Como Ler

Este ensaio tem a função de expor uma característica de nossa sociedade erudita, que prefiro chamar de burocrata ou escriturária.

Desde o processo chamado de alfabetização, mesmo quando se dá fora dos bancos escolares, no empirismo mais lato que o dia-a-dia cobra diante da necessidade de ler, em uma sociedade que impõe a leitura a seus cidadãos. Evidenciamos uma postura comum diante daquele já alfabetizado, que consiste em expor o modo de apreender ou aprendizagem.

No cotidiano ouvimos frases do tipo “vou te ensinar como ler” ou “está lendo errado”. Tais máximas ditam um padrão de leitura, uma hermenêutica acerca do objeto lido, que pressupõe o leitor conhecer.

Quando levamos para o nível escolar, o rigor aumenta, devido a uma metodologia pedagógica que normatiza uma estrutura interpretativa, determinando uma hierarquia que se faz de manual da “boa leitura”.

O professor, aquele que professa o saber, o magister, procura dar sequência a essa conduta, explorando sua própria subjetividade ao traçar um roteiro que segue exclusivamente sua própria maneira de observar o objeto estudado.

Existem também os chamados analfabetos funcionais, seriam os leitores que não sabem ler, ou pelo menos, não da forma que se espera, conforme demonstram estatísticas educacionais que demonstram um surto de “não compreensão” dos textos.

Diante de tais perspectivas, apresento um questionamento a respeito desse modelo, onde a princípio surge a indagação de quem, o que e quando se determina um modelo, além do porque devemos segui-lo?

Quando o aparato literário é criado, serve sem dúvida a um propósito, que não condiz com os interesses de toda a população, muitas vezes longe de atender os anseios da maioria dela. Daí o não reconhecimento das normas pela sociedade em geral, já que se torna obscuro o motivo de tal amarração intelectual, por mais que se professe o discurso generalista e pouco consistente do “isso é para o bem de todos, mesmo que ainda não tenham consciência disso”.

Diria que a consciência existe de forma tão acentuada, que as estatísticas revelam essa rejeição ao projeto de leitura, aqui tratado além do âmbito escolar, ainda mais na sociedade brasileira onde grande volume da população desconhece o vínculo colegial.

Quando o sujeito é exposto a um concurso, cobrando-se dele uma regra de “certo” ou “errado”, temos uma tirania literária, que subjuga concursando a uma lógica de segregação. Não duvidemos da marginalização intelectual, onde analfabetos são reduzidos dentro de uma lógica tecnocrática.

Mas não se refere apenas a ser um “mau” técnico, ou seja, de falta de competência, já que existem peritos que apesar de nunca terem lido um livro, conhecem o funcionamento mecânico melhor do que um acadêmico.

Nosso próprio sistema eleitoral passou por essa “peneira” em dado momento, quando se determinou que apenas votariam os alfabetizados, escassa porcentagem no período que foi adotado o regime.

Mesmo que os professores, passassem por cima de seu orgulho, admitindo uma participação dos alunos com reconhecimento da interpretação que cada um faz acerca de dado assunto, existe ainda outro fator agravante na ditadura das letras.

Existe um forte apelo a tradição literária, aqui chamando a atenção para uma “tradição inventada”, conforme exposição do historiador Eric Hobsbawm, onde se cria um modelo conservador mítico que surge de forme momentânea, mas é alimentado com um marketing que procura convencer ter origem remota, para averiguar legitimidade em uma falsa genealogia.

Independente de ser falsa ou não a tradição, o fato é que repete-se o discurso de literatos considerados renomados, caindo em um repetismo, que chega ao ponto de ser categórico, com resumos e os chamados fichamentos, onde exclui a possibilidade de criação textual.

Algo forjado como um dogma religioso, que alterar significa praticamente um crime contra a humanidade, devo salientar meu apreço pela obra literária até hoje criada por vasto acerco de intelectuais, mas o que os fizeram destacar-se dentro da História, foi justamente essa “revolução” - no sentido mais transformático que essa palavra possa obter – conceitual.

Pede-se a inovação, nessa sociedade que levanta bandeiras em nome de um possível progresso, só que tais mudanças deverão ser desenvolvidas sob determinadas perspectivas que estão bem delineadas, fugir disso é não ser “inovador” conforme os anseios da sociedade, ou pelo menos de uma parte dela.

Quando um professor diz a um aluno que leu um texto de forma errada, apenas reproduz esse modelo de castração intelectual que o próprio “mestre” se sujeitou, na tentativa de direcionar, ou como alguns dizem “dar um norte” ao educando.

Como ler, é justamente algo degustativo, come-se o livro, cada um possui seu estilo de provar, paladares diversos, uns apreciam chocolate outros não, conforme uns apreciam certos autores ou formas de escrita e outros não. Mas a analogia com alimento é inverídica, pois vive-se sem leitura, não sem comida.

A própria fala demonstra toda uma transformação, adaptando-se a regionalismos, criando gírias, procurando ser maleável. A escrita se faz menos convidativa, austera em sua composição, causando um formalismo típico da jurisprudência, que procurar se fortalecer dentro de um rigorismo, servindo de uma herança psitaciforme, ou seja, papagaia, que só fazemos repetir, num continuum decorar, uma espécie de mantra sem as benesses metafísicas.