ENTENDENDO A PRÓPRIA LOUCURA – MÉTODO PARANÓICO CRÍTICO

Se houve uma tendência que embalaria o imaginário e justificaria os comportamentos das pessoas no século 20, esta seria, quase à moda de sofisticação e sinal de cultura, as teorias psicanalíticas de Sigmund Freud (06/05/1856-23/11/1939). E foi.

O pai da psicanálise ganhou elos no movimento artístico que se valeu do mundo dos sonhos – O Surrealismo – na pessoa de Salvador Dali, sobretudo.

O pintor dizia ter desenvolvido uma atividade registrada como método e chamado inicialmente de Método Paranóia – crítica e depois Paranóico-Crítico.

Isto fez com que Dali fosse evidenciado como artista e vanguarda de seu tempo. Pois, segundo Pierre Ajame, esta sistemática é a aliança do delírio paranóico e de sua análise com a intuição e a razão, que já era buscada pelos românticos e pelos simbolistas. É o momento em que a imagem (que está pronta no campo mental – consciente ou subconscientemente – ressalva nossa) pede uma forma (concreta, idem) para ser valorizada e percebida e aí ocorre a crítica (pessoal e individual do artista, idem), que intervém no processo paranóico (p.65).

Dali, em seu ‘Diário de um Gênio’, tenta justificar seu método paranóico-crítico dizendo: “De um modo geral, tratava-se da mais rigorosa sistematização dos fenômenos e dos materiais mais delirantes, com a intenção de tornar tangivelmente criativas minhas idéias mais obsessivamente perigosas”. Ao que Ajame procura esclarecer quando escreve que:

“Diferentemente de Picasso, a quem se atribuem as palavras: “Eu não procuro, acho”, Dali primeiro encontra e depois procura. Uma vez “levantado” e teorizado o método paranóico-crítico, Dali dedicará toda a sua vida a buscar-lhe explicações, e até justificativas, de que não precisa. Mas é sempre na exposição das verdades primeiras, e até dos lugares-comuns, que sua fantasia faz maravilhas”. (AJAME p.65)

O artista ainda busca ‘equacionar’ a sua atividade aliada a sua criatividade, seu método, comparando a força criadora (que muitos chamam de inspiração) à paranóia e a organização (que irá concretizar-se, materializar-se em obra de arte) em crítica. Ele ainda denomina, então, a força criadora ou paranóia, de “Mole”, e a organização da idéia ou crítica, de “Duro”.

Deste modo, ele vê em sua companheira Gala a encarnação do amor, a encarnação dos sonhos. Assim como a idéia mais sua materialização em quadro ou texto dá origem à obra, à arte expressa no surrealismo.

“É, portanto no amor, e no seu parente próximo, o sonho, que Dali irá buscar a energia necessária para a sua operação de alquimia. Mas não se trata daquele sentimentalismo chorão e indefinido que ele atribui aos românticos, muito pelo contrário, trata-se de um amor cru e de um sonho erótico com detalhes selvagens de que fazem parte a obscenidade, a escatologia, o sangue, a merda, o esperma”. (AJAME p.66).

Quanto ao Romantismo e aos demais autores literários surrealistas, Dali, que se considerava o único gênio – narcisista, que era – deixa bem marcado a distância que há entre ele e os românticos e aos demais de seu grupo (surrealistas):

“A metamorfose do mole em duro é também a do brumoso em nítido, e encontra-se aí a origem da falta de entusiasmo que se apoderará de Dali... obscurecidas, segundo ele, por indecisos crepúsculos românticos e germânicos: ‘Sou o único surrealista que realmente abandonou o romantismo’... O romantismo, este é o inimigo, ou pelo menos aquele que Dali conhece. Pois tem tendência à simplificação e, por mais vasta que seja sua cultura... Os relatos de sonhos exasperam-no, assim como a escrita automática defendida pelos surrealistas, que considera sem interesse pois nela o senso crítico não intervém. O jogo chamado do “cadáver esquisito” que deleitava Breton e seus amigos, variante sofisticada do jogo dos papeizinhos, e que consiste em escrever um fragmento de frase da qual o jogador não conhece o fragmento anterior nem o seguinte (no melhor e mais ilustre dos casos, o resultado foi “o cadáver esquisito beberá o vinho novo”), pode ter valor aos seus olhos como ponto de partida mas não como um fim em si mesmo”. (AJAME, p.67 e 68).

Se Freud influenciou ou ajudou Salvador Dali a materializar suas idéias, a dar-lhe fruição, o artista plástico influenciaria outro contemporâneo seu. Estamos falando de Jacques Lacan (13/04/1901 a 09/09/1981).

Segundo Pierre Ajame, “próxima do sonho e da alucinação, a paranóia-crítica daliniana está na base dos trabalhos de Jacques Lacan (e especialmente de sua tese Da psicose nas suas relações com a personalidade) que, assombrado com L’âne pourri, conseguiu um encontro com Dali e durante duas horas coletou o relato de suas associações de idéias. Tudo o que o pintor preconizava em matéria de psiquiatria e de funcionamento controlado do inconsciente (e que fazia sorrir até seus amigos surrealistas) recebeu o aval do jovem psicanalista. A ciência, de cujo reconhecimento Dali sempre teve necessidade, testemunhava a legitimidade das análises dalinianas. A paranóia-crítica afinal tinha fiador. É pena que mais tarde tenha sido atrapalhada pelos discursos fúteis de um Pierre Roumeguère, que se pretendia “psi” em Dali”. (AJAME, p.69).

