Os Eu’s

Um dos dramas vividos na contemporaneidade, que não vem de agora, mas que ainda existe, é o conceito de Eu. Tal termo surge em dado momento, sendo construído a partir de uma série de concepções, até que tenha se tornado essa coisa que pressupomos singularizada. O objetivo era mostrar o caráter individual, diferindo de pensamentos generalistas, só que nada mais generalista do que a particularização do genérico. Assim, nos fizeram crer nesse uno indivisível, fragmento solto que se rebela contra outros fragmentos e qualquer ideia de todo.

Mas esperem, nos mostraram, porque não mencionar Jean-Paul Sartre, que esse outro que rivalizamos, é tão uno quanto nós, criando a principio uma contradição relacional entre duas potências. Até o surgimento de novas afirmações, como a de Michel Foucault, sobre esse uno ser uma farsa da dobra ocorrida, não de dentro para fora, mas justamente o inverso, é o fora que constrói esse falso dentro, dobrando sobre si. Gilles Deleuze não deixa de expor esse caráter falsário desse individualismo, bem exposto por Foucault como sujeito assujeitado.

Encontramos em Friedrich Nietzsche a base desses pensadores citados, bem como tais correntes que negam esse um que quer se fazer também absoluto, a ponto se tornar aquilo que nega, em uma nova afirmação universalizante, saindo do grande e passando ao pequeno, apenas transferiram o foco, mas continuam preso ao mesmo preconceito, o todo que é uno e se faz de maior ou menor, na tentativa de simplificar em um ponto, como se pudéssemos juntar todos e formar essa imaginária reta, que segue essa linha contínua e estéril.

O desenvolvimento da psicanálise não ajudou a resolveu o problema, concepções como “ego”, ajudaram na construção de algo que clama por si, na busca de se fazer ouvir em uma imposição infundada. Na busca pelo eu, observaram tantos outros rivalizando, além desse não-eu que é a única coisa próxima de uma substância nesse caso. Diante do escândalo desse biodiversidade eusística, acredito que o poeta Fernando Pessoa tenha conseguido um lampejo dessa bioeulogia. Com seus heterônimos, mostrou como é ser multiplico ainda que se diga um, numa relação que envolve mais do que um centro, mas um campo de áreas apenas periféricas.

O Eu, para ter alguma serventia, deve ser visto de forma caleidoscópica. Somos um emaranhado de Eu’s, correspondentes a todos esses Foras que se relacionam conosco, moldando diversas facetas, são máscaras, personas, que são fabricadas e nos servem para compor o que concebemos enquanto personalidade. Não existe um Eu Fulano. Sartre mesmo expõe o Fulano-Lendo-Jornal, o Fulano-Bebebneod-Café, são todos Fulanos, mas jamais poderemos reduzi-los a um, é o processo relacional que impera, criando uma variedade dentro de si que busca compensar esse efeito de fora que não conseguimos conceber, embora saibamos captá-lo.

O Fora se dobra sobre nós, e como ele mesmo é feito de Diferenças, apenas reproduzimos simulando essa influência, com efeitos repetitivos, que vão ecoar em nossa personalidade. Nosso constrangimento está em tentar nos explicarmos de forma resumida, tentando assumir apenas um dos Eu’s, criando um conflito irresolúvel. Não somos esse Um que tentam nos modelar, por isso acordamos com um humor e adormecemos com outro, pois existe um conflito de múltiplas identidades interagindo. Basta observarmos as relações sociais, é como criar um ambiente social dentro de si, onde um engana, o outro sofre, outro ama e outro odeia, ao mesmo tempo temos essa cadeia de sentimentos que não se resolvem, no máximo chegam em brevíssimos acordos que causam uma apatia que confundimos com harmonia, já que a vida pulsa em meio a esse conflito contínuo. Nós, enquanto seres vivos, também somos conflituosos e digladiaremos enquanto existirmos.

Mesmo Pessoa não resolveu o conflito, porque tentou separá-lo. Criando cada um dos seus heterônimos, apenas fez Uns separados, ao invés de deixar reinar o caos. Quando damos o nome a um filho, já o condicionamos a ter um caminho, uma identidade, um sentido. A busca por esse único, uno, universal, unívoco. A relação entre dois, é feita de uma biodiversidade já existente em cada um desses chamados Uns, além da mescla de ambos, causando uma Transeudiversidade. Não esquecendo o Fora, que continua atuante em ambos, o que remete a no mínimo três esferas maiores em uma relação dos chamados Dois, são eles e o Fora, partilhando dessa ininterrupta movimentação vivente.

Como Ele ou Ela é o Eu de Fora, e já comentamos sobre o Eu ser múltiplo, antes devemos abolir qualquer pronome que não seja o Nós. Adotando apenas o Eu para falar do Nós sendo visto por uma fração disso que chamo persona, assim como o Tu, seria Eu de Outro mesclado comigo, já em uma relação próximo, o Ele um Eu mais distanciado, a ponto de pensarmos somente como hipótese a partir do Eu e do Tu. Quanto ao Eles, seria o Nós ainda discriminado, visto como se estivesse longe, mal visto por olhos ainda presos a uma visão glaucomada.