APENAS O ACASO


No princípio era o caos. É dessa maneira que Hesíodo, poeta grego do século VIII a.C, inicia a Teogonia, contando a seu irmão Parses uma concepção de mundo, originária de mitos dos povos indo-germânicos.
Como especulações cosmológicas, para o início de tudo, existiram terra e céu separados pelo Caos, e Eros, a força criadora que de maneira racional explica a existência. Mas, o que seria este Chaos?
Hesíodo o descreve como um vazio primordial, ilimitado, desordenado, em que todos os elementos que irão formar o universo se misturam regidos pelo acaso. Essa noção de acaso será exaustivamente estudada por filósofos e modernamente por psicanalistas, mas simplificando podemos dizer que aquele acaso aristotélico, que designava o encontro fortuito de duas séries causais, nada mais é que a articulação temporal de uma série de significantes, que entendemos como realidade do mundo, e que pela rememoração confere significado ao mundo.
Lenir de Miranda, em exposição atual na Cidadela Cultural Antarctica (anexo ao Museu de Arte de Joinville), explora em instigante instalação na qual o estranhamento decorre da velocidade vertiginosa e múltipla de signos, aflorando na repetição “possível” de instauração da obra. Para o observador desavisado a instalação instaura-se em três momentos isolados, entretanto dialogando entre si: são os fastfoods, oitenta e poucas bandejas “vendidas” como de consumo rápido (e cujo conteúdo já é um contra-senso, por se tratarem de slowfoods do pensamento), o vídeo “Visão pós-traumática do Dejeneur sur l’herbe de Manet, e uma tela - instalação “Por Onde Andares”.
Já de início os fastfoods, que pelo volume de informações aponta para o paradoxo de um serviço destinado ao consumo de massas, e que, entretanto, o desorientam pelo excesso, trazem uma dupla sinalização do que nos espera. São embalagens fechadas que nos deixam entrever o conteúdo, e aí constatamos a antinomia entre os componentes, entre as caixas e os rótulos, no caso chamado de “Poemáticos Conturbados”, no retorno à causa primeira do mito. Hesíodo, na Teogonia, é o primeiro a nos descrever a criação de Pandora, a detentora de todos os dons. Modelada como ardil, para punir os homens pelo furto do fogo efetuado por Prometeu, Pandora, o “mal tão belo” como nos diz Hesíodo, destampa uma jarra espalhando aos males, e noutra versão os bens, restando sempre um presente dos deuses, a esperança.
Cada caixa contém assim o bem e o mal, ficando como exemplo a caixa que é o convite à exposição, “Et in Arcadia Ego-SoS”. O título, como tantos outros na instalação de Lenir é uma metáfora literária do conteúdo, explora a ambigüidade de uma obra de Nicolas Poussin (1630), entendida habitualmente como uma paisagem nostálgica e idílica, perdida na Grécia Antiga, por sua vez uma releitura de Guercino (1618) em que a mensagem visual é clara, e interpretada por Erwin Panofsky: “até mesmo na Arcádia eu (a morte) estou presente”.
Vejamos o conteúdo: atraindo a atenção pelo tamanho e cor uma maçã mordiscada, fruto da árvore do conhecimento, do bem e do mal, a globalização de todos os desejos e o símbolo de uma possibilidade, o da escolha, logo ao lado vemos uma pequena esfera, que na filosofia platônica indica o mundo, o mais semelhante a si mesmo na totalidade e ambivalência. Acima, temos a imagem de um santinho, figura masculina com cota de malha e manto romano, empunhando crucifixo com a palavra “hodje”, identificado na hagiografia cristã como Santo Expedito, centurião da XII Legião Romana, a “Fulminata”. Como um dos patronos dos militares e das causas difíceis, relaciona-se diretamente com as miniaturas de soldados presentes, o míssil, relógio e bússola, aqui, aliás,onde tempo e espaço respondem pela transformação que irá ocorrer.
Um termômetro aponta para a possibilidade do fogo interior, e das limitações da existência individual, associado à guerra como expressão da cólera. Ainda significando calor, porém com outro sentido, na outra extremidade uma ampola contém líquido vermelho sinalizando o sangue, veículo da vida, e também da transubstanciação, um comprimido alude ao remédio para todos os males, capaz como a benzedrina de trazer o alívio ou a morte. Dois pedaços de carvão, um intacto, outro metalizado indicam a Grande Arte hermética da alquimia, na passagem simbólica do nigredo pela calcinação dos desejos, transforma-se pelo rubedo na coexistência pacífica dos contrários, e ao metal despojado de todas as impurezas.
O dado lançado com o número quatro exposto, simboliza a totalidade do criado e revelado terrestre, o fundamento arquetípico da psique humana por Jung, e o último grau de aperfeiçoamento da anima. Os pequenos dados ao lado, criando a mensagem internacional S.O.S lançam um pedido de socorro diante dos conflitos.
