PROPOSTA ÉTICA E ESTÉTICA PARA UMA CIDADANIA CONSCIENTE

De Lars Von Trie pouco sei.

Sei que ele muito me conhece, pois a cada filme seu eu me vejo nesta ou naquela personagem. Vejo mais.

Vejo momentos que já experimentei.

Vejo comunidades das quais participei.

Vejo pessoas.

Vejo o ser humano com todos os seus sentimentos, emoções, mazelas e benesses.

Vejo você que se questiona.

Vejo você que é indiferente às questões intimistas e que se preocupa apenas em acordar, beber, comer e dormir novamente e não se preocupa, não se ocupa nem com a vida muito menos perguntaria sobre a morte. Basta a passagem breve neste planeta que também vai passando na sucedência de dias e noites.

Sobre o cineasta sei que o Von de seu nome não reporta à Alemanha. É um apelido que lhe deram e ele incorporou ao seu nome.

Fugindo à educação burguesa, seus pais o educaram de uma forma diferente. Em sua casa era proibido externar emoções e qualquer manifestação religiosa.

Assim ele se formou. Uma pessoa que olha o mundo com olhos que fogem ao senso comum.

Ele costuma dividir suas produções em capítulos e em sua homenagem comentaremos os seus filmes assistidos no Cineclube de Barbacena (Barbacine) apresentando-os em capítulos na ordem em que foram exibidos nas fecundas quartas-feiras cinéfilas.

CAPÍTULO 1-

Ondas de Destino – Lars Von Trier

Nesta reflexão sobre as atitudes das instituições que agrupam a diversidade humana, o cineasta se inspirou em uma lenda dinamarquesa.

Mostra como as pessoas especiais não encontram espaço, compreensão, aceitação nos vários segmentos. Poucos são os que aceitam e protegem os sublimes.

A família sente-se incomodada com o excêntrico de tais pessoas. A Igreja e sua ortodoxia as exploram e agravam suas “demências”.

As instituições laborais não são adequadas a estes seres que não seguem os ponteiros estabelecidos por Cronos, que reina no mundo do trabalho.

Se cidadãos comuns e suas instituições não sabem lidar com os especiais, imaginem o que os rudes, animalescos fazem com os anjos encarnados, com as fadas que corporificam as formas humanas?

Apesar de evidenciar os cru e a nudez despojada dos seres humanos, é um filme que mostra a beleza do que é puro.

CAPÍTULO 2-

Os Idiotas – Lars Von Trier

Um grupo de pessoas foge aos rigores da sociedade e procuram viver de forma espetacular.

Fazem-se de imbecis para tirar proveito desta sociedade que eles rejeitam e são rejeitados por ela.

Uma simples mulher é aliciada por eles. Eles, esta comunidade estranha, nada ou pouco sabem sobre ela. Mas eles a colhem nada pedindo e ela se sente acolhida, por sua vez.

Os devaneios coletivos se sucedem, suas maneiras não são questionadas pela neófita.

Semanas se passam até que ocorre um incidente e ela resolve procurar sua família.

Esta cidadã decide voltar à “normalidade” e procurar os seus. Entretanto, ela que sofreu pela morte do filho e daí sua atitude de optar pela alienação não será compreendida pela família. Ela se sentiu mais acolhida entre o grupo marginal, ‘Os Idiotas’, do que entre os seus e a sua sociedade.

Portanto, o filme é uma reflexão sobre o que é família, os valores sociais, a posição dos marginalizados e dos que se fazem marginalizar.

Atenção, pais. Não seriam estes os motivos que levam os jovens à rebeldia e ao mundo das drogas, a cometerem “idiotices”? Pensei muito nesta questão após ter assistido ao filme.

CAPÍTULO 3-

Dogville - Lars Von Trier

Pequena cidade como tantas nos Estados Unidos e no mundo. Seu caráter extrapola as fronteiras nacionais e se caracteriza como qualquer outra com suas pessoas. Talvez lembre até Frondosa do livro de Luís Fernando Veríssimo.

