A ortodoxia religiosa e a ética do amor ao próximo
 
 
 
 
O tema deste ensaio está relacionado ao universo das escolhas morais e a preocupação em preservar valores que expressem comportamentos inspirados nos mais elevados padrões de convivência, solidariedade e, porque não dizer, de felicidade.
 
Ouvi dizer que “ um homem movido por uma crença tem muito mais força do que noventa e nove movidos pelo interesse”. Fato ou ficção, as crenças, religiosas ou não, exercem um papel importante na vida social.
 
Nosso julgamento moral está baseado num conjunto de crenças adquiridas no decorrer da vida, por isso, é muito comum que um sistema de valores seja adotado num dado momento. As motivações que levam uma pessoa a essa escolha são as mais variadas, desde as mais simples até as mais complexas.
 
Um jovem, por exemplo, assiste a um filme hollywoodiano e subliminarmente adota para si valores pacifistas tratados num roteiro que mostra os horrores da guerra e tem como protagonista um abnegado defensor de refugiados em zona de conflito.
 
Sabemos também que novelas, jornais, documentários, livros, escolas, religiões e praticamente todas as formas de manifestação cultural trazem junto de si uma carga de valores que podem influenciar positiva ou negativamente aqueles que com eles entrem em contato.
 
O ambiente religioso, independente da crença, é aquele que apresenta uma das mais fortes cargas morais. Regras, exemplos, recomendações, conselhos e punições convivem tão harmoniosamente quanto possível dentro do conjunto de preceitos adotados.
 
Os adeptos, em países onde a liberdade religiosa é legalmente respeitada, como o Brasil, escolhem suas religiões segundo critérios amplamente variados que dependem em última análise de uma escolha. Essa escolha mesmo que potencialmente influenciada pelo marketing televisivo, ou pelo de porta em porta, ou ainda por qualquer outro motivo, pertence àquele que a adota.
 
Algumas crenças religiosas asseguram que não são as pessoas que as escolhem, mas Deus é que se encarrega de encaminhá-las até elas e que a escolha nunca é pessoal. Essa afirmação só é verificável quando se aceita esse mesmo sistema de crenças, fora dele isso é impossível.
 
Para darmos seguimento à reflexão precisamos esclarecer o significado de uma expressão chamada “ortodoxia” que segundo o Dicionário On Line de Português significa “Que está conforme a uma doutrina definida. Que é rígido em suas convicções. Aquele que assume uma posição ortodoxa em qualquer domínio”.
 
Ortodoxo, portanto, é a pessoa que assume uma opção rígida em relação ao conjunto de idéias que adota. Seu critério de validade em relação ao que acredita depende inteiramente da fidelidade aos valores que inicialmente aceitou como válidos. Qualquer variação lhe causa espanto e repulsa. Sua zona de conforto e confiabilidade sente-se ameaçada sempre que uma idéia ou comportamento conflite com aquilo que acredita.
 
Sabemos que essa momentânea instabilidade criada pelo questionamento de posições ortodoxas pode variar de uma simples cara feia até guerras fratricidas responsáveis pela morte de milhares, senão milhões, de pessoas em todo o mundo. O assunto, portanto, é de extrema relevância.
 
Embora a ortodoxia possa ser justificada legitimamente em face da deturpação que idéias e crenças originalmente boas possam sofrer ao longo do tempo. Ela firma-se na pretensão de preservá-las tais quais foram concebidas por seus idealizadores, porém, na maioria das vezes mascara traços de insanidade e intolerância.
 
Uma vez que o ser humano acolhe em sua consciência uma determinada crença como, por exemplo, o cristianismo, ele vai se deparar com um número significativo de textos que dão conta das bases dessa mesma crença, principalmente, aqueles integrantes do compêndio denominado “Bíblia Sagrada” que contém, entre outras coisas, aspectos da vida e dos ensinamentos de um homem chamado Jesus, núcleo central da fé cristã.
 
Quatro ao todo são os livros, denominado evangelhos, do referido compêndio que tratam especificamente da vida e obra desse notável homem,  de sabedoria invulgar e incomparável senso de justiça e moral.

Aqui surge um obstáculo considerável aos ortodoxos. Quem os escreveu? Quando foram escritos? Por que apenas quatro? Haviam outros? São perguntas incômodas porque as respostas afrontam a ortodoxia.

Em primeiro lugar três deles foram escritos por discípulos de Jesus e um por um médico chamado Lucas que não foi discípulo, mas seu relato se apresentou com aparente consistência. Eles foram, segundo fontes autorizadas, escritos muito depois da morte do protagonista.

Segundo consta, a história registra incontáveis outros relatos, denominados evangelhos apócrifos, que foram identificados ao longo do tempo, alguns até foram descobertos recentemente.


A contradição entre os ditos evangelhos é tão relevante que obrigou a religião dominante a determinar a validade somente de quatro. Isso se justificaria, segundo ela,  pelo seu grau de coerência.

Ora, lembremos que essa escolha se deu num momento histórico que marcou o predomínio absoluto e opressor da dita religião do século três até o século dezoito da era cristã e o predomínio relativo até os dias de hoje.

Qual a possibilidade dessa opção por esses quatro livro ter sido arbitrária? Qual a possibilidade de supressão de temas importantes ou até mesmo da inclusão de outros ao bel prazer do status quo? Qual a possibilidade de que outros evangelhos mais fidedignos ainda ao relato original tenham sido varridos pra baixo do tapete simplesmente por subverterem o poder constituído, contrariando interesses políticos e econômicos?

