Reflexões sobre o século XX: o homem partido ao meio

Este é tempo de partido,

tempo de homens partidos.

[...]

Este é tempo de divisas,

tempo de gente cortada.

De mãos viajando sem braços,

obscenos gestos avulsos.

Carlos Drummond de Andrade

Os versos de Drummond que servem de epígrafe para este texto fazem parte do livro A rosa do povo, que veio a público em 1945, ano que assinala o fim da II Guerra Mundial, logo depois da explosão das bombas atômicas nas cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki, operação planejada e executada pelos Estados Unidos da América em agosto deste mesmo ano.

As imagens da explosão percorreram (e ainda percorrem) o mundo contemporâneo, sempre a nos lembrar do seu raio de abrangência. São os estilhaços que sobraram das demonstrações de ganância e prepotência, ignorância e insensatez da sociedade pós "belle époque", pós energia elétrica, pós avião, quase a pisar na lua.

É desolador pensar que a morte de centenas de milhares de pessoas tenha ocorrido, apesar da existência da secreta conferência de Ialta, realizada em fevereiro de 1945, à qual compareceram os três homens mais poderosos do mundo de então, Franklin D. Roosevelt (pelos Estados Unidos), Josef Stalin (pela União Soviética) e Winston Churchill (pelo Reino Unido). Como resultado deste encontro, assinou-se um acordo para que se pusesse um fim rápido àquela guerra que se arrastava desde 1939.

Após a conferência da alta cúpula mundial, e numa primeira e clara manifestação de seu poder bélico, os Estados Unidos protagonizariam um capítulo ímpar na história universal e, inserido um ponto final nesta página dos feitos humanos, um novo enredo começava a ser engendrado para o planeta: o da Guerra Fria.

Alguns anos depois das explosões atômicas, já na década de 1960, o mesmo Drummond diria “A bomba / vai a todas as conferências e senta-se de todos os lados” [...] “A bomba / não sabe quando, onde e porque vai explodir, mas preliba o instante inefável” . Era o poeta assombrado com os homens e angustiado com a Guerra Fria, consequência do fim do estado de beligerância das décadas anteriores, mas também uma espécie de demônio sempre presente atormentando a consciência da humanidade.

O mundo estava bipartido entre duas concepções político-econômicas para a sociedade, entre socialistas e capitalistas, entre bons e maus, não necessariamente com esta correspondência. Cada um dos lados se armava mais e mais para evitar a terceira guerra. Cada um dos lados ostentava uma auréola de caridade, imputando ao lado adversário a pecha do terror.

Assim estavam (ou seria melhor empregar estão?) os homens contemporâneos, em cuja cabeça sempre parece(u) estar o pêndulo do fim, justamente por causa da existência do saber destrutivo advindo da era atômica. O homem contemporâneo comeu o caroço do fruto do mal. Fatalmente, deverá ser expulso de sua própria racionalidade, engasgado com o poder de destruição que conquistou.

A este homem contemporâneo, medroso e temido, hostil a si mesmo, quase esmagado pelo terror do seu tempo histórico, dividido, fragmentado, torturado entre o bem e o mal – muito mais dividido do que o homem do século XVI, XVII – Marx chamou de “alienado” e Freud, de “reprimido”. O poeta (que me acompanha desde o início deste texto), mais delicado, diz que “é tempo de meio silêncio, de boca gelada e murmúrio” pois “O espião janta conosco” .

O mundo ficou perigosamente dicotômico, perigosamente repartido entre uma moral argentária, própria do capitalismo desenfreado (sobretudo a partir do século XIX) e uma ditadura do proletariado socialista.

O Muro de Berlim, dividindo a Alemanha em duas, como uma moeda, em cara e coroa, pode ser considerado como o símbolo maior desta bipartição que, mais do que dividir dois sistemas econômicos ou dois sistemas políticos, dividiu pessoas, fazendo-as rivais, inimigas, algozes e vítimas.

Tendo às costas e à frente um panorama semelhante ao descrito, Ítalo Calvino, dentre seus textos de 1962 a 1977, dizia o seguinte:

"E assim, mesmo agora, se me perguntam que forma tem o mundo, se perguntam ao mim mesmo que mora no interior de mim e guarda a primeira impressão das coisas, tenho de responder que o mundo está disposto sobre uma porção de sacadas que irregularmente se debruçam sobre uma única grande sacada que se abre no vazio do ar, no parapeito que é a breve tira do mar contra o imenso céu, e naquele peitoril ainda se debruça o verdadeiro de mim mesmo no interior de mim, no interior do suposto morador de formas do mundo mais complexas ou mais simples, mas derivadas, todas elas, dessa forma, bem mais complexa e ao mesmo tempo muito mais simples, na medida em que todas estão contidas naqueles desaprumos e declives iniciais ou deles podem ser deduzidas, daquele mundo de linhas quebradas e oblíquas entre as quais o horizonte é a única reta contínua."

