Mergulhando no vórtice

MERGULHANDO NO VÓRTICE


Concebida por Walter Zanini como uma das manifestações da XVI Bienal de São Paulo (1981) a exposição da arte incomum, por isso mesmo com outras denominações como dos Outsiders, Arte Ínsita, Art Brut, e o que me parece mais adequado, Arte do Inconsciente, trouxe ao público graças a Victor Musgrave e Annateresa Fabris artistas de um universo singular, entre eles Eli Heil.
O que indivíduos tão diversos tinham em comum, alguns casos clínicos definitivamente afastados do convívio social, outros oscilando em situações limítrofes vivendo em “transes poéticos” como os definiu Robert Graves, vários inseridos na assim chamada normalidade através da válvula de escape das coisas da imaginação, chama-se arte, em sua essência afinal, o que seria essa arte? Apenas liberdade total, afastada de toda mímese do universo circundante, de todo lastro cultural da tradição, em um processo de reinvenção contínua aflorado do subconsciente, espontânea, extremamente íntima, e trazendo à tona, depois de um mergulho no vórtice dos conflitos, um universo imagético na inserção ser-mundo.
A obra de Eli Heil foi abordada por críticos, desde João Evangelista de Andrade Filho, Adalice Araújo, Jandira Lorenz e outros além da psiquiatra Nise da Silveira, o que torna complexo ir além às análises, contudo falta um dado interpretativo à esse conjunto, qual a ligação entre a simbologia criada e os processos do inconsciente.
Vista pelo ângulo da psiquiatria os trabalhos de Eli resultam de uma viagem íntima levada a bom termo, da forma como foi vista por Dubuffet e Laing, uma criação artística que como processo mental difere de todas as outras pessoas, pressupondo questionamento das normas e costumes, não alinhamento e retiro para o interior de si mesmo, aquilo que generalizando designamos como alienação.
Quanto à questão do produto ser considerado ou não uma forma artística, dependerá de um veredicto externo à arte, já que a criatividade é entendida como um desvio, uma transgressão às normas, e a criação implica não somente em não estar satisfeito com aquilo que existe e que os demais aceitam, mas uma postura de rebelião e conflito com o vigente em todas as esferas.
Nesse sentido o psicanalista Ernest Kris define a criação artística como uma “loucura temporária”, um momento de delírio, que é finalmente resolvido por um reforço e recentralização do ego, consistindo em um “desvio do nível psíquico”, no qual ocorre uma flutuação da regressão funcional e seu controle.
Analisando as obras presentes na exposição de Eli Heil no Museu de Arte de Joinville, e que compõem um recorte em sua imensa produção, uma vez que compreendem um percurso de 1998 a 2008, percebemos temas recorrentes em sua produção, embora fique claro que em sua ânsia criativa as formas jamais se repitam, existindo, contudo uma obsessão íntima, que transparece na sua obra desde o início.
Executadas diretamente com o tubo de tinta espremido sobre as telas, ou fabricadas com resinas epóxi mescladas aos pigmentos (uma vez que mantém segredo sobre sua execução, e somente análise química revelaria a origem) a força das linhas impõe-se como incisões em um baixo-relevo, criando sulcos que delimitam áreas, justapondo cores primárias, basicamente o vermelho, amarelo e azul além do alaranjado, em alguns casos criando um marmorizado como nos antigos papéis de encadernação, irisado de mil cores que se espalham sem se confundir. A impressão passada por esses trabalhos é de que a cor é escavada, criam-se relevos pela aplicação grossa dos pigmentos, mas o conjunto é uniforme integrando-se o plano do fundo àquele que surge rompendo a superfície, saliências do invisível que veio à tona, penetração no mundo exterior de uma cosmogonia em contínuo processamento.
Essa viagem íntima de Eli enquadra-se no processo psicanalítico descrito por Ehrenzweig processando-se em três fases: no estágio inicial existe uma quebra da estrutura do super-ego que inibiria impulsos erráticos, normalmente reprimidos, por se constituírem em sensações indesejáveis e persecutórias. O estágio seguinte é a integração desses fragmentos simbólicos surgidos à obra de arte, somente possível porque todo julgamento crítico foi suspenso, as formas simbólicas encaixando-se em um amplo padrão, pelo desajuste entre o ego e o mundo exterior. No estágio final existe uma re-introjeção ou socialização de tudo que veio à luz nos estágios anteriores, o ego acaba se reorganizando em função do surgido e justificando a criação, aquilo que Ehrenzweig chama de fase da assinatura, quando o indivíduo se compromete com a própria criação. Quanto ao leitmotiv desse mergulho no inconsciente existe uma persistência de formas fantasmáticas, arquétipos na concepção Junguiana da origem comum.
Ao analisarmos essas construções mentais não podemos nos esquecer de que as formações do inconsciente têm sua vida pela forma de sua própria elaboração, revelam sempre um conflito pulsional existente por detrás da forma apresentada, e tendemos a generalizar seu conteúdo, mas como afirma Frayze-Pereira a forma não é um significado, ela é o significado. Podemos tentar interpretar seu sentido oculto naquela forma específica criada entre um saber construído e seus múltiplos significados, mas vemos aquilo que nos é permitido ver, e seu sentido não podem ser reduzidos a seu conteúdo.
São constantes as mandalas, de forma explícita como na obra “Eu o Pássaro no Meio das Flores”, ou veladas como labirintos e mandalas interligados na construção da face de um “Personagem” (1994), cujos olhos arregalados, comuns, aliás, a toda galeria de retratos, bem poderia se chamar “O Espanto” em contraposição ao “O Grito” de Edvard Munch.
