Uma fórmula e dois usos para a inteligência (mas, o que é isso, mesmo?)

Vez ou outra, no restaurante costumeiro, encontra-me um senhor cuja última ocupação antes de se aposentar foi, por muitos anos, presidir e gerenciar uma cooperativa de agropecuaristas; dentista por formação, ele educou um casal de filhos na mesma profissão, antes de ir viver da outra já citada, e cuidou um pouco dos meus dentes (saudáveis, branquinhos e bem alinhados). Conhecemo-nos há mais de três décadas e a última, por conta de nossas funções profissionais, colocou-nos em contato e em recíprocas ideias e algumas práticas; aprendemos – coisa normal devida às circunstâncias – algum respeito mútuo, portanto.

Então, foi com certo desconforto que recentemente o ouvi comentar com minhas filhas: “Sua mãe é muito inteligente; tenho medo dela, porque mulheres inteligentes são perigosas!” Minha filha Dália colaborou: “Uma mulher inteligente pode, se quiser, ‘dar um nó’ na vida de um sujeito, fazer um estrago ‘daqueles’!” (aos dezesseis anos, guerras são assim...)

Antes de argumentar, da primeira afirmação eu retiraria o ‘muito’. Sem qualquer falsa modéstia – e toda modéstia é falsa – sou inteligente o bastante para me reconhecer nem demais ou de menos, apenas capaz de, como muitas pessoas, aprender com relativa facilidade e presteza o necessário para viver, embora não o suficiente para me livrar de certos constrangimentos. Assim é que compreendo, num piscar de olhos, sentimentos (meus e de outros) e suas sutilezas, mas análise combinatória é assunto enigmático e hermético (uma espécie de hidra de Lerna que ainda não consegui afastar da água para cortar a cabeça principal); respeito alguns limites do meu corpo, então trato de fazer durar no copo a dose de vodka por mais de meia hora (e há tempos não sofro de ressaca), mas não posso evitar as fortes emoções que desencadeiam crises de enxaqueca – e que me fazem perder dias de trabalho, de prazer ou ambos; encontro palavras eficazes e eficientes para dar rumo a uma poesia (já que prumos são objetos bem subjetivos...), mas, apesar do arrependimento, não consigo – não consigo! – achar o caminho fundamental para o perdão da pessoa que muito magoei. Pois é, sou medianamente inteligente: escovo os dentes após as refeições e antes de dormir, e não os mostro por aí – saudáveis, branquinhos e bem alinhados – em sorrisos falsos.

Em segundo lugar – e a reboque do exposto – uma questão: como se infere que alguém é ou não ‘inteligente’? E a conceitual: o que é ‘inteligência’?

De acordo com Howard Gardner, em ‘Estruturas da Mente – A Teoria das Inteligências Múltiplas’ (Porto Alegre: Artes Médica Sul, 1994), um dos pré-requisitos à inteligência – enquanto competência intelectual humana – é o poder de apresentar “um conjunto de habilidades para a resolução de problemas – capacitando o indivíduo a resolver problemas ou dificuldades genuínos que ele encontra, e quando adequado, criar um produto eficaz – e deve, também, apresentar o potencial para encontrar e criar problemas – por meio disso propiciando o lastro para a aquisição de conhecimento novo” (p. 46).

Até aqui, rodas não foram reinventadas: responder e criar questões antigas ou novidadeiras, de forma competente, é um conceito didático/pedagógico aceito incondicionalmente e utilizado à larga.

Então – e ao longe a questão do gênero (qual a diferença, hein, entre mulheres inteligentes e homens idem?) – não entendo – nem cultuo – o medo de pessoas assim: delas me aproximo com respeito e alegria, como deve ser a aproximação de qualquer ser com quem se pode aprender alguma coisa. Assim, de Shakespeare a Cecília Meirelles, passando por Victor Hugo, Gil Vicente, Machado de Assis, Oscar Wilde e Fernando Pessoa, tangenciando Elomar Figueira de Melo, Geraldo Azevedo, Beto Guedes e Chagas Sales Nogueira Lima, esbarrando em Lya Luft, Steven Levitt e Marina Colasanti; recanteando letras com Alice Gomes, Euna Britto, Carlos Moraes, Regina Romeiro e Umberto Erê – entre tantos realmente extasiantes; sendo escutada e entendida e orientada por meu chefe, Nailson Xenofonte; ou, através de meu colega Leandro Gonçalves, que, em seu comprometimento e dedicação, me ensina mais do que o que sabe que sabe; entre as amigas/irmãs Nora Rabelo, Fernanda Rossi Mota e Graças Freitas – e, de vez em quando, caindo no colo de Renato Remígio, Eliélder Lima e Maucus Menezes; entre a irmã Gemille Eugênia e as primas/amigas Sandra Mara, Sandra Walêsk, Elaine Cristine e Talinne Líllian – e, finalmente, ouvindo desta última a gargalhada mais sabiamente feliz que conheço – busco (e incentivo quem convive comigo a buscar) novos, inteligentes e saudáveis contatos, na família, na escola, no trabalho, na festa, no velório, seja através de gente, mato, bicho ou máquina, livro, bula de remédio, poesia, música, notícia de jornal...

