Ser ou não ser, Claudel


SER OU NÃO SER, CLAUDEL



Concebida como peça trágica ”Hamlet, Príncipe da Dinamarca” inigualável na dramaturgia ocidental, é pela grandeza de seu contexto e originalidade marcante através dos tempos, assinalando a existência de uma consciência e paradigmas na dor e hesitação humana, de um ser em desespero. O monólogo de um cético, repetido ad nauseam, vem-me à mente como diz Nietzsche, de um ser que pensa demais.

“Ser ou não ser, eis a questão” (Ato III, Cena 1) poderíamos nos perguntar a cada momento, decisivo ou não para nossa tranqüilidade emocional, e esta pergunta assoma aqui, em um instante especial da arte. Desde sua inauguração no Museu de Arte de Joinville, a tão prestigiada exposição “Camille Claudel, a sombra de Rodin” levantou em alguns espíritos inquietos questionamentos, e estes me têm sido feitos com freqüência, a ponto de necessitar um esclarecimento.

A grande dúvida, e sua pergunta subjacente são: as obras expostas são originais ou cópias, meras réplicas para um percurso educativo (e nem por isso destituídas de valor), ou são autênticas, marcadas pela aura de uma artista trágica, símbolo entre tantos outros de uma paixão cega e do abandono de um ser confinado à loucura?

A questão se origina de um elemento sociológico que envolve a criação da obra de arte, principalmente da chamada grande obra, e do desconhecimento por parte do grande público do processo de produção das esculturas em bronze. De início, criou-se um mito, fundado em preconceitos da sociedade moderna em torno da questão da autenticidade, não se aceitando a possibilidade de uma criação ou trabalho conjunto na produção de uma obra de arte. Estabeleceu-se assim uma hierarquia entre a obra de mestre, única, singular, e que é a transposição de uma visão de mundo condensada em símbolos, e a repetição serial da mesma obra num aspecto mecânico, de menor valor porque industrial, o que já implica num juízo de valor negativo pela eliminação da aura do gênio criador.

O segundo aspecto, este de caráter técnico, tem a haver com o trabalho do escultor como modelador, que principia no século XVI quando o artista que antes trabalhava a pedra passa a modelar a cera e a argila, separando o trabalho do criador e do mero artesão, no caso, o fundidor. Michelangelo chega a afirmar “a modelagem é um processo de adição, enquanto a escultura é um processo de subtração”, querendo dar maior valor às obras retiradas da pedra, e é nessa ocasião que começam os métodos de translado mecânico, com obras modeladas em gesso que serão ampliadas em mármore, e outras fundidas em bronze. Ficamos assim no primeiro impasse, qual o maior valor, a obra modelada em argila ou o trabalho finalizado em bronze, uma vez que este seria seu objetivo final.
Vamos dar aqui um salto de alguns séculos, até a segunda metade do século XIX, com a sociedade firmada em Paris entre o fundidor de bronzes Barbedienne e Achille Collas, inventor de um pantógrafo capaz de copiar em escala qualquer modelo, produzindo assim bronzes d’édition, ou seja, tiragens de obras selecionadas. A ele se seguirão Susse Frères, Hébrard, Valsuani e outros, que apesar de se identificarem com selos de procedência de fundição irão introduzir um novo comportamento de mercado: a obra não é mais um original, mas produto de uma equipe, o escultor propriamente dito, o fundidor, o cinzelador e o finalizador com a pátina artificial.

A fundição que até então era executada pelo processo de cera-perdida, e implicava na produção de uma peça única, a não ser que se tirasse um molde do primeiro bronze fundido e dele novas cópias, ligeiramente menores pela retração do metal, passa a ser executada pela fundição em areia, com a obra secionada em várias partes, moldada em duas metades que depois de fundida será remontada, eliminando-se as junções. Teria assim se perdido o trabalho original do escultor? Não, bastando ver os bronzes de Rodin, modelados em argila pelo artista, fundidos em gesso, a partir dos quais Paul Roche prepararia as ceras, Aléxis Rudier fundiria os bronzes, que seriam depois retocados e cinzelados pelo próprio Rodin. Se compararmos os gessos originais, ainda conservados no Museu Rodin, com os bronzes fundidos por Rudier veremos que as obras conservaram-se integralmente em suas concepções.

