OS MISERÁVEIS, UM ROMANCE MAÇOM.

Tríplice Anankê

No preâmbulo do seu romance Os Trabalhadores do Mar, Victor Hugo diz que a vida humana sobre a terra está sujeita a uma tríplice anankê (palavra grega que quer dizer fatalidade), da qual ele, por mais que tente não consegue escapar. A primeira é a anankê dos dogmas, por ele  denunciado em “O Corcunda de Notre Dame,” o segundo é o das leis, que ele mostrou em “Os Miseráveis” e o terceiro era o da natureza, objeto do romance “Os Trabalhadores do Mar”. O leitor sensível e bem preparado nos assuntos maçônicos não deixará de ver ai uma alusão ao simbolismo maçônico, no sentido de que os temas de cada um desses romances estão ligados à posição antidogmática do autor, à sua noção de justiça e ao seu respeito pela natureza enquanto sistema. Esses mesmos temas o iniciado maçom encontrará no catecismo das suas Lojas.

O tema de Os Miseráveis

Os Miseráveis é uma das obras máximas do romance mundial. Nesse majestoso trabalho, Hugo atinge o auge da perfeição narrativa, onde uma sociedade em franca transformação – a história se passa na França, entre as guerras napoleônicas e a agitação revolucionária das primeiras décadas do século XIX-  procurava recuperar o equilíbrio violentamente rompido pela Revolução de 1792.
Os Miseráveis é a História da França daquele período, em forma de romance. Todos os personagens ali descritos são emblemáticos e foram moldados a partir dos protótipos que o autor pescou no seio da sociedade francesa daqueles dias. E na trajetória desses personagens dentro do enredo, se pode perceber os grandes temas e conflitos espirituais que a sociedade francesa vivia naqueles românticos, porém difíceis e perigosos momentos.
Em Os Miseráveis, o conflito entre o bem e o mal, a tolerância e a intolerância, o vício e a virtude, o crime e o castigo são evidentes e parece que os temas foram costurados a dedo pelo autor.  Eles não transparecem apenas como caracteres de personagens bons ou maus, como acontece como a maioria dos personagens de um romance, onde essas características vão surgindo com naturalidade, á medida que a história vai sendo costurada. Em Os Miseráveis, entretanto, esses personagens são todos arquétipos de um vício ou de uma virtude que Victor Hugo enxerga na sociedade contemporânea, e que na história de cada um deles, ele procura justificar.  
Desde o velhaco Tenardhier, protótipo do empobrecido cidadão a quem os ideais libertários da revolução de 1792 nada trouxeram além de miséria, degradação, corrupção e guerra, que culminou na aventura napoleônica, até a romântica Cossete, filha de uma prostituta criada por um homem que emergiu do inferno e tudo fez para garantir para ela um céu, até o emblemático inspetor Javert, policial cuja vida é toda moldada num sentimento de dever que isola qualquer outro sentimento de humanidade, tudo nessa história é simbólico e arquetípico, Até o menino Gravoche, garoto de rua de Paris,  representa o jovem povo francês em busca da realidade prometida por uma revolução redentora..  Mas  ele, como todos os jovens que lutaram na Barricada da Rua Saint Denis, naquele fatídico ano de 1832, acabaram descobrindo que a conquista da liberdade, a igualdade e a fraternidade era uma luta diária e que devia ser travada por cada um deles e arrancada a custo do próprio sangue.  