Como “círculos mágicos” as mandalas correspondem a um dos arquétipos mais tradicionais da psique humana simbolizando o centro vital da personalidade, a construção do ego em torno de um núcleo como forma de proteção a conflitos emocionais, a aglutinação de sentimentos dispersos em volta de um eixo, que é o selbst ou si-mesmo. Ao resgatar do inconsciente esse símbolo a artista busca um equilíbrio interior, proteção à perturbação interna, avassalada pela realização alucinatória dos desejos que afloram.
A segunda forma que surge, confundindo-se com a mandala, é o labirinto como uma espiral de voltas apertadas, uma condução do homem ao interior de si mesmo, viagem de transformação do eu em busca daquilo que é mais secreto, e que no retorno não-psicótico traria à luz a multidão dos desejos. Visto por outro ângulo, este labirinto que é uma forma enrolada sobre si, remete à serpente, presente, aliás, em alguns trabalhos como imagem de uma força interior, designada por Jung como Kundalini, correspondendo a um processo dinâmico de ascensão da força da libido.
Olhos e ovos confundem-se no trabalho de Eli Heil, no entanto em diversos torna-se patente o símbolo da Polioftalmia, uma multidão de globos oculares circundando o tema central e indicando um estado particular do inconsciente, um estado momentâneo da “consciência múltipla” junguiana. Desnecessário dizer que o ovo marca o trabalho de Eli como símbolo da fertilidade, potencial de geração, imagem-clichê da totalidade. Entretanto, lado a lado deste símbolo positivo surge outra possibilidade, a dos conflitos internos entre introversão e extroversão, na dialética entre ser livre e aprisionado.
No processo de simbolização da psique, entre a vivência na imagem e da própria imagem, organiza-se uma estrutura de alternância rítmica entre perda e ganho, positivo e negativo, e na oscilação imagética forma-se diálogo da saída de uma situação para uma meta, na normalidade dita processo de individuação.
Na obra desta artista, paralelamente aos ovos aparecem com mesma força os pássaros, que se identificam com sua personalidade, assumindo claramente pela forma como forças em atividade de caráter fálico, vistos por Jung como imagem negativa da anima. Em um trabalho específico “Eu o Pássaro no Meio das Flores”, esta ave é ornamentada com uma crista de plumas, coroa simbolizando a concentração de forças exteriores e interiores de natureza solar. Surge aqui com a mesma autoridade do sol, tantas vezes presente como símbolo da consciência alcançada, e do princípio ativo da fecundidade. Curioso aspecto que este pássaro multicolorido assume um caráter lombrical, cercado por outros vermiculares, que na concepção junguiana simbolizam o caráter destruidor da libido e não o fecundador, como intrusos indesejáveis que destroem o afeto.
Outra simbolização constante na constituição do pássaro é uma ambigüidade na forma, cabeça alongada com bico em oposição ao corpo arredondado, assumindo às avessas a cabeça de um espermatozóide, do bico surgindo a língua como o flagelo, finalizado em um coração. Ora, nesta forma lanceolada que também é a do coração estilizado, vê – se na realidade uma flecha, símbolo da libido, trazendo consigo a imagem de encravar, como ato de união contra si mesmo, auto fecundação e um ato de auto violação.
Em suas próprias palavras, o pássaro é ela, mas também uma projeção, encerrando um conflito interno, que na alucinação realiza um desejo. Papel paradoxal o do pássaro, mais uma vez reafirmado em uma pequena obra, em que a figura feminina aparece dividida, um só corpo com duas cabeças, uma com todos os dentes à mostra, como na maioria de suas figurações, outra de modo insólito com lábios delicados e a boca fechada, inscrição de uma história individual, como confissão de um processo de cisão da mente, entre a agressão sexual e a normalidade.
As fileiras de dentes indicam essa vontade de possessão, símbolo de uma perigosa agressão dos instintos, individualizando o apetite dos desejos materiais e ao mesmo tempo se resguardando, como muralhas de proteção do ser. Essa simbologia, aliás, é a que incomoda basicamente aos observadores, pois em qualquer escala animal mostrar os dentes aponta para agressividade como perversão dominadora.
Uma longa galeria de retratos, todos com a figura centralizada, indicam uma atração particular pela face humana, como espaço imaginário em contínua transmutação. De acordo com René Spitz, o primeiro objeto que assume uma forma e cria estabilidade no campo visual é a face, que retém seu valor primário libidinal através da existência, apresentando uma tendência a assumir maior valor nos estados alucinatórios, identificando-se com projeções de seu duplo, daí a importância do tema.
Mergulhar na obra de Eli Heil é entrar no vórtice dos conflitos sugado pelo imenso redemoinho cuja borda é um atraente e largo cinto de espuma luminosa, cada partícula cintilante, girando em vertiginosa velocidade, deslizando pelas encostas, descendo precipitadamente pelo sorvedouro, aqui e ali flores / hélices sinalizando o inefável, corpos girando, sexo-seios-órgãos genitais femininos à mostra, farândola simbiótica do humano-animal, todo o espaço ocupado pelo horror vacui, numa demonstração compulsiva de uma imensidão íntima a ser preenchida.
Depois, a calmaria, lançados para a superfície deixamos para trás um mundo particular, de estados limítrofes no comportamento obsessivo-compulsivo do fazer como cisão da personalidade, e a tentativa de apreensão de um universo fantástico.

Walter de Queiroz Guerreiro, Prof. M.A.