SONHAR A VIDA...

Ele tem a percepção de que há algo em si que se enovela, se avoluma, nauseia o corpo e limita a vontade. É como um nevoeiro que persiste, quão insidioso parasita que restringe a vida e entorpece o pensamento. Ele consente, em arrepio a uma vontade débil, permanecer estático enquanto a névoa se adensa, encobre as formas, abafa os brilhos, atenua os sons e empalidece os pulsares da vida. O seu espaço é agora um mundo húmido, amorfo e frio. O corpo, tolhido e dormente, perde a força vital, a alegria e a excitação do sentir. Aflito e entristecido, sabe que se arrasta solitariamente pelo escuro silêncio da vida escolhida. O espírito, agora fraco e exíguo, agoniza ao contemplar o sonho magnífico que um dia vislumbrou. Impotente e frustrado, o pensamento desespera ao entender que a quimera se distancia, perde o seu perfume, arrefece e se descolora, esfumando-se, esvaindo-se e que da vida resta apenas o sonho e este agora também se lhe escapa. Está só...

E quando tudo, como agora, fica tão enevoado e confuso, quando ele está assim tão sozinho e tão distante de tudo o que é vida, mais anseia por ver, a doce senhora dos seus sonhos. Procura-a para repovoar com o seu encanto, o grande espaço vazio onde outrora aconteciam os sonhos. De tanto pensar naquela que precisa para companheira do pensamento, não pode evitar sonhar que a vê de facto e que ela lhe oferece a apreciar, altiva, mas compreensiva, o calor do seu afecto, a bondade generosa do seu ser e como bálsamo, a sua beleza. Logo, pede ao tempo, que pare por um momento, enquanto ela lhe concede que o seu olhar belo, o aceite, o console e o conforte. E, enquanto imagina que aquela senhora que vem envolta em aura, o inunda com o seu olhar meigo e o seu calor suave, ele aguarda quieto, transido de mil receios de que a sua ninfa mude de pensamento e o deixe sem a poder olhar.

E porque ele está assim, sem descobrir algum trilho seguro na floresta de bruma espessa, ele precisa mais do que nunca encontrar a sua musa. É quando a solidão se agiganta, que ele procura desesperadamente a companhia da sua dama. Busca ansioso, permissão para olhar nos seus olhos. Faz tudo para sentir o meigo afecto e a ansiada condescendência de um seu sorriso. E se por feliz imaginação, o seu olhar pousa nele, fica logo inquieto para segurar por alguns momentos, aquele seu mais generoso carinho. E no mais terno momento do seu sonho, quando os olhos dela beijam os seus, são pão e luz, são aroma suave e delicioso e ele sente a confortante ilusão de que por momentos tem finalmente alguém para manter vivo o seu pensamento.

Ele sente-se muito só, mas sabe que não há mais o que tentar, perdidos que foram os tempos de o fazer. Agora, ele percebe em agonia, como apenas soube acanhar a sua vida e, por isso, o espírito rebela-se tardiamente e a esperança apaga-se devagarinho. Sente-o e assusta-se. Desde pequenino receou estar só, agora continua sem companhia, está perdido inutilmente, num mar de gente. Primeiro, porque não soube e agora porque não pode. Estende os braços para a multidão. Todos seguem imperturbados e insensíveis. Ninguém o vai ver, ninguém o vai ouvir, ninguém vai sentir que ali, ele se vai apagar.

