Obra de arte, entre o uno e o múltiplo


Verdade e mitos sobre o caráter excepcional das obras de arte



Escrita há 71 anos a obra emblemática de Walter Benjamin, “A obra de arte na era da reprodução técnica” (1936), parecia encerrar definitivamente o caráter sagrado incorporado à criação das obras de arte, particularmente da pintura, diante dos novos meios de reprodução da imagem, especialmente fotografia e cinema. Hoje (2007), assistimos na Quadrienal de Kassel a um ressurgimento da pintura com toda sua força, contrariando vaticínios da pós-modernidade e de novos processos da criação artística, notadamente arte digital, videoarte e holografia, paradigmas do novo século após a saturação de instalações das últimas décadas.
Para compreendermos realmente as palavras de Benjamin, repisadas ad nauseam principalmente pelo seu engajamento político, teremos que aclarar o que ele pensava a respeito da aura nas obras de arte, e em que contexto ela surgiu. Walter Benjamin sinteticamente assim coloca: “O que é propriamente a aura? Uma trama singular de espaço e tempo, única aparição do longínquo, por mais próximo que esteja”.
Ora, nessa definição fica claro que a aura é a soma de qualidades antagônicas, apesar da proximidade espacial está distante, é única no fluxo do tempo, por isso irrepetível. Esse caráter seria então incompatível com a sociedade moderna, uma vez que o acesso igualitário à arte (e nisso coloca-se o viés político do autor), a exigência legítima das massas acolheria sua reprodução, a necessidade de possuir o objeto aceitando a cópia e extinguindo a aura.
Mas, como surgiu o conceito de aura em Walter Benjamin? Sua explicação surge na “Pequena História da Fotografia” (1931) ao comparar uma fotografia de Franz Kafka ainda criança com fotos antigas: se neste ele surge com olhar desolado, abandonado pelos deuses, nos retratos antigos de David Octavius Hill (1802-1870) havia uma “aura” que surgia pela fraca sensibilidade das películas obrigando as longas exposições, o que provocava um continuum absoluto, da luz mais clara à sombra mais escura, em que ele as comparava às gravuras em Mezzotinto. Filosoficamente esta tese de Benjamin prende-se a fundamentos religiosos da arte, que segundo ele, teria caráter contemplativo e fetichista, inadequados para um público das classes militantes de esquerda. Na verdade, essas idéias de dessacralização da obra de arte derivam de Max Weber, por sua vez antevistas por Hegel, prevendo o fim da arte, uma vez que “nós não estamos mais no tempo em que se rendia um culto divino às obras de arte...”, e o que Benjamin propõe é através da reprodução abalar a autoridade da coisa, despreender o objeto assim reproduzido do domínio da tradição, democratizar as imagens pela multiplicação de exemplares. Diante disso sua conclusão só poderia ser que a pintura é incapaz de se dirigir a um público de massa, cairá em desuso comparado às artes de reprodução técnica, no caso fotografia e cinema.
Apesar disso a pintura continuou existindo, e no Brasil foi alçada a um patamar acima das outras representações bidimensionais como o desenho, aquarela, colagens e gravuras. Criou-se até mesmo de um ponto de vista puramente mercadológico, uma escala artificial de valores, colocando-se no topo a pintura a óleo sobre tela e no fim as serigrafias.
Afinal, o que significa a pintura como meio único, obra de arte acima de outras formas de representação? Existem pinturas, encontradas aos milhões pelo mundo, produtos humanos da mimese como forma de registrar o mundo, e existe a pintura, conceito único de representação como expressão, distinta das convencionais de decoração. A pintura como expressão da arte é uma condutora do olhar, representa algo, e ao dizer representa lembramos que o significado de representar é voltar a tornar presente, tornar visível algo ausente, integrar ao mundo algo que ali não está. Wittgenstein numa posição fenomenológica refletiu sobre a dualidade do ver e do ver como, a dialética de uma lógica tornada clara por Merleau-Ponty. Ao vermos uma pintura tornamo-nos videntes de algo, nos dispomos a experimentar pelo sentido da visão a uma experiência de mundo, bastante distinta do vivenciar uma instalação pelo despertar de vários sentidos. Se para o leigo a observação de um quadro seria simplesmente uma sensação de fruição, algo para ser apreciado e o que isentaria de participação, o que certos autores alegavam ser a forma predominante de visão até o século 19, modernamente exige-se um observador participante, que entrega o olhar a um processo reflexivo. Até o próprio Walter Benjamin, já apontava que o observador ao ver uma imagem construída por um pintor, treinava sua pontecialidade de compreensão, e que um observador do século 15 veria coisas diversas daquelas vistas por um do século 20, uma vez que a pessoa se individualiza determinada historicamente pela visão de seu tempo.