Entender Salvador Dali, muitos se arriscam. A maioria se equivoca, pois ele próprio chega a indagar “Como vocês querem (compreender-me) quando eu mesmo, que sou aquele que as faz também não as compreendo?...

“O fato de que eu mesmo, no momento de pintar, não compreenda o significado de meus quadros não quer dizer que estes quadros não tenham nenhum significado: ao contrário, seu significado é tão profundo, complexo, coerente, involuntário, que escapa à simples análise da intuição lógica. Narciso está satisfeito: os mais ricos enigmas a serem resolvidos são aqueles que ele mesmo se propõe”! (AJAME, p.71).

Segundo o próprio Dali um de seus quadros mais famosos é aquele dos relógios “moles”, onde um dos quais aparece em um galho seco. Muitas são as tentativas de interpretação, como, por exemplo, a de que a “moleza” dos relógios significaria a diluição temporal. Mas Pierre Ajame nos socorre elucidando que, “Em ‘A Vida Secreta’, Dali conta a sua origem: “Os relógios moles aparecem pela primeira vez em La persistance de la mémoire, que data de 1931. Em A vida secreta, Dali conta sua origem, ligada a um jantar que terminou com um excelente camembert. O cenário do quadro (rochedos das cercanias de Port Llgat e uma oliveira morta) já estava pintado e só faltava o essencial: “uma imagem surpreendente”. O camembert* escorrendo volta à sua memória e, imediatamente, ele vê os relógios moles, um dos quais está pendurado no galho da árvore, o outro escorrega pelos dois lados perpendiculares de um paralelepípedo e o terceiro está recostado em um perfil acinzentado que lembra o de Le grand masturbateur. “Duas horas depois”, conclui Dali, “o quadro, que iria ser um dos meus mais célebres, estava terminado”. (AJAME, p.71 e 72).

Desta forma, com sua noção de “Mole” e “Duro”, “inspiração” e “materialização”, “idealização” e “fruição”, Salvador Dali propõe uma atividade, sistemática e metodologia para criar. Busca o consensual de sua época, a psicanálise freudiana e influencia o estruturalismo de Jacques Lacan, que busca no artista plástico em questão fonte de suas teorias lingüísticas e analíticas.

O mundo do Século 20 ainda refletia nos três primeiros quartéis (75 anos) a influencia das falsas ciências, como a eugênia.

Hoja vista as bases teóricas hitleristas para a realização da purificação racional. Assim como também os hospícios e manicômios judiciais servindo para os dominantes, tidos como “pessoas normais” depositarem os indesejáveis da sociedade, os chamados “loucos” (alcoólatras, viciados, homossexuais, prostitutas e outros que sofriam de suas “oses” – psicoses, neuroses, etc). Quantos Salvadores Dalis ali estiveram? Entretanto não dispuseram de meios financeiros, proximidades de psicanalistas, genialidades e nem excentricidades para canalizarem suas “loucuras” para a criação ou fruição das artes. Entretanto, com base nos estudos de Lacan e outros cientistas tiveram a desospitalização desses seres humanos no último quartel de século passado. E hoje, no Século 21, assistimos a inclusão de todos na sociedade passando pelos caminhos da escola e da ‘Educação Para Todos’ acreditando que a diversidade faz a unidade.

Que seja uma nova sociedade valorizando realmente as suas genialidades e apoiando os de maiores dificuldades!

Caminharemos assim minorando dores e aperfeiçoando saberes, competências e habilidades sabendo que maniqueísmo não existe, bem como o “Bem” ou o “Mal”. Há apenas seres humanos aperfeiçoando suas humanidades.

Barbacena, 29/11/2011.

Prof. Leonardo Lisboa

* Camembert: nome de uma variedade de queijo próprio da Normandia, no noroeste da França.

BIBLIOGRAFIA:

1- AJAME, P. – As Duas Vidas de Salvador Dali – Ed. Brasiliense, SP, 1986.

2- BECKETT, W. – História da Pintura – Edição Ática, SP, 1997.

3- LYNTON, N. – O Mundo da Arte: Arte Moderna, Encuclopaedia Britannica do Brasil Publicações LTDA, 1979.

4- MENEZES, P. – A Trama das Imagens – EDUSP – 1997.

5- PIQUÉ, A.P. e PUETE, J. – Dicionário Biográfico de Artista, Vol. I (A-K) – Ediciones del Prado, Madri – 1996.

FILMOGRAFIA:

1- Garota Interrompida: Janes Mangold

2- Meia Noite em Paris: Woody Allen

3- Opuin – diário de uma mulher enlouquecida: Janos Szasz

4- Poucas Cinzas. Direção: Paul Morrison.

Leonardo Lisbôa
Enviado por Leonardo Lisbôa em 27/12/2011
Código do texto: T3408734
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