dos mais diversos elementos europeus que até mesmo se confrontavam em seu habitat natural. Assim sendo, não houve senão uma harmonia de povos cuja origem, no fundo, era comum. Para cá, o europeu foi encaminhado em virtude da identidade das condições climáticas, e pôde inserir, no que outrora era algo próximo de um vazio demográfico ou uma simples rota de tropeiros, à parte das comunidades indígenas isoladas, seus traços mais marcantes.

A Academia rechaça o que se propõe neste brilhante estudo sociológico sobre os fenômenos de aculturação do Paraná, pois, para ela, é antiquado e até mesmo ofensivo admitir a influência européia sobre nossa região. Não se pode. Nem se deve. É quase caracterizado como um crime fazê-lo. Pega mal, para quem deseja eliminar quaisquer fronteiras a fim de concretizar um velho sonho político de um mundo sem fronteiras, tão sonhado tanto por Lênin quanto por Wilson.

O maior medo dos poderosos é que nós, conseqüências naturais de cruzamentos inter-europeus, passemos a defender tudo aquilo que nos pertence. Hoje, se me fosse possível, se não contássemos com tamanha escassez de interesses voltados à cultura européia em nossa região, certamente eu não tomaria apenas parte do lado germânico, como o faço, participando da Associação Germânica dos Campos Gerais, mas defenderia até mesmo as culturas das quais não sou herdeiro, que, também como as de origem européia presentes em solo brasileiro, agonizam num mundo cujo lema de pluralidade é falso; o multiculturalismo que se busca não é mais que um carimbo que do mesmo modo que se faz com a dita Democracia, imprime uma imagem que em nada corresponde com seu sentido original – assim havia observado o Dr. Enéas.

Sai para uma caminhada. Senti-me como que em outra cidade. Carreguei comigo um caderno, muito embora, à parte das paisagens, não atendesse mais que ao meu próprio passo. Ando de modo estranho. Como é ter a mente tão distante, quando não me é possível corrigir a própria postura? Às vezes é preciso sacrificar horas, em um longo trajeto, e barrar a entrada das idéias que vêm ao meu encontro, a fim de notar, entre os vidros das lojas, o reflexo da forma como ando. Sempre me é necessário interromper a torrente de pensamentos e substituí-la por um mantra único: “Manter-se ereto”. Dizem alguns que desejam ser altos. Admiram minha altura. Mas desconhecem determinados empecilhos. As camas cujo espaço é insuficiente. Os bancos dos ônibus sempre apertados.

Segunda. Feriado local. O sol se fazia como que de corpo presente. Apenas brilhava, mas já próximo da indiferença. Visitei meu amigo Krause. Desta vez, ele parecia melhor. Mais magro, talvez? Não o sei. Dizia estar farto de ver pessoas próximas morrendo. Dizia, também, estar farto do frio, que o impedia de tocar seu acordeão e realizar os trabalhos no paiol. “Eu pensei em você”, disse ele, “até mesmo achei que você pudesse vir me visitar hoje”, referindo-se há algumas semanas atrás, onde, de modo aleatório, resolvi visitá-lo, embora não o tivesse encontrado. Tudo à volta daquele cenário parecia constituir-se como uma cena de filme. Krause, um senhor extraordinário. Sempre pensei que existem pessoas cuja simplicidade da vida as tornam geniais. Quão pequeno me sinto perto delas! Krause não apenas havia construído aquele lar por completo, como composto boa parte dos seus próprios móveis. Um homem da vida-na-prática.

Pensei em meu amigo Edmundo Schwab, da última vez que nós nos havíamos encontrado. Dizia ele que naquela semana, perdia mais um amigo. Um dos poucos que o visitavam com freqüência. Mas, para além da perda, partia outro dos únicos com quem se era possível convergir, em termos de idéias. “É uma pena. Já perdi a grande maioria dos amigos. Acho que é tempo de pensar em uma nova safra de boas companhias e, inclusive, pensei em seu nome”, era o que ele me dizia. O mesmo costumava comentar meu amigo pianista Pilatti: “Com exceção de uma única pessoa, fora eu, todos os outros com quem eu tocava na Orquestra Sinfônica, ao lado do seu pai, já se foram”. Eram as mesmas palavras que Hermann Hesse dizia a um jovem peregrino chileno, ao final de sua vida.

Ao perguntar sobre os benefícios de se estar em contato com pessoas da Academia de Letras dos Campos Gerais, referindo-me ao elogio que eu, de modo honrado, havia ouvido de Luiza Cristina, transmitido por nosso amigo Carlos, em relação ao ensaio que eu havia escrito sobre o próprio Edmundo Schwab, ouvi deste a seguinte resposta: “Acho muito positivo... Aliás, pelo que se sabe, uma cadeira estará vaga em pouco tempo. Você deveria se candidatar...”, “Mas eu!? Que critérios são necessários?”, “Critérios? Votos e, pelo que posso lembrar, um livro publicado. Mas isso é o de menos. Votos você consegue. E material escrito você já o tem”. Meus olhos apenas puderam brilhar. Definitivamente, não me parecia ser un rêve irrealisable. Eu apenas pensava: “Seria eu capaz?”. E recordei a figura de Nassim Haramein: “É preciso romper com o tabu da Física e reconhecer que em nós, assim como na natureza e no universo que nos cerca, residem forças infinitas... É preciso voltar os sentidos para o nosso próprio interior”.

Newton Schner Jr
Enviado por Newton Schner Jr em 08/02/2011
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