Percepção do Mundo em Regina Silveira

PERCEPÇÃO DO MUNDO EM REGINA SILVEIRA

Ao pensarmos, por apenas um instante, no nome da artista plástica Regina Silveira, imediatamente nos vem a imagem de uma obra que transforma a realidade, trazendo um modo de ver o mundo sem nele intervir mas o questionando, como diria Cézanne: os olhos pensam.

Seu universo plástico apóia-se num longo processo de reflexão respondendo questões internas e externas á obra, soma de saberes e questionamentos que vão da Renascença a nossos dias.

Se indagarmos a um observador comum o que chama em primeiro lugar a atenção na obra da artista, provavelmente ele nos dirá: a deformação dos objetos. Existe para isso um termo, Anamorfose, que foi, aliás, usado por ela para uma de suas séries, e que advém de uma pesquisa que remonta á sua dissertação de mestrado. Estudando os tratados de perspectiva do século XVI, Leonardo da Vinci e Brunelleschi, interessou-se pelos jogos da percepção, e daí para a distorção da imagem no maneirismo.

Reside aqui o primeiro ponto a ser esclarecido, anamorfoses não são distorções da forma como á primeira vista poderiam aparentar, mas pela própria etimologia da palavra indicam as figuras formadas de novo, anamorfose sendo a projeção de uma forma fora de si mesma. Na essência consistiria apenas no deslocamento do olhar de um observador, para um novo ponto de vista ou de perspectiva, portanto, em que a mudança do ponto de vista do observador leva á desconstrução da imagem pré- estabelecida.

Regina Silveira faz exatamente isso ao nos propor suas instalações, em que cria novos espaços virtuais, muito diversos dos espaços reais como estamos habituados a vê-los. Constrói um jogo de ilusão, com falsas coordenadas que também poderão ser as verdadeiras, uma vez que a perspectiva euclidiana é um código estabelecido não necessariamente verdadeiro, nos conduzindo a novos espaços com coordenadas próprias, re-perspectivações orientadas pelas linhas que mapeiam a forma.

Quando o artista propõe um reticulado para delinear a figura, aquela malha proposta é uma armadilha que induz o observador a uma nova forma de visão não habitual, criando novas possibilidades para o mundo percebido.

Regina Silveira vai além, elabora um teatro de sombras, do qual a série In absentia é seu ponto culminante, em que a sombra cria vida própria, quando no deslocamento o observador através das margens das instalações termina por ver mentalmente a figura ausente. A importância da sombra com vida própria, remete á dinâmica do sombreamento ( abschattung ) de Theodor Adorno, que propõe o modo parcial e aproximativo com que a coisa externa, a figura, é dada á consciência receptiva, exemplificando que a mesma cor surge em seqüências continuas de sombreamento das cores. O mesmo valeria então para qualquer qualidade sensível, e para qualquer figura parcial. Dessa maneira, uma mesma figura considerada como única, aparece continuamente para a percepção de modo diverso em sombreamentos sempre distintos da figura, situação necessária das coisas com unidade universal.

Em verdade, todo o trabalho de Regina Silveira pode ser visto á luz da fenomenologia da percepção de Edmund Husserl e Merleau-Ponty, partindo do primeiro na análise intencional operada na consciência, entre a descrição fenomenológica dos caracteres de forma e matéria do objeto, ou seja, da receptividade, com a atividade intencional da consciência que opera a síntese do objeto. E essa “síntese”, nos diz Merleau-Ponty, por exemplo, de uma superfície, aponta que não basta visitá-la, sendo necessário reter os momentos de um percurso ligando um a um os pontos da superfície.

Nosso campo perceptivo é feito de ”coisas” e “vazios entre coisas”, colocando semelhança e contigüidade de estímulos como condições objetivas para formar conjuntos, que reunidos constituem configurações. Dizemos então vejo uma forma, e ela será “boa forma” por ter sido realizada em nossa experiência.

Ao analisar a perspectiva, que vem do latim Perspicere: ver claramente, Merleau- Ponty a indica como um dos meios de representação forjados, uma vez que não se trata de uma lei de funcionamento da percepção, e sim de uma ordem da cultura, uma das maneiras do homem projetar diante de si o mundo percebido. As regras da perspectiva são uma interpretação facultativa do mundo, talvez mais prováveis que outras, mas nem por isso verdadeiras, e a própria significação é um processo perceptivo de relações entre figura e fundo, normas e desvios, altos e baixos, próximos e distantes, ou seja, dimensões relativas artificiais que nos permitem organizar uma “ deformação coerente”. Ao desenhar na superfície do mundo vetores e linhas para configurar coisas, terminamos por criar deformações coerentes, e um sentido de aceitação tácito.

Precisamos remontar á criação da perspectiva por Brunelleschi para entendermos a anamorfose, quando este inventa um dispositivo furando uma tabuinha, através da qual o observador veria um ponto determinado no quadro pintado. Com isso Brunelleschi provava que a Perspectiva Artificialis fazia coincidir o ponto do olho ou ponto de vista transposto, para o objeto de sua visão, nascendo daí o engano de que o ponto de fuga principal, aquele que coincide com o olho do observador, seja o único válido. Dessa maneira, o próprio fundamento da perspectiva depende de um equivoco: o lugar de onde se deve ver uma cena não pode ser mostrado na própria cena, o que se prova matematicamente. A perspectiva é um espaço totalmente racional, e que Panofsky nomeia de forma simbólica, já que se situa na área da filosofia, por isso a anamorfose indica uma nova possibilidade do olhar, enganando o olho ao não mais situá-lo no ponto de vista do sujeito, não naquele furo de Brunelleschi, mas em qualquer posição em relação ao objeto, desconstruindo a perspectiva e fazendo triunfar o olhar.

A grande lição da artista, advinda de Merleau-Ponty, é de que a obra é uma matriz de idéias nos fazendo ver e pensar, uma vez que nenhuma analise pode descobrir num objeto nada além do que nele o pusermos, e o sentido da obra sendo apenas uma deformação coerente imposta ao visível. Contudo, até mesmo tendo declarações diretas e explicitas da artista, não devemos nos esquecer de que toda declaração é um ato de autointerpretação, filtrado pela racionalização a posteriori no próprio ato de pensar, podendo obviamente ocultar a estrutura do pensamento.

Em uma postura critica, toda obra e a de Regina Silveira é um exemplo disso, é a somatória dos objetos ou formas mostrados, acrescida do significado que o observador irá perceber de acordo com os limites de seu conhecimento, uma vez que compreender uma obra de arte implica entender a metáfora nela contida.

Walter de Queiroz Guerreiro

Crítico de Arte (ABCA / AICA)