O horizonte de expectativa, segundo a narrativa, não é nada confortador. Ainda que não tenha havido confronto direto entre União Soviética e Estados Unidos, o mundo manteve diuturnamente os olhos atentos nas duas então superpotências. Essa vigilância tinha como combustível o medo da destruição em massa.

Se alguma esperança se abria como perspectiva para a sociedade, essa esperança chamava-se História e a História é como uma espécie de sacada à qual os homens deviam acorrer, a fim de observar a si mesmos em seus acertos e erros.

Entre o mim e o mim mesmo do texto de Calvino, percorre-se a trajetória do homem (eu?) do século XX com um pé no XXI, tentando entender por que esteve (e está) dividido em dois. Os sistemas econômicos e políticos da atualidade têm todos um pé numa ou noutra forma de ver a realidade; todos, com maior ou menor grau de dependência, descendem das oblíquas visões de paz e de guerra proporcionadas pelo mundo dividido.

A sociedade humana tem empregado a lógica mais difícil, que é justamente a de se armar para evitar a guerra e chega, assim, ao seu maior paroxismo. No mundo capitalista, uma sacada se ergue sempre para um grande público, ávido por assistir a uma grande indústria do espetáculo.

Em caso de guerra, nossos olhos contemplam, no conforto do sofá de nossas casas, o bom combatendo o mau, num show de pirotecnia cheio de cores, luzes e sons.

O mundo socialista – já muito diminuído – esperneia contra o avanço do dragão devorador, diabo de muitas cabeças pintado nas cores azul, branco e vermelho. O melhor é exemplo é Cuba, nos seus estertores, querendo fazer crer numa sobrevivência vacinada contra o capital corrompedor. Apenas a mídia local parece ter o poder de dizer aos cubanos que ainda é possível existirem distantes da moral argentária.

Estamos todos um tanto anestesiados, estupefatos, como se estivéssemos perdendo a possibilidade de escrever a própria história, se é que ela ainda admita essa possibilidade. Quase sempre somos apenas espectadores.

Jean Baudrillard, tido por muitos como um grande filósofo pessimista, diz que

"Noções tão fundamentais como as de responsabilidade, causa objetiva, de sentido (ou de contra-senso) da história desapareceram ou estão em vias de extinção. Os efeitos de consciência moral, de consciência coletiva são inteiramente efeitos midiáticos e, pela obstinação terapêutica com que procuram ressuscitar essa consciência, já se percebe que lhe resta pouco fôlego" (BAUDRILLARD, Jean. A transparência do mal: ensaio sobre os fenômenos extremos. 8. ed. Tradução de Estela dos Santos Abreu, Campinas, SP: Papirus, 2004, p. 99).

Como o homem não é somente bom ou somente mau, é preciso que ele erga para si mesmo uma outra sacada, a partir da qual, às vezes, consiga se enxergar mais humano. Ele necessita ver o homem que salva a outro homem, em vez de matá-lo. Desta sacada, é preciso se perceber parte integrante de um todo, igual entre iguais.

Como a identidade do eu se dá por referências, por relação com a alteridade, ocorre que esse mesmo homem se vê exterminando o outro, o que está sempre mostrando a ele que no meio do caminho do meio também há muitas pedras. Às vezes, pedras intransponíveis, infelizmente.

Ainda com Baudrillard, o filósofo francês lembra que

"A violência arcaica é ao mesmo tempo mais entusiasta e mais sacrificial. Nossa violência, a produzida por nossa hipermodernidade, é o terror. É uma violência-simulacro: bem mais que da paixão, ela surge da tela, é de natureza idêntica à das imagens. A violência está latente no vazio da tela, pelo buraco que ela abre no universo mental" (2004, p. 83-84).

A violência pelo terror toma assento a partir do início do século XX e nos amedronta desde então. Pessimista ou não, Baudrillard credita uma segunda Queda do homem àquilo que preenche o mundo contemporâneo: a banalidade. Tristemente, o homem chega ao século XXI um tanto aniquilado pelo passado. Como forma até de esquecê-lo, para o bem ou para o mal, o homem vai até a sacada de si mesmo, procura por si mesmo, e se depara com um simulacro de realidade, sempre forjada numa composição humana de bons e maus.

Banido Deus do cenário – embora em seu nome se iniciem quase todas as guerras –, resta ao homem curvar-se impotente diante dos próprios feitos e da inércia que o preenche no final do século XX e início do XXI. A alguns poucos homens ainda é dado o alento de tentar tirar as pedras do meio do caminho. Estes somente sucumbem no final. A outros, os que optam pelo caminho do meio, o fardo de conviver com elas. Em geral, estes, de tanta convivência, se igualam. A estes o final se antecipou.