Na obra de Schwanke a busca para compreensão do mundo
 
Artistas há em que o processo reflexivo se constrói voltando-se para a história da arte, outros para a obra em si, alguns pinçando momentos de releitura, uns poucos criando através de processo conceitual discussões sobre o fenômeno da percepção. Schwanke é um desses artistas que trafegou nos dois caminhos, movido por inquietação íntima, na apreensão de sua própria experiência de mundo, e através dessa análise buscando elaborar uma síntese, além da própria existência. Construiu esse processo através da desconstrução da imagem, submetendo a impressão inicial a seguidas intervenções, transformando o problema perceptivo em ampliações do gesto, como Aracy Amaral bem observou, indo além da exasperação do gesto:a expressão, ampliando-a a ponto de criar novas formas. Contudo guardou um referencial direto da imagem primordial, a idea atrás do impulso, o sinal gráfico persistindo na seriação. Na verdade mais que a caricatura apontada por Aracy, perdura ali o detalhe, o “dettaglio” de Daniel Arasse, aquele momento de estranhamento na obra poética que tende a deter o olhar, a perturbar o expectador, o resultado da ação daquele que talha o detalhe, incidindo na matéria bruta e criando a forma particular. Porém o detalhe, aquilo que irá caracterizar a construção plástica, é apenas um instante numa longa série de instantes que devem ser congelados, e assim se faz necessário preservá-los, elaborar séries, acumular repetições, catalogar e selecionar evidências da existência. O detalhe é aquele traço isolado num painel de “Linguarudos” que transmite toda sensação de asco, de repulsa do ser enquanto homem, de perfis pintados sobre material descartável, o jornal, como descartável é a própria existência. Aqui e ali exaspera a figura, recobre de branco o fundo, ressalta o caráter sexual, carrega na ironia das imagens que se anulam em conjunto, o todo não é a soma das partes, é a negação da natureza humana.
Este impulso na observação de vestígios tem quase caráter científico, com a signalética(descrição verbal  pormenorizada ) de um retrato do método Bertillon, a exacerbação das aparências morfológicas na espécie humana. A tentativa de registro de todos os signos possíveis, é aquela que Gilles Deleuze aponta como um processo de aprendizagem mais que uma busca, decorrente de uma disposição consciente de uma sensibilidade à flor da pele. É a resposta às sensações afetivas, à sociedade, às variadas interpretações dos signos em intermináveis significações, buscando debater a verdade da lógica nas representações. Reside aí talvez, o sentido das contínuas seriações, deformações e apropriações na obra de Schwanke, tentar organizar a existência, encontrar sentido através de deformações da verdade, entender o caos individual e seu reflexo no social, a violência da sociedade pelo gesto isolado, a cadeia repetitiva da presença de um fantasma, que se materializa através de substitutos. A multiplicidade serial, num enfoque psicológico teria estrutura edipiana, e seu texto não necessita de assinatura do autor, é o próprio texto de sua vida, uma pulsão de conhecimento levada a extremo, ilusão de poder criar e descriar. A repetição serial acrescentaria algo, corresponderia ao conceito de Kinesis, a mudança, a releitura conferindo novo sentido à singularidade. Não se trata de repetição do já visto, mas de nova leitura de uma mesma visão, e na repetição funda-se o próprio mundo como realidade.
O caráter nitidamente visual, construtivista de Schwanke, se apóia continuamente em esquemas visuais e a intelecção, o processo conceitual, sobrevive através dessas sondagens inúmeras de uma constante observação, buscando algo escolhido e passível de ser representada, na sublimação de uma pulsão classificatória, a resposta do por quê.
A aparente diversidade na linguagem de Schwanke, incompreensível à primeira vista desde releituras de Caravaggio, passando por La Tour e chegando a Canova, Mondrian, adentrando pelo neoexpressionismo pari passu com Antonio Henrique Amaral, mórbido como Ivan Serpa, e a seguir voltando-se para o neo-concretismo de um Lothar Charoux e o rigor construtivo de Willys de Castro, finalmente buscando a forma ausente na arte conceitual do “Cubo de luz”, somente tem uma explicação. Para quem conheceu seu vigor intelectual, seria impensável que pudesse ter embarcado em modismos momentâneos e até ultrapassados, apenas uma pulsão poderia justificar racionalmente essa diversidade.
Quando visita o neoconcretismo lhe interessa as variações, os contrapontos, a manipulação das formas, de modo a gerar o máximo de informações visuais, explorando a seriação, como exercício de formalização do objeto artístico. Foi uma arte povera lato sensu ao se apropriar do plástico como matéria-prima, e o resultado é tão válido (embora até hoje incompreendido em sua própria cidade) quanto nas colunas dóricas. Se na arquitetura clássica grega as estrias introduzem movimento ascendente, as colunas de baldes com suas estrias horizontais refazem o papel das Arris, as arestas gregas, quebrando a uniformidade na superfície. Mais uma vez a soma de elementos remete à seriação, e a cor agrega um elemento estético que irá acentuar esse caráter, presença de objetos banais do cotidiano noutro contexto.
Da inquietação inicial, obsessiva sobre a natureza da luz, do princípio da incerteza entre existência e não-existência, luz e sombra, do surgimento da luz pela escuridão, e de onde termina o objeto e começa a percepção, foi um trajeto até a instalação do “Cubo de luz”, que na memória de Schwanke se aproxima do “cubocor” de Aluisio Carvão, demonstração cabal de que a cor tem densidade material. O “Cubo de luz” será sua obra máxima, a desmaterialização da obra, o paradoxo de um objeto imaterial, a luz,como maneira de vir a ter existência independente, surgindo o objeto observado pela própria ausência. Como antinomia, reflete exatamente a contradição inevitável de dois pólos dinâmicos, a compreensão de que a formação de uma imagem nunca é simples, não persistindo naquilo que é visto e depois desaparece, indo além, permanecendo na memória como um discurso dialético, entre o que se vê e o que pode ser intuído. A ausência irá dar contexto à forma, e a própria ausência é o signo de sua existência. É aquilo que Walter Banjamim considera como aura do objeto, um dom de visibilidade que se mostra por estar distante impossível de ser expressa a não ser pela memória, indício legítimo da ausência. Esse é o outro lado de Schwanke, distante da produção serial, mas ainda preso ao processo da percepção.
O significado do percebido, como afirma Merleau-Ponty, vem através de uma constelação de imagens, que reaparecem sem razão. Compreender o objeto é uma ilusão, e a percepção constrói-se através de estados de consciência, um longo processo de organização da existência. Schwanke foi em si um fenômeno da percepção.
 
 
Walter de Queiroz Guerreiro
Crítico de Arte (ABCA/AICA)