A importância da pintura seria então destacar determinadas aparências do mundo e tornar-las visíveis, comentada de forma indireta por Shakespeare ao colocar em Hamlet a fala sobre a assimetria dos espelhos, metáfora sobre os espelhos como meros reprodutores das aparências, quando na verdade os espelhos, e por extensão as pinturas entre outras obras de arte, em vez de nos devolverem o que neles vemos tornam-se instrumentos para o autoconhecimento. Essa é a grande qualidade da obra de arte, seu caráter inesgotável, e como disse Paul Valéry, presença de uma ausência, reprodução de uma das características da imaginação que é estimulo à reflexão. Todo esse processo foi detalhadamente estudado pelos neurologistas, indo além dos aspectos da fenomenologia e interpretação semiótica, sendo que a retina não captura apenas a imagem e a envia ao cérebro, é um estágio de processos diversos de interpretação da informação: linhas, cores, movimentos, que formam nosso olhar, culminando no caso da pintura com a leitura da obra. Pelas críticas feministas nas décadas de 1980 e 1990 sobre uma história cultural dos sentidos surgiu um questionamento sobre o “olhar inocente” do observador, polemizando a necessidade da observação do original, da obra primeira como uma afirmativa masculina do poder (e da posse evidentemente sexual), por extensão à obsessão filosófica de uma presença da obra de arte, a famosa aura de Benjamin. Haveria realmente alguma diferença entre aquela obra primeira, única, que justificasse essa aura, distinguindo-a das demais reproduções, tiragens ou o que fosse? A resposta é sim e não. Se olharmos a obra original de Tintoretto, O Milagre dos Pães e dos Peixes no Metropolitan Museum de New York verão que o artista utilizou uma tela de trama tão grossa que acrescenta algo à imagem, é uma cena que não reproduz a realidade, impedindo-nos de considerá-la um acontecimento do mundo, quando reproduzida aquela textura desaparece ou não nos passa a sensação de vê-la pessoalmente e o objetivo do artista, seja ele qual for, desaparece. Diante das obras originais de Vermeer e Rembrandt sentimos exatamente como foi captada a luz interior, uma luminosidade excepcional construída de dentro para fora pelas sucessivas transparências e veladuras do óleo, a tal ponto que suas luminosidades excedem a própria luz daquilo que representam. Entre o observador e a obra, ontem como hoje, passa a existir uma cumplicidade, um autoengano, em que se sabe que a cena é pintada, mas ao mesmo tempo parte de nosso espaço. A este propósito, aliás, nada mais interessante é observar a “Ronda Noturna” de Rembrandt na lateral do quadro, e constatar a espessura da tela devido às sucessivas camadas de tinta criando a ilusão ótica de continuidade entre nosso espaço e a pintura. Queiramos ou não, existem reações estéticas diferentes conforme estejamos lidando com a constituição mental da obra e o seu substrato material, e aí surge uma indagação, inúmeras vezes os artistas concebem uma obra e em sua execução decorrem problemas diversos, os Pentimenti (arrependimentos quanto á construção das imagens), ou então versões diferentes para a mesma obra, algumas melhores, outras piores. Onde ficaria a aura da obra através da repetição ou da diferença entre versões sucessivas? Quando se trata de gravuras o problema vai mais longe, especialmente quando o próprio artista retoca a buril a matriz de cobre desgastada pela tiragem, terá maior significado a primeira versão ou as tiragens sucessivas? Quando Rembrandt assina uma gravura trabalhada por ele, encima de uma chapa iniciada por Seghers onde fica a aura, do primeiro, do segundo, de ambos, e mais ainda na multiplicação pelas tiragens sucessivas a aura da obra única se perdeu ou foi ampliada pela difusão da obra?
