AÎSA

AÎSA


Diante de si o estojo aberto e um nome, Ninguém. Tal como escrínio, contendo uma rara jóia emoldurada travestida de lembrete visual advertindo aos homens do destino que os aguarda; uma paisagem, atormentada pela passagem do tempo, visível no escorrido obscurecendo o céu ou da chuva ácida devastando a terra, a linha do horizonte marcada pelas montanhas despidas de nuvens, pois ali não mais acontecem as lutas eternas entre carne e espírito. Adiante, o verde intenso dos campos intocados, carregados de um valor mítico, heráldico, do sinople que é o da regeneração da própria Terra, antítese de tudo, vida e morte, dos paraísos verdes e dos Campos Elíseos, tranqüilizante como princípio vital, da paisagem idílica como natureza virgem, entretanto, contendo em seu âmago o mofo da regeneração. Aonde se esperariam águas lustrais como purificação, amorosas, dormentes e embaladas pelo verde nada existe. Sobra a cor pardacenta, plasma de uma lama que é o início da degradação, ponto incerto de um jogo que retorna à origem desse Ninguém. Apenas um dado vermelho, lançado no número quatro, será seu destino.
Lenir de Miranda assim principia, através de uma citação plástica, a recontar o canto IX da Odisséia de Homero e o destino de Ulisses, herói cheio de malícias. Ulisses, considerado por todos um grande herói, chamado na verdade com esse nome por seu avô Autólico, com o sentido de filho do ódio, por isso a Odisséia homérica, resultante de estar irritado com alguém. Herói dúbio, Nanos o errante, é quem aporta à Ilha dos Ciclopes, onde nela se vêem, junto à margem do mar pardacento, macios e úmidos prados. E Ulisses como Nanos o errante, ao ser indagado por Polifemo quem era responde: Ninguém é o meu nome. Essa a situação e este o momento da epopéia, centrado aqui em um elemento espúrio, o dado, que comparece como metonímia do acaso. Mais uma vez a artista remonta à noção da Tyche grega no sentido amplo do acaso, aquela causa acidental para a qual não houve nenhuma intervenção divina ou humana. O dado, mais que nenhum outro representa a teoria dos jogos, o fortuito, para o qual gesto, o impensado conduziria a um resultado. Seria apenas esta a proposta? Existe aqui uma sobreposição de significantes, o dado pintado vermelho escuro e o número quatro exposto. Como forma cúbica o dado simboliza a totalidade terrestre e celeste, criada e incriada na causalidade, o número quatro visto pela psicologia Junguiana como todos os processos psíquicos conscientes e inconscientes. Seria assim um símbolo perfeito, porém não apenas com um significado: por ser a totalidade do criado é ao mesmo tempo do perecível – a morte. Vermelho também é a cor proposta no dado deste jogo, ambivalente, pois se é a cor da vida também o é como sinal de interdição, cor da libido oculta e da paixão desenfreada. Rompe assim com toda a tradição do dado branco como cor de passagem e revelação, não por coincidência inexistindo o inverso, já que o preto seria o vazio absoluto, a cor estéril, não permitindo quaisquer possibilidades. Coincidência na escolha da artista ou mero recurso plástico atraindo o olhar? Não creio, a cadeia significante é apenas a cadeia do desejo, como afirma Lacan.
Aîsa, aquela que decide o destino nos poemas de Homero, aqui preserva o dado para outros tempos, recordando forças não totalmente compreendidas. Acerto e erro equivalem ao ato inicial de um destino, aprender como o Homem dos Dados de Luke Rhinehart, a insignificância causal de toda causa evidente, um simples lance de dados.


Walter de Queiroz Guerreiro, Prof. M.A.
Crítico de Arte (ABCA/AICA)

Walter de Queiroz Guerreiro
Enviado por Walter de Queiroz Guerreiro em 18/02/2012
Reeditado em 23/03/2012
Código do texto: T3506042
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