Jesus imagem do Homem

Através de quinze séculos a figura mais representada na arte

Os contemporâneos de Yehoshuah, não poderiam imaginar que aquele garoto rebelde seria a imagem mais representada por todos os artistas, em 2000 anos de cristianismo.
Nascido em Bethlehem, província romana da Judéia no ano 4 a.C. pelo nosso calendário, Yehoshuah Ben Yossep era filho de José e Maria, e seu nome na lingua aramaica  transcrito para o grego se tornaria Yeshu ou Jesus no Ocidente, e receberia de sua comunidade o título de Meshkiakh ( Messias), que em sua origem seria "o ungido",aquele redentor prometido por Deus aos judeus e ao mundo para estabelecer nova ordem social.  Christos em grego é a tradução do nome , com o mesmo significado, na difusão dos textos dos evangelhos a partir do século quatro d.C. no Ocidente.  Para a comunidade Yahad, facção dentro do grupo dos essênios, ele era o “líder da congregação”, aquele que se oporia aos saduceus e filisteus, desafiando mesmo os sacerdotes do Templo, aqueles que pregavam a reinstituição do Templo de Salomão.
Não existe paralelo na história da Arte, de um homem que através de quinze séculos tenha sido tão representado, e provocado um florescimento de criatividade artística, quanto a representação da imagem de Jesus. Sendo ele a antítese de toda representação de imagens divinas,uma vez que na tradição judaica nem o nome de Deus pode ser enunciado, muito menos sua imagem, porque se tornou inspiração e qual a validade dessa aparente idolatria?
Fundamental para isso acontecer foi a afirmação unânime contida no Novo Testamento e nos ensinamentos da igreja dos primeiros tempos, de que a imagem de Deus é seu logos.( O logos é a palavra de Deus, sua revelação e a razão da existência do mundo). João de Damasco, teólogo grego e doutor da igreja no século VII afirmou que a imagem verdadeira de Jesus seriam todas as formas possíveis de representação, uma vez que o Cristo ao adotar sua identidade física, tornou o logos em carne e uma imagem adequada de Deus só poderia ser algo tão nobre, quanto a mente humana poderia conceber.
Existe uma estranha coincidência entre as imagens criadas pelos artistas e aquela impressa no Santo Sudário de Turim, exaustivamente examinada pelo Dr. Leoncio Garza-Valdes, professor de microbiologia e criador da arqueomicrobiologia na Universidade do Texas. As provas colhidas da presença real de sangue do tipo AB, bastante raro na população mundial e comum entre os judeus do norte da Palestina, a identificação positiva do sexo masculino e o conjunto de análises estereométricas, apontam pela autenticidade do tecido, independentemente das controvérsias surgidas pela datação de C14, onde houve contaminação por bactérias vivas.
A figura impressa no Santo Sudário revela um homem branco com 1,80 metros e cerca de 80 quilos, rosto anguloso e longos cabelos repartidos ao meio terminando nas costas, aparentando ter bigode e barba curta dividida. Durante séculos a imagem do Santo Sudário foi posta em dúvida como possível falsificação, convindo lembrar, entretanto, que esta imagem bastante realista e perfeita do ponto de vista anatômico, e que analisada em computador gera figura tridimensional pelas áreas de contato entre a mortalha e o corpo, é bastante diversa daquela concepção artística do século XIII, em que teria sido falsificada e descoberta. A noção de anatomia de Giotto no século XIII, por exemplo, é completamente distinta de Leonardo da Vinci no século XV, quando realmente os detalhes da anatomia humana passam a ser estudados.
E é isso que fascina nas imagens artísticas de Cristo em certa época, do Cristo Pantocrator de um ícone russo do século VI dentro da tradição bizantina de pintura, até a imagem criada pelo pintor José Clemente Orozco no século XX, conhecido como o Goya mexicano por sua crítica social, um dos grandes muralistas deste século pela força expressiva, e que propõe Cristo como um revolucionário e libertador da opressão.
As imagens de Cristo remetem diretamente ao reflexo do momento histórico em que surgiram, Fra Angelico em 1433 pinta a Madona com o Menino Jesus para a igreja e convento de S. Mateus em Florença, como a personificação do poder e da lei, a majestade entre dois mundos, o terreno e o espiritual. Já Hans Memling em 1487, encerra a tradição flamenga da pintura gótica, com Cristo Salvador numa atitude mística e ascética, o equilíbrio entre a nobreza e a doçura, a tristeza resignada e o caráter misterioso da cidade de Brugge, onde produziu algumas de suas obras primas, as primeiras pinturas a óleo contemporâneas dos Van Eyck.
Quão diversa é a imagem de Jesus flagelado, o “Jesus na coluna”, pintado por Antonello da Messina no século XV italiano, em que os detalhes, a luz e a composição transparecem a grandiosidade dos pintores venezianos, imprimindo grandiosidade ao sofrimento humano do Messias.
Que artista encarna melhor o espírito da Renascença que Leonardo da Vinci, artista, pesquisador, escritor, cientista? Renascença é a descoberta do mundo pelo homem, de acordo com Jacob Burckhardt, o maior historiador e pesquisador do período, e o próprio conceito surge através dos ensinamentos de Jesus: “quem nasceu do alto (Renatus) não pode ver o reino de Deus”.
A cultura da Renascença mostra os pintores apresentando uma nova teologia da encarnação, como forma adequada de expressão, em que a naturalidade da figura humana de Jesus transparece, e de que a “Madona dos Prados” de Rafael Sanzio (1505) é um exemplo.Outro grande exemplo de adequação da imagem à época a meu ver, é a obra de Caravaggio, a " Ceia de Emaús", em que o Cristo surge após a ressurreição como homem comum, no simbolismo profundo que no momento da crucificação o divino passa a ser o humano, um homem entre os homens.
Correndo paralela à imagem plástica de Jesus, em épocas sucessivas criaram-se características próprias, um caleidoscópio de palavras que buscam dar compreensão de uma figura imutável pela teologia, aquele que é o mesmo, ontem, hoje e sempre. Desde seu papel na tradição rabínica, no contexto do judaísmo como redentor de um povo cativo, passando pelas indagações filosóficas de Santo Agostinho, permanece a imagem de Jesus como a chave do que a humanidade era e poderá vir a ser.
A personalidade multifacética de Cristo, da reconciliação do homem com a natureza, da luta íntima do próprio homem entre consciência e inconsciência, explique talvez a pulsão dos artistas de todas as épocas, na representação da imagem poética daquele que é o começo e o fim de todo conhecimento.


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Walter de Queiroz Guerreiro
Historiógrafo e Crítico de Arte ( ABCA/AICA)