Quanto à tiragem, ponto sensível para todo colecionador que ambiciona a posse única do objeto artístico, recordemos que Dègas ao falecer deixou um acervo de bailarinas em cera jamais fundidas, num total de 150. Seu marchand Durand-Ruel salvou 73 fundindo-as em bronze através de Hébrard, que produziu uma tiragem de 22 peças de cada obra, identificando-as com as letras do alfabeto, além de duas outras, uma para o fundidor, outra para os descendentes, todas assinadas postumamente como Degas e com o selo do fundidor, portanto 1606 bronzes autênticos.

No início do século XX os fundidores e o próprio mercado de arte passaram a se preocupar com as tiragens, convencionando-se que a escultura em bronze autêntica pode ter uma tiragem de até 12 peças, 10 no mercado, uma para o fundidor e outra para o artista, destruindo-se depois o molde.

Se formos ao centro de nosso debate, a originalidade (ou não) dos bronzes de Camille Claudel veremos que essa regra foi respeitada, a maioria de suas obras permanecendo em gesso e postumamente fundidas em bronze. Ainda em vida Camille Claudel negociou com o marchand e fundidor Eugène Blot várias de suas obras, como “A Valsa”, que as fundiu, inclusive reduzindo suas dimensões. Pensemos no caso específico da “Valsa”, em sua concepção original com o par dançante nú, e que o Ministério das Belas Artes, embora reconhecendo a virtuosidade na concepção, exigiu que a artista vestisse os personagens, e que Claudel recobre com um panejamento. Desta obra temos fundições de Eugène Blot (a primeira), Rocher e Coubertin, todas numeradas e dentro das convenções. Se a questão for originalidade, qual seria a “verdadeira”, aquela de 1892 despida, a de 1895 censurada, a primeira de Eugène Blot, ou as seguintes?
Não iremos nos estender sobre o assunto, apontando números que justifiquem a obediência a uma regra de mercado, mais interessante é nos questionarmos sobre uma obra como a Onda, de 1897, em que a água foi esculpida em um bloco de ônix verde, sob a influência orientalizante do japonismo então em voga. O caráter poroso dessa pedra, suas linhas de fratura e camadas que acentuam a cor captada pelo material translúcido dão-lhe a força vital primordial. Entretanto, esta mesma obra foi fundida postumamente por Rocher (8 peças) e por La Plaine (4 peças), e em todas elas a onda original em ônix foi substituída por bronze patinado na cor verde, absolutamente fiel aos detalhes, mas perdendo a refração da luz nas camadas da rocha. Foi-se o encanto do material, restou-nos a concepção, seria ela suficiente?

A resposta é sim, toda arte não é um processo de fabricação, um simulacro da realidade, mas um ato de captação, uma maneira de perceber o mundo, mostrar o não visto de forma coerente consigo mesma, se ela nos passa essa percepção no próprio momento de seu nascimento (com nossa consciência), ela é autêntica.

Voltemos ao universalismo de Shakespeare e àquela pergunta formulada por Hamlet a si mesmo, que pode ser respondida noutro momento da mesma peça (Ato I, Cena 5): “Há mais coisas entre o céu e a terra, Horácio, do que pode sonhar tua vã filosofia”. O mal do reino de Elsinore é o mal que nos atormenta na eterna dúvida em que acreditar, uma vez que a verdade e o erro não são excludentes, e a verdade (e por extensão a autenticidade) é a adequação do intelecto à coisa.



Walter de Queiroz Guerreiro
Historiógrafo e Crítico de Arte (ABCA/AICA)