A HUMANIDADE DE GREUEL

A HUMANIDADE DE GREUEL

Na criação fotográfica de um artista a outra face humana

Na origem a fotografia ocupava um espaço misterioso entre a alquimia, as ar-tes mágicas e a ilusão. O fotógrafo era aquele demiurgo, que possibilitava aos co-muns mortais passarem do mundo insípido e profano ao mundo sagrado da repre-sentação, e o retrato seu supremo registro de um ato criativo, compartilhado entre criador e criatura. A expectativa do retratado era estar imortalizado de modo similar aos retratos pintados no passado, e em certos momentos pintores e fotógrafos se confundiam, criando-se uma escola do realismo em que os fotógrafos buscavam agregar atributos espirituais e qualidades subjetivas ao retrato, da mesma maneira que os pintores o faziam. Courbet, Degas e Monet na busca de unificar poesia e verdade, se utilizaram da fotografia como registro da presença da realidade, entre-tanto a arte pictórica ambicionava mais, ser o real espelho da natureza. A meta prin-cipal do retrato era a verossimilhança, a capacidade que Aristóteles já apontava na “Poética” sobre a mimesis, pela qual o “homem se diferencia dos outros animais porque é particularmente inclinado a imitar”. Assim, qualquer obra mimética é trans-posição de forma, e o artista forma a imagem através da mimese.
O fotógrafo através do retrato revelaria a verdade interior fazendo o modelo posar, e este ao assumir a pose desvendaria sua verdade autêntica, seu próprio có-digo de valores, sendo o retrato a antítese da foto de improviso, do registro foto jor-nalístico, surgindo a verdade pela transcendência do próprio código. Roland Barthes aponta exatamente isso: torna-se imprescindível pelo negativo desconstruir o efeito do real e da mimese, para recolocar de forma positiva a realidade na fotografia. Reside aí o grande dilema da fotografia: evitar o efeito do espelho, destruir todos os artifícios da representação, evitar que o modelo referencial captado pela câmera termine por retornar, eliminando assim todos os resíduos do traço.
Friedrich Schlegel ao discutir o gênero retrato afirma que de forma alguma o retrato deve idealizar os traços fisionômicos, e sim realçar o que é exclusivo ao indi-víduo, mostrando aquilo que está oculto. Uma tentativa para isso será o caminho apontado por Oesterle nas artes plásticas, a caricatura ou o arabesco. Entendia cari-catura como algo além da deformação, implicando na relação estrutural que o corpo tem com sua forma, a busca de uma conduta do corpo dissipando o reconhecimento de uma mimese. Isso foi realizado modernamente pelo pintor Francis Bacon, e no passado pelo escultor austríaco Franz Xaver Messerschmidt (1736-1786), cujos estudos fisionômicos se afastariam do retrato pela idolatria da figura humana.
A grande confluência de idéias da Bauhaus permitiu o aparecimento das fotografias solarizadas, com efeitos de delineamento e relevo únicos, utilizadas pela primeira vez por Liesegang em 1920 e Man Ray em 1926. Das experiências da Man Ray com os fotogramas surgiu a marca registrada de seu trabalho, o efeito Sabatier identificado como solarização, quando uma cópia fotográfica é exposta à luz durante o processo de revelação. Isso produz uma reversão parcial das tonalidades, especialmente nas áreas de luzes altas, e que no retrato criam um efeito psicológico, envolvendo a figura humana numa aura.
Nessa linha de quebra na tradição do retrato como mera reprodução da for-ma, Paulo Greuel fotógrafo catarinense estabelecido em Dusseldorf, conhecido pe-los ensaios fotográficos publicitários em veículos internacionais do porte da Vogue, Donna, Elle-Itália e Taxi de New York, surge como um legítimo pesquisador da arte fotográfica contemporânea brasileira, e na Coleção Gilberto Chateaubriand, revelou uma visão nova da diversidade humana, de que no fundo existe unidade na perso-na humana. As quatro imagens selecionadas no módulo “O Negro de Corpo e Alma” são retratos de grandes dimensões (180 x 127), em que a inversão aparente das luzes altas e baixas aproxima-se da proposta de Man Ray, afastando-se, entretanto, de Man Ray pelo acaso que existe no processo de solarização, uma vez que por ali se tratar da reação físico-química torna-se impossível de ser calculada, e as dimensões do efeito Sabastier imprevisíveis.
As imagens de Paulo Greuel pelo contrário, são pacientemente construídas numa arquitetura da luz, os refletores e spots recobertos de máscaras fundem as cores, buscam suas complementares, dissolvendo as formas numa despersonaliza-ção contínua. Seria essa verdadeiramente uma despersonalização, a dissolução da cor da pele em um mundo irreal, onde caracteres secundários refletem a identidade racial como vestígios de aparições de um universo paralelo, ou Paulo Greuel veste suas imagens com a máscara de Prosopon, aquele que deu seu nome à Persona?
A máscara luminosa estaria ali, sublinhando as características próprias, transformando a imagem representada em expressões de serenidade, ternura, desafio e beleza, de materialização da dignidade, a transmutação visível das qualidades humanas. Greuel cria assim a antítese da foto ao vivo, do modelo em lugar do Snapshot, da imagem capturada, e produz ao contrário seu inverso, a interiorização dos caracteres transcendendo o próprio modelo, vestindo a máscara para desvelar o real.
Na ressonância interior a distorção das luzes libera o corpo, e se apenas o particular é destacado, lábios e cabelos, e através deles pudermos encontrar o uni-versal, nos restará apenas a reflexão como advertência à ilusão dos sentidos, e a inútil tentativa de qualificar os homens.

Walter de Queiroz Guerreiro
Crítico de Arte (ABCA/AICA)