O Último Pulo

O Último Pulo

Joanilson

Ele passou a noite fora. Somente lá pelas nove horas da manhã foi que apareceu. Parecia um pouco cansado. Não fez as costumeiras escaramuças para pedir o leite. Emitiu apenas um miado manhoso quando me viu. Mesmo assim, apanhei o leite na geladeira e me encaminhei para a vasilha. Ele ficou parado me olhando. Eu o chamei. Uma, duas, três vezes. Ele continuou em pé, me olhando. Eu pus o leite no seu pires, peguei-o pelo meio do corpo e o levei em meus braços para perto do leite. Ele apenas olhou o leite. Peguei a vasilha com a ração à base de peixe e servi no comedouro apropriado. Da mesma forma, ele apenas olhou e saiu na direção do quartinho que lhe servia de dormitório diurno. Deitou-se sobre a “cama” plástica e lá ficou.

Passei o dia inteiro fora, só retornando por volta das nove da noite. Ele continuava lá, deitado no mesmo local onde ficara pela manhã. Fui lá. Ele apenas levantou os olhos para me encarar. Como fizera pela manhã, convidei-o novamente para comer, chamando-o pelo nome. Nada. Não fez qualquer menção de se levantar. Pensei comigo: amanhã ele come.

Acordei por volta das seis horas e fui ao quintal. Ele continuava deitado no mesmo local. Saí para a caminhada diária e voltei cerca de duas horas depois. Aí sim, ele levantara do local onde dormira e estava deitado sobre uma das cadeiras da cozinha externa. Ele me viu, mas continuou deitado. Fui lá, acariciei-o com uma leve massagem sobre o pêlo das costas. Ele gostou, mas ficou quieto. Da mesma forma do dia anterior, não quis comer nada. E desta forma foram cerca de seis dias. Eu tentava e ele apenas cheirava a comida, não comia nada.

Devo lembrar que dois dias antes de ele rejeitar a comida pela primeira vez e iniciar esse comportamento que venho descrevendo, eu havia recolhido a metade traseira de uma ratazana deixada no jardim.

Como ele era gordinho e fofo pela consistência do seu pêlo, só agora comecei a notar que emagrecera um pouco. Aí a “luzinha” acendeu. Levei-o ao veterinário. O diagnóstico foi dado de imediato, particularmente após o meu relato sobre o achado do jardim. Ele estava desidratado e anêmico. Poderia ter comido rato contaminado ou envenenado. Ficou o dia inteiro tomando soro. À tardinha fui buscá-lo. Ele parecia mais disposto. Em casa ofereci leite e ração. Ele bebeu um pouquinho do leite.

Levantei na hora de sempre. Quando abri a porta dos fundos da casa me deparei logo com uma novidade: Ele havia urinado ali na entrada. Ou melhor, ele havia se urinado, porque seu comportamento normal não permitia tal insanidade.

Passei os seis dias seguintes aplicando-lhe as injeções de vitamina e ferro que o veterinário lhe havia receitado. Só aí foi que verifiquei o quanto ele havia perdido de massa muscular e gordura, pois tive dificuldade para conseguir encontrar o músculo da perna. A medicação não fez efeito algum.

Logo que apliquei a última dose, voltei com ele á clínica veterinária. O médico estranhou não ter havido a reação desejada ao medicamento. A esta altura ele já estava bastante debilitado, com os olhos azuis ficando amarelados, a boca cerrada, com incontinência urinária, etc.

Pelo olhar de médico senti que havia chegado ao fim aqueles dez anos de companhia daquele espécime notável e admirado por todas as pessoas que frequentavam a nossa casa.

Sem meias palavras, o veterinário disse que não praticava o sacrifício, mas indicou o seu colega Everaldo, sugerindo que submetesse o caso ao amigo. Entrei em contato com Everaldo e acertamos para o dia seguinte, às onze horas, quando eu o levaria para a consulta.

Devo acrescentar que desde o primeiro dia de mudança de comportamento do meu homenageado, eu estava só em casa, pois a minha mulher e demais familiares estavam veraneando. Eu até brincava com a situação, dizendo que todos viajaram e me deixaram cuidando de cinco idosos, a saber: nosso gato, meus pais, meu sogro e eu.

Graças a Deus, naquele dia de difícil decisão, minha mulher retornou, e reconheceu o sofrimento do bichano, mas ainda havia a possibilidade de Everaldo mudar o diagnóstico.

Dez e meia eu já estava lá no posto veterinário de Everaldo. Fui atendido por Saulo, outro veterinário de plantão, que já sabia do problema. Saulo o examinou cuidadosamente e aventou a possibilidade de fazer um tratamento mais acurado. Mas tudo dependia da experiência de Everaldo. O sacrifício, ou melhor, a eutanásia era o último recurso para amenizar aquele sofrimento. Graças a Deus a ética médica prevalecia ali. Já era quase meio dia quando resolvi deixar para a tarde, já que Everaldo não aparecera no posto, conforme o combinado.

Duas horas, e lá estava eu aguardando o diagnóstico. Ele, o nosso felino, não estava presente. Logo em seguida, chegaram Saulo e Everaldo conduzindo-o numa gaiola própria.

Fui apresentado a Everaldo pelo Saulo e fomos direto ao assunto, após as desculpas de Everaldo face ao atraso. Então veio o que nós menos queríamos: nosso MIMO, mesmo com toda sua majestade siamesa, não teria mais condições para reagir a um tratamento, uma vez que estava muito debilitado pela doença e pela idade. Quando Everaldo disse que a decisão era minha, eu olhei para a gaiola onde se encontrava MIMO e vislumbrei nos seus bonitos olhos azuis, marejados, - mas agradecidos, acredito - pelo que tentamos fazer pela sua saúde, pela sua vida. Vislumbrei, ainda, um pedido: “TERMINE O MEU SOFRIMENTO”. Este foi o seu ÚLTIMO PULO.

C. Grande, Pb Jan 2004.

Joanilson
Enviado por Joanilson em 02/05/2011
Código do texto: T2945406
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