Não bastassem esses questionamentos, partindo da hipótese de que os quatro livros fossem mesmo os mais confiáveis, outro problema surge de modo a implodir o alicerce sustentado pela ortodoxia. O instável terreno das interpretações!

A religião que escolheu os quatro livros afirma categoricamente ser ela a legítima representante temporal de Jesus. Outras religiões cuja sistema de crenças adotou os mesmos quatro livros escolhidos pela primeira, lutam ardorosamente para dizer o contrário, ou seja, são elas as legatária, a criadora é apenas uma vil  usurpadora.

Ora, como quem cria pode usurpar? Seria como ler o livro de alguém e negar-lhe a autoria, e o que é pior, atribuir a si o patrimônio intelectual de outrem. Isso soa paradoxal demais.
 
Uma das vertentes mais racionais do cristianismo é representada pelo Espiritismo proposto por Allan Kardec, racional porque, engendrada no contexto científico do século XVIII, fundou seus postulados em critérios pautados pela razão e pelo  método científico.
 
Observação, questionamento, experimentação, verificabilidade, são alguns ingredientes utilizados na elaboração do sistema de crenças oferecidos por essa linha cristã.


Tem por objeto de análise os mesmos quatro livros escolhidos pela igreja mãe, na mesma linha das religiões que protestam contra o matriarcado, mas com duas diferenças fundamentais: centra-se apenas no aspecto moral de cada um desses livros e insurge-se contra dois dos principais dogmas defendidos pela matriarca em seus textos selecionados, a ressurreição dos mortos e unicidade da existência.

 
Agora não se trata mais de disputar a representação temporal de Jesus, de uma rebeldia quanto a um poder auto-atribuído por uma instituição arcaica e tirana, mas algo diferente, estamos diante da invalidação parcial do textos sagrados em nome da coerência, não mais com os interesses institucionais escusos e decadentes, mas com a razão e com o sentido essencial da existência humana: a sua liberdade e a sua evolução.
 
Kardec não criou o método científico, mas o aplicou a um conjunto de fenômenos onde o horizonte ético desponta com forte conteúdo humanista, embasado sobretudo no alicerce moral proposto por Jesus.

Nas premissas fundamentais da proposta desse estudioso estão a criação de uma pedagogia religiosa onde o ser humano passa a ser o artífice de seu próprio destino. Sua felicidade e infelicidade encontram-se em seus próprios esforços de aprendizado intelectual e moral.

As aparentes injustiças presentes na condição humana surgem como justas e coerentes quando compreendidas como resultado de uma opção existencial entre o adiantamento moral e o chafurdamento na lama dos vícios e dos baixos instintos.

 
Impressiona a cristalina clareza com a qual Kardec elaborou o Espiritismo, a lógica precisa com a qual ele ensina seus pupilos a identificarem, por si mesmos, as teses sem sustentação.

Esse comportamento, aliás, é o que mais diferencia sua proposta renovada de cristianismo. Não há necessidade de intermediários, tutores e intérpretes além do necessário para o aprendizado, a partir daí, o aprendiz caminha sozinho rumo à sua própria evolução.Essa meta só se alcança num ambiente de profundo respeito ao ser humano e ao seu potencial.

Infelizmente essa reflexão fere de morte as pretensões ortodoxas porque lhes tira a autoridade e o autoritarismo de verem prevalecer suas tacanhas opiniões em detrimento da autenticidade daquilo que Jesus, o cristo, em sua proposta moral propôs ao ser humano.
 
Ao invés de esmiuçarem as incontáveis nuanças do “amar ao próximo como a si mesmo” contentam-se em amar ao próximo como bem entendem, ou quiçá, sendo mais justo, como conseguem, em seu patamar de adiantamento moral e intelectual.
 
É muito mais cômodo intitular-se defensor da “pureza” doutrinária disseminando a tese de que os demais são incapazes de, por si só, desenvolverem discernimento para fazerem isso como propunha Kardec.

Defendem a fidelidade às obras básicas, no entanto, negam que estas devam ser compreendidas à luz da razão, posto que só eles mesmos são capazes de compreendê-las em sua essência.

 
Tornam-se verdadeiros patrulhadores do comportamento alheio em relação ao que se deve ler, dos sites que se pode visitar, das idéias que se pode analisar.
 
Tranformam-se-se de obreiros do bem em inquisidores mesquinhos, pois não reconhecem o brilho e a autenticidade de seu semelhante, bem como sua capacidade de pensar e ser livre, violando, dessa forma, irremediavelmente os ensinos de Jesus.


A proposta deste ensaio, portanto, à guisa de conclusão, é demonstrar que a opção pela fidelidade a um texto sagrado não deve ser usada como disfarce para o desrespeito à capacidade de discernimento do próximo.  


Como ficam os jovens e os inexperientes em face das deturpações doutrinárias que porventura venham a surgir, como defendê-los?

Ora, com as armas que Kardec legou aos estudiosos de sua obra. Com o ensino, com a lógica, com a inteligência, com as perguntas e até mesmo com os erros, que servirão para o aprimoramento dos que nele incorrerem, mas nunca com a obtusa pretensão de substituir o próximo em sua marcha evolutiva negando-lhe o direito de chegar às suas próprias conclusões acerca daquilo que lhe convém.

Convém sim amar ao próximo como a si mesmo, em detrimento da ortodoxia, mas nunca amar a ortodoxia em detrimento do amor ao proximo, respeitando-o, dessa forma em sua condição existencial. Isso sim é algo próximo de buscar  a suavidade do jugo de Jesus e a leveza de seu fardo.