O enredo de Os Miseráveis

O romance conta a história de Jean Valjean, o homem que depois de viver parte da sua vida num verdadeiro inferno, alcança a regeneração. Ele fora atirado na prisão pelo crime de ter roubado um pedaço de pão para matar a fome de seus sobrinhos. Por conta disso é condenado a 5 anos de prisão. Maltratado, injuriado, seviciado e reduzido à mais degradante condição na prisão, ele se torna um sujeito mau. E por conta do seu péssimo comportamento acaba ficando 19 anos nas galés, o pior tipo de prisão da época. Aqui o livro busca inspiração na filosofia de Beccaria, no sentido de que ele contém uma crítica clara e contundente do sistema penal da época, que ontem como hoje, acaba contribuindo muito mais para o aviltamento do caráter de ser humano do que para a sua recuperação
Jean Valjean é um sujeito puro, que é levado ao crime por contingência de uma vida miserável e uma política social injusta. Na prisão, as condições aviltantes criam em sua alma uma crosta de ódio, cinismo, descrença e maldade que o leva a outros crimes assim que deixa a prisão. Tão logo se vê em liberdade rouba a moeda de um menino e depois a prataria de uma igreja, onde um padre bondoso o havia recebido e alimentado. Preso imediatamente com o produto do roubo, Jean Valjean está para ser encarcerado de novo quando o próprio padre, a quem roubara, o inocenta, dizendo que a prataria lhe havia sido dada, e que ele havia esquecido de levar o principal, que eram os dois candelabros de prata da igreja. Essa passagem é claramente uma inspiração evangélica. “Se alguém quer te privar da capa, larga-lhe também o vestido,” disse Jesus.
Mas para Jean Valjean esse gesto representou a verdadeira redenção. Vendo que nem tudo era ruindade no mundo, caiu-lhe a crosta de maldade que ele havia adquirido nos anos de prisão e ele se regenera, tornando-se um grande empresário, líder comunitário, prefeito da cidade onde se instalou e reconhecido por sua justiça e bondade.
É no exercício dessas virtudes de caráter que ele acaba entrando em choque com o chefe da polícia da cidade, o inflexível e intolerante. Inspetor Javert. Por ter obrigado o insensível policial a libertar uma prostituta, eles entraram em conflito. A prostituta, Fantine, tinha sido funcionária na sua fábrica de confecções, mas havia sido despedida pelo fato de ser mãe solteira. Quando VAljean toma conhecimento do fato e verifica a situação da moça- que se tornara prostituta para sustentar a filha- ele se compadece e passa a cuidar dela. Adota a filha dela como filha e passa a criá-la depois da morte de Fantine, que ocorre logo depois desse incidente com o policial. Cossete, a filha da prostituta, passa a ser o único motivo da sua vida.
Mas Javert descobre o passado de Jean Valjean e passa a persegui-lo. Por conta disso ele deixa a cidade onde fizera a vida e vai para Paris, levando a filha adotiva. Mas Javert não o esquece e assume como missão  da sua vida a prisão e a condenação de Jean VAljean. Assim, toda a história passa a girar em volta desse conflito que mostra um homem tentando se reconstruir dentro da sociedade que o destruiu e o sistema penal injusto, vingativo e intolerante, representado pelo inflexível Javert. E como pano de fundo as vicissitudes de uma sociedade que buscava, ela mesma, a sua própria reconstrução. A par disso, as incertezas sociais, econômicas s e políticas que normalmente marcam a vida de um povo num período como esse, bem  como as próprias perplexidades que confundem o espírito das pessoas nessas ocasiões.

O maçom Vitor Hugo

Os Miseráveis é, claramente, um romance maçônico. Não temos dúvidas que o maçom Victor Hugo se inspirou fartamente nos mitos e nos princípios da maçonaria para escrever essa que é a sua maior obra. Começa por seu principal herói Jean Valjean. Ele é o protótipo do Irmão que “perdido nas trevas, bate à porta de uma Loja em busca da luz.” A Loja, no caso, é a igreja do padre bondoso, onde ele descobre que a maldade não está no mundo, mas sim no coração das pessoas que nele vivem. Mas que essas pessoas, por pior que sejam, por mais baixo que tenham caído, podem se levantar e alcançar uma regeneração. É dessa forma que ele ajuda Fantine, a prostituta, o velhaco Tenardhier, salva Marius, o jovem revolucionário que lhe tirou Cossete, o grande amor de sua vida, e no fim ainda perdoa Javert, que o perseguiu pela vida inteira.
 Toda a vida de Jean Valjean é uma jornada em busca da luz. Quem conhece a filosofia maçônica e está a par dos seus mitos, das suas lendas e arquétipos, não terá dificuldade em identificar no enredo de Os Miseráveis uma autentica metáfora maçônica.  Essa metáfora transparece, principalmente na descrição que o autor faz dos subterrâneos de Paris, que os arquitetos maçons de Napoleão cavaram para hospedar a rede de esgotos daquela cidade. E quem foi iniciado nos Mistérios da Sublime Ordem facilmente identificará  sua própria iniciação com a verdadeira jornada iniciática que é a fuga de Jean Valjean pelos esgotos da cidade, carregando nas costas o jovem Marius. E quem conhece a aventura de Hércules nos porões do inferno à procura do seu amigo Teseu,  também não deixará de fazer um paralelo entre essas duas visões, onde o simbolismo da maçonaria está claramente inscrito.
Vários leitores com quem conversei a respeito dessa obra são unânimes em afirmar que se emocionaram com seu romantismo e se admiraram com a competência do autor para escrever uma obra tão perfeita. Mas poucos conseguiram perceber o seu conteúdo místico, esotérico e profundamente marcado de simbolismo maçônico.  Preferiram se fixar no seu conteúdo social e político. Os Miseráveis é tudo isso, mas é principalmente uma obra auto-biográfica onde o maçom Victor Hugo tenta passar aos seus leitores o sentimento de um povo- que é ele mesmo- que se sente violado em seu ideal. Esse ideal era aquele plantado pelos revolucionários de 1792, simbolizado no lema Liberdade, Igualdade, Fraternidade, que a maçonaria francesa cunhou e espalhou pelo mundo como colunas mestras para a construção de uma sociedade mais justa e feliz.   
Ler, ver no cinema ou nos palcos de um teatro um espetáculo inspirado nessa obra magistral é sempre uma experiência maravilhosa. Mas sabendo que essa obra está ligada às nossas mais profundas raízes espirituais ela se torna simplesmente emocionante.



João Anatalino
Enviado por João Anatalino em 27/10/2011
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