Ali mora Tom, metido a escritor e tantos outros estereotipos e arquétipos deste tipo de urbanidade. Ou seja, o médico aposentado, o produtor rural, a beata, a jovem sedutora e a economia arruinada. Uma cidade que não ofertava nada a não ser o cuidar da vida alheia.

No filme, o foco não é o cenário e nem a cidade em si, mas o foco é mediocridade dos seres humanos que a habitam.

Perturbando o cotidiano da cidade e a rotina das pessoas chega Grace, que estava fugindo de seu mundo buscando a virtude das pessoas comuns, simples, do interior.

Dogville, a Vila dos Cães.

E era isto que Grace iria encontrar, os cães. Pessoas tão ordinárias ou mais do que aquelas de seu mundo que ela fugia.

Ela que buscava expurgar seu orgulho e vaidade, era mais nobre do que qualquer outra que já havia interagido ou interagiria naquela cidade.

Era nobre.

No final ela viu que só restava uma condição, uma atitude, um comportamento a seguir.

E Grace fez sua opção.

O filme critica o laureado amor cristão, a propalada democracia, o individualismo e ao mesmo tempo a coletividade, ao “Caminho de vida americano”, ao capitalismo, onde tudo é artigo de compra e venda, ao falso altruísmo. Enfim, ao ser humano.

CAPÍTULO 4-

Manderlay

A saga de Grace continua.

No caminho de caça por novos territórios onde exercer seu poderio com seu pai, o cortejo de gangsteres encontra Manderlay, em Mississipi.

O filme se passa em oito capítulos e começa com uma fala de seu pai criticando o imaginário e altruísmo feminino.

O grupo é interceptado por uma negra que pede ajuda para o que estava acontecendo naquela fazenda onde a prática da escravidão ainda era mantida.

Para reger a propriedade havia um livro, um código de conduta conhecido por “Livro da Madama”.

A velha proprietária morre e Grace resolve ficar para levar liberdade, igualdade e democracia àquele reduto onde, em pleno 1933, persistia a danosa relação social entre brancos e negros.

Democracia? Ótima reflexão para se perguntar, indagar e especular. Governo de que maioria? Quem são as partes que formam o todo social? Para quem? De quem?

O filme sintetiza os usos e abusos que ocorreram e envolveram todo o processo pós-escravidão.

Os negros estavam prontos para a liberdade, para se integrarem à sociedade?

Os brancos eram generosos? Até onde os interesses de uns iram e onde começava os do outro?

O filme leva à reflexão sobre o condicionamento humano, o novo, as construções sociais a serem feitas, o vazio que a queda do velho deixou.

O filme surpreende. Surpresa maior é o fato que o tal código de conduta não fora escrito somente pela poderosa senhora que morrera.

Como os negros se viam? Será que eram melhores que os brancos que os exploravam?

Indagações que o filme levanta e ao seu modo Trier responde.

Sem dúvida é mais um questionamento à sociedade americana. Ou melhor, usando a expressão geopolítica correta e propondo a revisão do adjetivo pátrio referente àquela nação: à sociedade estadunidense, uma vez que nós brasileiros, canadenses, mexicanos e outros somos também americanos.

É mais uma produção do cineasta que passa pela sexologia também.

E aí, adentramos o caminho da película que abriria o próximo capítulo de nosso texto: ‘O Anti-Cristo’? Mas que por ser tão complexo deixamos para comentá-lo à parte.

Vale conhecermos a proposta estética deste cineasta europeu, Lars Von Trier, que nos abre os olhos e a mente sobre nós próprios, os outros e remexe naquilo que estava solidificado e que precisa ser revisto.

Afinal vivemos em outros tempos e em nova etapa da história da humanidade.

Leonardo Lisbôa

Barbacena, 09/06/2011.

Leonardo Lisbôa
Enviado por Leonardo Lisbôa em 10/06/2011
Código do texto: T3025745
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