Vamos dar um salto no tempo e chegar à Pop Art dos anos 60, no caso as serigrafias de Robert Rauschenberg buscadas em imagens comuns da mídia impressa, e alteradas através de suas intervenções. Andy Wahrol, Roy Lichtenstein, todos se apropriaram de ícones imagéticos, Marilyn Monroe, John Kennedy, foguetes da era espacial, caças Phantom da Guerra do Vietnã, enfim imagens já criadas e absorvidas antes de se tornarem arte. Clement Greenberg, o grande crítico da arte norte americana dos anos 60 acentuava a distinção entre High e Low Art, o confronto entre arte e não arte, o ponto em que o artista ia além da ilustração. Para ele, como para muitos outros, cópia e citação são coisas bem diversas, a cópia apenas substituindo o original e sendo sua sucessora como estrutura e relacionamento com o mundo, enquanto a citação apontaria qualidades que o original não possuía, por isso podendo ser brilhante quando acrescentasse novas dimensões ao olhar. Apesar disso, para a cultura de massas isso não ficou claro, não sabendo distinguir entre o autentico, no caso a obra primeira e o que para ela seriam estereótipos, meras cópias ou reproduções. Haveria então para o leigo diferença entre a grande arte, a obra prima revestida da aura e o que lhes parecia ilustração, o que nos remete de volta a Rauschenberg, quando numa litografia compõe como colagem uma série de imagens de obras de arte consagradas reunidas num “Centennial Certificate” de 1969, como “tesouros da consciência humana”, imagens sobrepostas, homogêneas e ao mesmo tempo evanescentes, fluidas como a própria memória humana, na experiência de um mundo vivenciado pela arte. Do mesmo modo, Andy Wahrol cria em um diptico o ícone Marilyn Monroe (1967) como sex-simbol mundial em pintura acrílica e serigrafia, e através da sucessão de imagens o processo de assimilação de uma imagem formada pelo inconsciente, com o desgaste pela repetição. Seria uma Low Art por se tratar de ilustração da sociedade de consumo, ou uma High Art por reproduzir uma das qualidades da imaginação, cercada de aura, portanto uma vez que é a única aparição de uma qualidade longínqua embora próxima? Wahrol pela repetição do retrato faz ver e comenta o próprio sentido da imagem e a banalização de um ser vivo, acrescentando assim o traço mais importante da contemporaneidade: a necessidade da reflexão.
É isso que Vik Muniz faz, quando nos fala que copiar é ampliar o valor simbólico de uma imagem através da infusão de uma nova tecnologia, e que tudo tem mais a haver com o estudo da concepção da obra do que com a realização. Isso foi feito no passado, quando Michelangelo copiou Masaccio e Giotto, por sua vez copiado por Rubens, que foi copiado por Watteau. Eliseu Visconti no Brasil copiou a Princesa Marianne da Áustria de Velázquez, e John Constable na Inglaterra copiou Ruysdael e em 1802 criou o “Vale Dedham” a partir de Claude Lorrain com sua “Paisagem com Hagar e o Anjo” de 1646, por sua vez recriado por Vik Muniz em 1996 na série “Quadros de Linha” produzido com linha de carretel, spray para cabelo e papel. Essa releitura fotografada posteriormente tornou-se um múltiplo, abordando a relação entre a sensualidade material da execução e a lisura bidimensional do suporte, opondo a tactilidade à ilusão do espaço pictórico. Reconstitui-se assim o original, e como diz Vik Muniz ao adquirirmos a imagem de algo temos a sensação de possuirmos um vestígio do objeto retratado, inconscientemente compramos parte da “alma” do tema, quem sabe uma fração de aura da obra única.
Encerremos com a questão inicial: a obra de arte como tal, tem caráter único ou múltiplo? Marcel Duchamp tentou através da ironia de seus Ready-made desqualificar a aura que cerca a obra única, criação envolta em mito, e sem dúvida temos que concordar que a construção da obra de arte não a torna intrinsecamente portadora de um conceito que a justifique com obra de arte. O original, a obra primeira perdeu seu significado, contemporaneamente indo além de uma realidade extra-artística que não se apresenta ao observador.
A palavra final tem o filósofo de arte Arthur C. Danto, quando afirma com toda propriedade que a grandeza da obra de arte, com seu caráter unívoco está na grandeza da representação, que a obra materializa.

Walter de Queiroz Guerreiro
Historiógrafo e Crítico de Arte (ABCA/AICA)