Desfetichização do Corpo

Vivemos em uma época que conserva a herança de gerações passadas. Valorizamos em demasia essa estética que visão capta, criando uma supervalorização do corpo. Não que existe problema no sentido do corpo em si, como bem expuseram Deleuze e Guattari, já estamos fadados a esse único que conhecemos. Tendo em vista que não existem órgãos propriamente ditos, mas outros corpos, corpos diminutos que por acreditarmos um dentro, temos a fantasia de conteúdo. Mas não passamos de uma dobra, é um fora em curva sobre si.

Mas deixemos a questão do “corpo sem órgãos”, vamos falar apenas da forma estética do chamado corpo. Mas o formato aqui tratado, refere-se a um esteticismo simbólico, já que travestimos em corporificação. A idealização do corpo, que visa torná-lo um “belo”. Aliado a isso, temos o pensamento místico ou religioso, onde potencializa essa natureza corpórea, dizendo que é propriedade divina.

Tais implicações de caráter idealizador, dificulta e muitas vezes impossibilita, uma utilização desse objeto chamado corpo. Hoje o debate se faz um pouco mais aberto, já se discute a doação de órgão, por exemplo. Pensando em pessoas que declararam essa pretensão, assim como familiares mais sensíveis ao estado alheio, diante da tragédia ocorrida a um familiar.

Chamo a atenção para os corpos cremados, um ato que deteriora o corpo, ou fragmenta. Mais uma manifestação simbólica, sem contar os excêntricos que enviam para o espaço (lixo espacial) ou congelam para uma futura “ressurreição” (lixo para a geração futura). Um cadáver, nada mais é que lixo, assim como o orgânico que vemos nos lixões, ele também irá se decompor, criando um chorume fétido e para muitos, repugnante.

Este ensaio visa não apenas expor esse fetiche do corpo, mas também incentivar a utilização ou reciclagem desse material orgânico. Primeiramente, como doação de órgãos, causando utilidade do objeto-corpo para quem realmente necessita, que são os vivos. Já que os próprios ritos fúnebres, na impossibilidade de um deus, servem apenas para apaziguar ânimos de pessoas vivas.

Uma segunda forma de reaproveitar um cadáver, seria para estudos científicos. Claro que já existem nos anatômicos de universidades, cadáveres para estudos, banhados em formol. Mas ressalto a importância do cadáver sem formol, um corpo fresco, para que se estudasse com maior precisão a anatomia. Sem pudores morais, apenas com intuito de desenvolvimento científico. Também sem a necessidade da bio-pirataria, já que existem no “mercado negro” a venda de defuntos, bem como tráfico de órgãos e outras práticas.

Realizem a importância de analisar um cadáver passando pelos estados de decomposição, bem como a variedade para estudos que dispensaria a falta de recursos físicos em muitos centros de estudo. A própria utilização de animais, embora tenha sido diminuída, não foi abolida. Me referindo, é claro, a animais não humanos e vivos, o que considero mais degradante.

A fetichização do corpo prejudica o estudo direcionado ao próprio corpo, causando entraves a questões que poderiam ser de grande valia ao desenvolvimento humano, apenas em prol de superstições ainda empedernidas. Já que historicamente falando, os ritos fúnebres alteraram ao longo do tempo, além do destino dado ao corpo post mortem. A não necessidade do cadáver para a celebração ritual é averiguada em diversos exemplos, como desastres onde não se encontram os restos mortais, bem como determinados tipos de crime, mesmo pressupondo a morte. O apego ao corpo deve ser cultivado para a própria valorização do mesmo, que ocorre apenas quando tem sentido útil. Utilidade aqui sendo expressa como bem social.

Dizem que o corpo pertence ao sujeito, mas temos diversas regras sociais que agem sobre a nossa aparente “liberdade corporal”, vide as prisões que encarceram corpos. Além disso, quando morremos, por não estarmos mais presente, perdemos a propriedade sobre a matéria corpórea. Isso é fato, já que a família assume o “bem”, dando o destino que bem desejar, cabendo inclusive a estranhos, na falta de quem reclame o corpo, dar um fim ao objeto, o que muitas gera material para faculdades de forma clandestina, como indigentes mortos.

Ainda estamos pensando como os faraós, que voltaremos com o mesmo corpo? Ou acreditam que farão como o messias cristão, que apenas reproduziu a ideia de ressurreição egípcia? Pelo menos os espíritas já falam em retornarmos em outro corpo, ainda assim não abandonaram o fetiche desse objeto. Pelo menos existe uma maior diversidade entre os budistas, pois podemos voltar em outro corpo, não necessariamente humano. Todos amarrados ao corpo. A internet, com a expansão do virtual, já demonstra a não necessidade de corpo há algum tempo.

O corpo, como bem expôs Saramago, é a intermediação mais direta entre o ser e o outro. Mas também é aquilo que nos apegamos, a ponto de nos aprisionarmos nessa forma, a nossa condição constante de fora, que na morte apenas reflete nosso próprio egoísmo manifesto na vontade de ter o outro pra si. Na falta, desejamos essa lembrança putrefata como última forma de apropriação alheia, criando apego a esse adorno efêmero, na vã expectativa de uma pós-vida, desesperadamente pendurados na vida que é a única que conhecemos ou deduzimos conhecer de fato. Se for pela lógica de valorização do corpo, fico com os antropofágicos de Voltaire, que diziam ser mais honrado comer o corpo do que deixá-lo para os vermes comerem.