Aflito, vira-se para dentro, procura entre os trilhos, aquele que o leve à senhora dos seus sonhos. Procura por esta derradeira via, como aliviar a sua dor. Mas é mais e mais difícil segui-la. As passagens da mente, ora que foram tanto percorridas, agora confundem-no, porque são menos distintas. É cada vez mais penoso encontrar o rumo entre elas. Se duvida, logo tudo se apaga. Apega-se ao que resta de energia e grita quase em agonia: “Se estás aí, porque tardas a oferecer-me um olhar, uma mão?” E enquanto espera, no seu espaço vazio, pensa nela, pensa que só ela é, ora a fuga que demanda, ora o rasto ilusório de esperança de que nem tudo está perdido. Mesmo que seja só neste seu mundo privado, no espaço que é só do pensamento, acredita que ela existe e tão intensamente que parece que a sente a dar-lhe a sua companhia. Imagina-a suave e meiga, como a acha linda, a sua companheira. E, ao pensar nela assim, também se torna menos frio, o tempo que vai passando. Por isso, clama, como se ela o pudesse escutar: “Venha a mim, senhora dos meus sonhos, deixe-me ver o seu rosto, deixe que olhe o seu sorriso e deixe que ocupe a mente a pensar em si!”
Enquanto ela não chega, logo esmorece de uma vida feita só do que parece. Desgasta-se no labor infindo de pretender guardar a imagem que ela não lhe oferece e, esta esvai-se, dissolve-se e fica o nada. Está perdido entre o desejo de a poder olhar e o cansaço de a conseguir imaginar.

Mesmo quando já prostrado e vazio, o medo do silêncio, a aflição de não ter a quem dar o pensamento, o receio de não encontrar um calor humano, fá-lo voltar a procurá-la e lá segue apressado, em busca de passagem que o leve até ela, a sua princesa. Carências longas e sentidas compelem-no a que siga sem descanso em sua demanda. Precisa descobrir se o que vai na sua alma é fruto de imaginação cansada, ou se ela pode existir e lhe quer animar o pensamento. E clama a sua esperança: “Se por um fino cabelo de fada, existes, senhora, enche-me o peito de alegria e deixa-me ver o brilho lindo do vosso olhar.” Assim, perdido no doce êxtase da a contemplar, poderá então viver o sonho da sua companhia ou sonhar que vive a beleza e o conforto que vem dela. Afinal, o que mais anseia, é poder admirá-la, de olhos nos olhos, com toda a lealdade e sem receio de ser rejeitado. Esse é o seu sonho, a vida que ainda pode viver, se ela se deixar encontrar.


                                  * * *

Ele acorda, já a madrugada ia adiantada. Ela está no seu pensamento. Apercebe-se que sorri e sorri pelo conforto do sorriso. Sente-se bem e dispõe-se a voltar a adormecer. Permite que os pensamentos fluam livremente, sem tentar questioná-los ou resistir-lhes, mas, no íntimo só quer voltar a vê-la. Ela continua com ele, leve e confortante como o calor suave duma manhã de Verão.

Quando tudo começa a ficar mais nítido, menos confuso, ele está de pé, numa vasta planície. A aragem que o envolve é amena e bem vinda. A erva, toda ela bem alta e quase uniforme, ondeia brandamente ao sabor da brisa. Toca-a levemente e sente-se bem. O verde forte cede num e outro lugar, a um tom amarelado que denuncia o começo dos calores do Verão. Cá e lá, arbustos não ousam quebrar substancialmente a monotonia da paisagem. Pequenas flores silvestres de tons suaves emprestam com o seu aroma delicado, um momento pacífico e belo. Sente a sua pequenez ao ver-se só na vasta planície.

Ela surge, caminhando altiva sobre nada que possa explicar, como se andasse sobre nuvens. Vê o seu rosto de traços finos e perfeitamente ovalado e sente-se estremecer. Parece reconhecer os traços delicados e suaves da sua face. Não pode ser outra senão a linda senhora com quem sempre sonha. É ela, a dona dos mais lindos olhos, cuja expressão se confunde entre o meigo generoso e o distante afectuoso. Cada vez mais, sente-se seguro que é ela que se aproxima, a sua musa. Só ela pode ser dona de tão linda boca, emoldurada pela cor suave e jeito harmonioso dos seus lábios. Já começa a sentir-se outro, ao ver que se aproxima. Percebe uma bela emoção que se apodera de si. Regozija-se, estremece...

