Ensaio sobre o ser- Fragmento I

Fragmento de “Resposta”

(...) e tantas outras coisas que a ti parecem absurdamente esquisitas, como o fato de eu ser (isso o dizem as palavras tuas), respeitando-se alguns espaços de tempo, incrivelmente sensível e, em outros momentos, inexplicavelmente impessoal. Digo-te, pois, e não me admira nem tampouco me espanta que já não o soubesse, que é dessa contradição que agora vivo, porque, sozinhas, nem uma nem outra, nem a sensibilidade nem a impessoalidade souberam agir em mim como força propulsora, como sentimento volante. E, não bastasse isso, digo-te mais: não sou um ou sou outro, sou os dois; dessa forma, sou de novo um só, fortalecido. Ser sensível me permite, além de dar vazão aos meus próprios sentimentos de maneira íntegra, honesta (de outra forma me negaria a fazê-lo), suportar a engolidora avalanche de sentimentos alheios. E isto, dirão os entendidos, é o ser sensível de verdade, tendo em vista que, muitas vezes, por não dizer quase todas, a preocupação com os próprios sentimentos nada mais é que egoísmo puro, então, perdoada ou, no mínimo, desconsiderada a cegueira que tantas vezes nos assalta, o que seria a nobreza de um gesto afunda-se em nosso interior movediço. A impessoalidade garante-me a distância necessária à imparcialidade, visão melhor terá quem o vê de fora, dirão outros, eu o diria melhor, que visão diferente terá quem o vê de fora, nem melhor nem pior. Desta imparcialidade já citada dependerá a “justiça”, em toda forma de julgamento, mas enveredar-me agora por tão improváveis caminhos seria lançar ao desperdício custosas palavras e, ao preço que estão, não me agradaria fazê-lo.

O que mais lamento (e, talvez, a única coisa que, de fato, lamente) em situações como esta, e em outras de similar calibre, é saber de antemão que querer explicar assim, com pensamentos que por si só já surgem automaticamente sintetizados, sentimentos tão contraditórios e, por isso, o quão dependentes que já sabemos que são entre si, seria tão sem sentido como suicidar-se em uma manhã de segunda-feira. O que está em jogo, porém, é a busca de um equilíbrio, dose certa disto, dose certa daquilo, e aí já não precisamos monopolizar sensações, já não nos guia cegamente a emoção ou nos arrasta friamente a razão. Não te esqueças, contudo, que tal equilíbrio é de efeito passageiro, o corpo, mutável que é, promoverá resistência, hora mais, e cada hora mais é hora menos, cairá a tranqüilidade por terra. E, caindo os muros de nossa fortaleza invisível, e disto nos daremos conta depois, tarde ou não, nos tomará de surpresa uma leve sensação de liberdade. Liberdade esta que é sempre a chave-mestra, a palavra-prêmio para o conformismo, para a acomodação. Caindo assim nas garras do aparente sossego, num amar que é uma sombra de amar, evapora-se o encanto. E isto me leva a pensar que não é de todo mal viver em crise: a inquietude, o desassossego, o desacordo, mostrarão uma nova saída (isto não é uma regra; tampouco, trata-se de uma exceção. Ousaria dizer até que se trata de um caso, se não único, pelo menos raro, de "regra de exceção": um, tanto melhor lhe vier; outro, quando melhor lhe couber.). Por isso, te digo: cada vez mais, ser diferente é ser igual. Quanto mais mudamos, mais somos os mesmos, e o que somos, o que cada um é, é uma coisa que está dentro de nós, "uma coisa que não tem nome", e por isso se faz tão difícil encontrar, e por isso a buscamos em todos, e não a encontramos em ninguém, porque ninguém nos pode dar o que a nós mesmos negamos, e por isso damos voltas e voltas e permanecemos estáticos, e por isso temos olhos que olham para o lado errado, certo seriam olhos de espelho.

Virão, depois disso, as inevitáveis perguntas, tolos diriam que preocupar-se assim é deixar de viver, respondo eu que não preocupar-se com nada é, de certa forma, viver e não saber por que se vive. E digo, por fim, e aí sim, digam também o que disserem, seja na língua dos anjos ou dos demônios, digam o que for, que já de ouvidos tapados estou, digo com todas as letras que é bela demais (se curta, isso saberei em outra) a vida para deixá-la viver sozinha. (...)