O Artifício que Nega Narciso

Na mitologia grega, temos a figura de Narciso, aquele que fica enamorado por si diante da própria imagem refletida na água. A ideia narcísica remete ao sentido de culto da imagem ou supervalorização do reflexo, no sentido de este sobrepor-se ao “real”, ou seja ao que produz a reflexão.

A partir de evidências da sociedade contemporânea — não desejando ser anacrônico, apenas utilizo a fábula como referência —, pretendo neste ensaios, negar a ideia do mito, já que o artifício da imagem tende a causar menosprezo em vez de apreço.

Percebe-se que ao nos depararmos com nossa imagem diante do espelho, no primeiro momento podemos até admirar, mas o hábito torna esse exercício enfadonho, chegando ao ponto de tornar-se intolerável. No início temos o espetáculo da revelação, depois percebemos as “imperfeições”, passamos a ignorar e por fim, nem suportamos um simples olhar de esguelha.

Quantos de nós não presenciou um animal, um cão por exemplo ou gato — já que são animais que mais temos o hábito de domesticar —, diante de um espelho, a reação de surpresa, alguns até pensam ser outro da espécie, chegam a demonstrar agressividade. Com o tempo ignoram o espelho ou guardamos trauma da experiência por memória curta, esboçando reações parecidas ao ser exposto em outros momentos.

A exposição da própria imagem, o que podemos ter como princípio reflexivo a água, pensando no mito grego, é a primeira confrontação do homem com sua própria imagem. A perspectiva que tínhamos apenas nos remetia ao outro, mas não a nosso próprio outro, que é como nos vemos a partir de si.

Tal descoberta, não criou o desejo narcísico de exaltação, mas tornou o homem cada vez menos satisfeito com a própria imagem, que de forma recorrente, tornou-se uma sombra indigesta que está sempre a espreita-lo. A projeção de si, possibilitou a compreensão acerca do não-eu ou projeção exterior, que seria a forma como capta a imagem do outro.

Diante dessa perspectiva, de uma imagem exposta, temos as representações artísticas, tanto de pintura, arquitetura, escultura. O homem passa a tentar captar essa imagem, dando forma. Tão abrangente em seu desenvolvimento, a imagem artística ganha atributos que destacam o reflexo puro, com adornos que vem dispersar a atenção gerada pela figura. Como se Narciso tivesse seu olhar disperso na paisagem que modifica em cada vez que se olha, por isso o fascínio persistir.

Só que o espelho, por ser objeto que tende ao sedentarismo, costuma reproduzir fielmente a paisagem onde está disposto, assim como quem se coloca diante dele. A arte também se fossiliza, ficando relegada a um plano passivo, monumentos que uma geração venera, mas que a seguinte começa a denegrir, pois para os primeiros era novidade, para os segundos, um hábito. Talvez, se Narciso em vez de se deslumbrar em demasia na primeira exposição, tivesse contado com outras oportunidades menos férteis de sua representação, não teria aquele destino trágico que reza a lenda, quem sabe outra tragédia o sepultaria.

Adiantando a História, a tecnologia, assim como os meios de comunicação, chegamos as câmeras fotográficas, mas pretendo ir além, chegando ao televisor. A imagem captada, transmitida, em movimento. Temos o efeito do espelho com efeitos muitos mais abrangentes. Já que a imagem, apesar de manter aquele ritmo que a rotina impõe, agora possui atributos que se destacam. Ela move, é sonora, mescla realidades numa transmissão bem mais rápida.

Só que o processo mecânico de aceleramento, em vez de proporcionar aquela mutação que favorecia admitirmos por mais tempo a imagem, fez acelerar nossa repulsa. As percebemos enfadonhos em um período mais curto, a gama acelerada de informações, com aquela torrente de visualizações, diminui nosso tempo de aceitação. Daí a nossa desvinculação cada vez mais rápida do visual. Não que deixemos de assistir a tv, já que o aparelho possui diversos atributos, mas ele se torna habitual, ao ponto de agirmos de forma mecânica em relação a ele.

O exemplo claro é ligarmos a tv e sairmos para exercer outras atividades, aguardando que algo apareça e desperte de novo nossa atenção para o aparelho, daí a necessidade auditiva, onde captamos além da imagem. Os computadores também seguem a lógica de tentar aprisionar a atenção na imagem, tentando resgatar o orgulho perdido narcísico, por isso sua variabilidade de funções, é tv, jogo, trabalho, estudo, relacionamento, etc.

Mas estamos diante de efeitos mais catastróficos. Essa percepção de repulsa, talvez até mesmo pela velocidade com que a recebemos, processamos mesmo não estando em contato direto com o aparelho. Fazemos das pessoas, assim como a “realidade” que nos cerca, uma projeção “viva”. Misturamos o fora da tela e o dentro da tela, já que ambos são vistos. Passamos pelas pessoas nas ruas como se não existissem, ouvimos em reportagens com regularidade comentários do tipo “ocorreu uma situação que parecia cena de tv”. A morte alheia se tornou um drama de ficção, não nos diz respeito, até nos emocionamos, mas depois voltamos a rotina, indiferentes.

Nos tornamos criaturas receptoras e projetivas, a preocupação estética de hoje é “qual imagem captarão de mim”, talvez solução seja a do mestre Saramago, em seu brilhante “Ensaio Sobre a Cegueira”. Perdendo a visão, voltaremos a ser gente, a sentir gente, a se fazer gente, gente tátil, olfativa, audível, degustada, precisamos ofuscar o sentido que foi superexcitado para que os outros possam voltar a ter sua importância reconhecida.