O Xadrez Foucaultiano

Podemos aludir acerca da origem do jogo de xadrez, embora seja controversa. Mas o objetivo deste ensaio, é correlacionar o jogo em si a uma estratégia teórica do filósofo francês Michel Foucault.

Quando observamos um tabuleiro de xadrez, a princípio temos as figuras simbólicas das peças, cada uma disposta em seu quadrante, rígida hierarquia horizontal, que segue um caminho de domínio vertical.

O tabuleiro é um quadrado maior, espaço territorial de micros-territórios que desterritorializam as peças à medida que se movimentam, ao mesmo tempo as reterritorializando. A princípio, dividido em uma bilateralidade, brancos de um lado e negros de outros, o famoso contraste entre luz e trevas. Mas sugere um cromatismo menos luminoso, visando a diferenciação drástica do contraste, não existindo bom ou mau, apenas oponentes.

Os adversários assumem a postura, branca ou negra, posicionam com igual rigor as personagens desse jogo. O espetáculo começa. Cada figura possui um movimento singular, o que dá margem a distinções dentro do esquema. Existe a diferenciação de status. Pois, o grau de relevância é averiguado pela figura imponente e perseguida do rei, que é o poder, por isso mesmo tão desejado.

Todos desejam obter o rei oposto, ou seja, poder do jogo. Percebemos que ambos os lados possuem a mesma estrutura, ou seja, os mesmo aparelhos para obter o objeto de desejo. Ocupam também espaços similares, sendo que a fronteira é delimitada pelo espaço do outro.

Nas peças, temos na linha de frente, o peão, formando uma linha de “iguais”, compondo a representatividade primeira. Para alguns, facilmente descartáveis, para bons estrategistas, todas as peças possuem valor imprescindível. Mas é notório averiguar que são os únicos com tamanha quantidade de variantes, já que o restante das peças possuem apenas duas de cada, salvo o rei e a rainha, que são unos, o que podemos indagar como sendo poder numa dupla face, Anima e Animus, masculino e feminino, Ying e Yang.

Nas laterais, com forma pilar, as Torres, que cortam o tabuleiro de fora a fora, numa reta em direção contínua. É a idéia de linha. São elas que margeiam o jogo, são a mostra viva das extremidades do território, duras com propósito de barreira.

Em seguida temos os Cavalos, a força animalesca domada, natureza domestica. Por isso seu andar em “L”, é como se ao investir em uma reta, o freio o puxasse para o lado, demonstrando a força do comando. O animal reprimido, os instintos refreados.

Talvez por coincidência, após os instintos — pode-se perceber que minha leitura é feita de fora para dentro do tabuleiro —, nos deparamos com a estranha imagem dos Bispos, com aquele aspecto piramidal, mais uma vez exaltando uma hierarquia verticalizada. Esses personagens transitam em diagonal, unindo extremos do tabuleiro, uma forma de transitar entre a robustez da Torre e a animalidade do Cavalo, sem tornar-se um deles, distanciando. Mesmo com objetivos comum entre os elementos. Já que os movimentos diferenciados, demonstram caráter distinto na busca de objetivos comuns. Cada um busca traçar seu próprio caminho.

Chegamos mais uma vez no Rei e Rainha, aqui expostos como duas formas de um mesmo poder. Só que a Rainha se faz de força institucional. O Rei possui todas as direções do tabuleiro, mas está restrito a um andar comedido. A Rainha, enquanto força institucionalizada, se expande além dos limites recatados, irrompe os limites de todas as outras peças, afetando-as com agressividade coercitiva. É como se estivesse ligada a todos, em um movimento ela alcança qualquer um dos presentes, ao mesmo tempo preserva o Rei, como se fosse uma força distinta, quase autônoma, ou que deseja parecer assim.

Dentro de toda essa articulação, está o jogador, aquele que move as peças, ou seja, eu, você ou qualquer outro que se aventura nesse entretenimento. Aí está a malícia do jogo, pois nos demonstra onipotentes, indivíduos que controlam, dizem prever a jogada do oponente para subjuga-lo, ressaltando o poderio do articulador que conforme sua inteligência, quero dizer, seu saber-poder, domina o espaço.

Eis a ingenuidade, o jogo já está pronto, as peças com sua ordem dada, os nomes, as disposições, até mesmo as probabilidades de jogadas, estão previamente dadas. Nós, em meio ao tabuleiro, somos manipulados ao invés de sermos manipuladores, no final estaremos sempre representando uma já dada possibilidade que o jogo previamente facultou. Nunca vencemos o jogo, somos vencidos ou convencidos por ele. Nos fazemos peças e somos jogados dentro desse quadrante territorializado de forma diminuta.

Traçamos e retraçamos, para continuarmos nessa esterilidade, subjugados por uma disciplina, que apreende nossas percepções, adequando-as a uma normatização onde tudo será feito “preto no branco” ou “branco no preto”. Já que durante a partida, invadimos colorações alheias, misturados nessa rede bifocal.

O verdadeiro xeque-mate, expressão que vem do persa “shāh māt”, significando “o rei está morto”, ocorre quando aderimos ao jogo, só que quem morre somos nós, assujeitados ao sistema. Faço a sugestão de usarmos Sujeito-Mate ou Mate-O-Sujeito, quem sabe outra palavra com uma sintaxe mais agradável, em inglês acho que seria apropriado o Kill-Me.