E, por falar em livro, eis outro conceito, novidade pura. Li, num desses dias quentes daqui, um sujeito que afirma: “Inteligência é o alinhamento com a verdade, o amor e o poder.” (Pavlina, Steve. Pessoas Inteligentes Sabem o Que Querem. São Paulo: Editora Academia de Inteligências, 2010, p. 117).

Aí, a porca torceu o rabicó: o que verdade, amor e poder têm a ver com a capacidade de resolver problemas e criar outros?

De acordo com Pavlina, pessoas inteligentes não são (tão somente) as que dominam um assunto específico ou falam várias línguas – ou coisa parecida – ou até mais difícil, inusitado ou chique; são aquelas que têm consciência que suas atitudes devem estar em paralelo com a verdade – enquanto percepção, previsão, precisão, aceitação e autoconsciência, o amor - expressado através de comunicação, conexão e comunhão, e o poder, um mix de desejo, foco, autodeterminação, esforço e disciplina, e responsabilidade; tais pessoas têm capacidade de manter o equilíbrio entre os três princípios, dosando com sabedoria a lógica e a intuição. Um requisito da inteligência, então, é viver conscientemente. (Ah, quem dera a nós todos...) (E depois da fórmula bem explicadinha, quem sabe!)

Aqui entram aparte e questão à fala da jovem guerreira: quais as vantagens de usar a inteligência – em tese, harmonizada à verdade, ao amor e ao poder, à esta afinação que todos perseguimos – para ‘dar nós’ e fazer estragos ‘daqueles’?

Costumo defender que, no tocante a problemas, temos duas potencialidades: resolvê-los (ou, aos menos, minimiza-los) ou cria-los (ou incrementar seu aumento à enésima potência).

Quando a primeira hipótese é fato, quão bem – poderosos, alegres, enlevados – nos sentimos! Em certas ocasiões, parece até que somos os únicos seres do planeta capazes de inventar a saída do labirinto escuro, criado ou não por nós. E como nos desesperamos, quando assim não acontece, seja por falta de ariadnesca e competente ajuda, ou porque não dispomos da linha, ou – muito pior! – se existe alguém informando o caminho torto, apagando nossas marcações, recolhendo nosso fio, destruindo nosso sonho de espaço, luz e ar. Especialmente em função do último caso dá vontade de chorar, pegar carona com o primeiro caminhoneiro-minotauro que aparecer – e ir não se sabe para onde, matar o bicho, serrar os chifres e fugir com a carga – e ir não importa para onde! – enfim, chutar tampa, penico e tamborete – embora seja improvável encontrar tais luxos em veredas escuras e confusas.

Todos já enfrentamos abstratos touros bravos e já fomos toureiros bailarinos ou saímos sangrando, quase mortos (as duas coisas podem acontecer ao mesmo tempo, eu sei). Todos já apertamos a cilha do animal e o deixamos corcovear feito louco, para pagar as feridas que saradas em sal guardamos e pelo prazer de vê-lo sofrer um bocadinho. Isso é bem ‘normal’ – somos humanos, portanto capazes do mal, também. Mas, quem já usou conscientemente sua capacidade de criar um problema para resolver outro?

Coincidentemente, acabei de conversar com o bibliotecário da instituição em que trabalho; ele me informou, bem preocupado, que o acervo 'herdado' da antiga escola técnica (antes de ser federalizada) não consta em tombo como patrimônio da atual, e que não consegue encontrar qualquer documento que resguarde a propriedade. Orientei-o: “Crie um ‘problema’ – exponha o caso através de documento protocolado ao setor competente. A voz se perde, mesmo quando há eco, mas papel se responde com papel e atitude; se a autoridade responsável não agir, ao menos você não ficou omisso. Apenas compreenda: no final das contas, você está buscando tarefas para você mesmo, e isso, sim, é que é poder”. (Ele me olhou como se eu tivesse reinventado 'uma' roda, mas nesse caso só a coloquei em pé, creio... o empurrão é função dele.)

Quando impomos um limite ao filho, ao namorado, ao colega de trabalho e até ao chefe, criamos um ‘problema’ – conflito que pode ser resolvido a partir de diálogo ou rompimento de relações, mas o final de tudo não depende só de um... Conhecer e utilizar o próprio potencial de amor, poder e verdade encontram-se no cerne da questão: “Qual nó quero atar, que estrago devo proporcionar”?

Agora, respondo a questão colocada para minha lutadora de estimação: uma vez, pedi a alguém para (literalmente) dar um laço no meu vestido e (também após isso) fiquei presa em nós imaginários, mas muito, muito apertados; então, sobre ‘nós’, prefiro atar amor, poder e verdade à poesia; quanto aos ‘estragos’, aprendi a bailar e estendo a capa na arena quando me canso ou sou elegantemente derrotada; não mais ouso matar o bicho nem serrar os chifres – até porque um animal sem chifres é um animal indefeso e vitórias quase de graça não têm graça.

Finalmente – e ainda – quanto à inteligência, faço minhas as palavras de Howard Gardner: “Há uma tentação humana universal de dar crédito a uma palavra à qual nos apegamos, talvez porque nos ajudou a entender melhor uma situação.” (do livro citado, p. 55).

E fico a imaginar o que aquele senhor pensaria disso...

Gina Girão
Enviado por Gina Girão em 16/12/2011
Reeditado em 26/07/2012
Código do texto: T3391879
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