Uma veste longa cobre-a dos ombros aos pés. O tecido claro e leve deixa imaginar claros e escuros, sombras e penumbras, vales e colinas. Ele adivinha o que não vê e sente-se maravilhado com tanto de tão delicado. Ele anseia que ela se aproxime para o extasiar de encanto. Vem calma, distinta e a sua passada é suave e encanta. Quer acreditar que ela o vai olhar. Antecipa em crescente emoção que ela traz a mensagem que lhe vai encher o coração. Engole em seco entre a emoção e a expectativa. Sente-se tão bem a olhar, a que é a mais delicada e bela flor da Natureza. É a quem mais deseja, sabe bem quanto precisa vê-la e como é importante poder olhá-la fundo nos olhos, encontrá-los calmos, generosos e condescendentes. É ela, que vem em glorioso encanto oferecer-lhe a sua companhia e ele acredita feliz...

Já está tão próxima, o seu perfume envolve-o e o coração trai-o, pois não pode evitar que ela o ouça a bater tão descontrolado. Abre os braços em ânsia de sentir alguém. Ela continua a avançar, linda, tão feminina e cheia de encanto como nunca imaginara que fosse assim. Não cabe em si de expectativa e já a vê no seu abraço, sente-se reviver no seu calor, a beber o seu perfume e a perder-se na profundidade encantadora do seu olhar tão acolhedor, tão meigo e já tão próximo.

Mas, segue sempre, altiva e imperturbada. Quando se cruza com ele percebe um sorriso que não pode ser o da sua princesa. Por momentos, receia que ela não abrande, que não vá parar. Deixa-se iludir e pensa que ela se afasta, apenas para que a possa apreciar enquanto segue, mas que logo vai voltar. Acompanha-a com o olhar. Contempla o corpo que se arreda. É tão maravilhoso como o é a sua maneira de andar. Aprecia a leveza e graça dos seus movimentos. A fina veste que a cobre, enaltece o seu corpo maduro e ele sente que se perde na doce fantasia, de querer para si os delicados tesouros que ela lhe oferece.

Ela distancia-se, caminhando sobre tudo e sobre nada, leve e adorável como se de uma bela fada se tratasse. Sente que algo não está bem. O choque deixa-o ali especado, atordoado, destroçado. Um frio enorme começa a tomar conta dele. Quer andar mas o corpo não obedece. Grita angustiado, mas não ouve a sua voz e ela não olha para trás. Esforça-se para a alcançar, mas pouco avança de receoso e assustado...
Passa por tempestades de vento, relâmpagos e chuva, arbustos e silvados que o rasgam. Tenta sempre alcançá-la, mas o mais que consegue ao aproximar-se é notar que o seu sorriso é agora altivo e distante. O tempo passa e ela afasta-se impassível e fria. Insiste no seu encalço mas as pernas tornam-se mais pesadas. O coração bate-lhe descontrolado, sem caber mais no peito, de cansaço, de aflição, de desgosto. A cada passo, a cada movimento ela fica mais distante, mas sempre linda, excitante e inesquecível no seu pensamento. Ele vai ficando para trás, rasgado, vazio e ferido fundo, na essência do ser. Lá ao longe, ela segue tão encantadora, bela e insensível como a sua veste.
Quando já não consegue mais perceber a sua silhueta, fica no ar o seu perfume e por ele, acredita que foi ela que passou. Depois cai sobre a erva tão acabado e infeliz. Fica-lhe o perfume que paira suave, tentador, ilusório.
Sente que a erva abundante sob o corpo se humaniza para seu espanto e se torna nela. Não vê o seu rosto, mas é a sua fragrância que aspira e pensa que é ela que está ali, que lhe sorri docemente...

Ela continuará passando pela sua vida, altiva, intocável e linda como sempre. Também as ervas na grande planície vivem e se cruzam, mas não partilham a seiva, limitadas nos seus caules...

Tércio Oliveira
Enviado por Tércio Oliveira em 24/11/2006
Reeditado em 23/08/2010
Código do texto: T300470