Ironicamente Lenir serve a bandeja com um garfo, instrumento sofisticado criado pela cultura ocidental na educação à mesa, e um sachê de mostarda, condimento bastante forte para temperar o prato. Como elemento complementar cada bandeja, inclusive esta, é acompanhada de um “Poemático Conturbado”, na realidade pensamentos originados dos Haikai no zen budismo. As frases fragmentárias adquirem aura surreal distanciando-se do conteúdo das bandejas e, como na poética dos Haikai, sua a finalidade é criar vertigem, induzir a uma série de intuições de significado, que pela repetição conduziriam a uma ampliação sensorial, indo além do pensamento organizado.
Presa à etiqueta deste poemático há uma pluma, que comparece também em algumas outras caixas, fazendo citação ao poema de Mallarmé (1897) “Um lance de dados nunca descartará o acaso”, na estrofe referente ao naufrágio: cai a pluma ritmicamente suspensa do desastre para se afogar na espuma original... A pluma, pela leveza e capacidade ascensional, sempre esteve relacionada aos rituais de adivinhação e ao jogo do acaso.
A escolha desta poesia, do maior simbolista francês, como arcabouço da instalação vai de encontro à intenção original do poeta, ao criar uma forma tipográfica inédita, em que o espaçamento do texto assume importância vital pelo silencio criado, de modo a que a imaginação surja e se desvaneça ao ritmo do texto; enfim as palavras surgem como imagens, e em Lenir as imagens remetem às palavras, solicitando ao observador a leitura mental do texto oculto.
A segunda parte da instalação conjuga em vídeo uma releitura do “Dejeneur sur l’herbe” de Manet, obra revolucionária no contexto impressionista, com o poema “The Waste Land” de T.S.Eliot. Poema extremamente complexo, pelo simbolismo e tema da terra devastada, as referências ali são inúmeras: Baudelaire, Dante, Shakespeare, a Bíblia, Wagner, Santo Agostinho, Verlaine, e até mesmo a arquitetura inglesa de Sir Cristopher Wren. Para nós, basta citar a interlocução de que Eliot faz no término de V. What the thunder said ( O que o trovão disse): Datta. Dayadhvam. Damyata. (Doar. Compadecer. Guiar) e Shantih. Shantih. Shantih.(a paz que dissipa a compreensão) ambas frases que encerram os Upanishad, texto filosófico do hinduismo. Cabe também, na mestiçagem da instalação, o trecho final do Sermão do Fogo (III), diretamente utilizado por Eliot a partir do texto mais importante budista:
Queimando queimando queimando
Ó Senhor tu me colheste queimando
Ora, Lenir elabora a partir de uma cena bucólica de Manet, que já era releitura de Giorgione, uma visão traumática contemporânea. Conforme o crédito presente no vídeo existiria som (não ouvido por problema técnico) acompanhando as imagens, no caso a Sinfonia Pastoral (nº 6) de Beethoven. Pensando na estrutura de seus movimentos, que partem do “despertar de alegres impressões ao se chegar ao campo” passado pela “tempestade” no quarto movimento, é fácil entender a transformação. Lembremos que existe algo de estranho no quadro, uma sensação de falta de diálogo entre os personagens, sendo que a figura central, a mulher desnuda, tem expressão absorta em seus próprios pensamentos e distante da realidade. Na transformação contínua proposta por Lenir, os figurantes se atualizam, a mulher sustém uma bandeja, as cores por tratamento digital se saturam, o contraste fica violento submergindo a imagem em violetas e vermelhos, até desaparecer no negror de uma área interditada pela fita listrada amarelo-preta. A cena se encerra com restos de um encontro entre amigos e as citações a Eliot, uma inicial: Vou revelar-te o que é o medo num punhado de pó, outra final: Estarei sentado aqui, servindo chá aos amigos, que nos recorda Proust pelo tempo recuperado e perdido.
O terceiro momento da instalação consiste numa tela em acrílico com desenhos em carvão, uma imagem deteriorada que opõe a horizontalidade do mundo expressa pela vegetação queimada à recordação esboçada de duas figuras verticais, situando o humano como vaga lembrança da irracionalidade do mundo. Em um dos esboços o registro de um homem e o grafite de um coração como afirmação de existência, dali pendendo um cordel. Este, como frágil símbolo ascensional, também é a indicação de um fio espiritual que liga todas as criaturas. No chão, uma série de calçados amarrados pela fita de impedimento dirige-se à tela, intitulada “Por onde andares”, apontando no anonimato das relações humanas à apatia da incomunicabilidade.
Instalações absolutamente contemporâneas pelas tensões introduzidas através dos signos constitutivos, íntegras nas questões formais envolvidas, nos depararam aqui com o que Icleia Cattani define como mestiçagem. Fala-se tanto de hibridismo como expressão atual de arte, que se esquece de ser o hibridismo produto final apresentando fusão de linguagens diversas, que não mantém as tensões dos componentes diferentes. No caso em pauta, na mestiçagem, sobrevivem as poiéticas próprias, aquelas motivações e processos criativos de cada linguagem, ainda identificáveis na obra constituída como poética pessoal. Este é claramente o processo de Lenir de Miranda, uma soma infinita de significados, fluindo, manifestando-se aqui e ali sem perder suas referências, um exercício contínuo da memória. As apropriações do cotidiano, sobreposições de sentido, ambigüidades de leitura, tudo ali existe em tensão permanente, a própria utilização do espaço expositivo distribuído em três momentos que se interrelacionam com vazios entre si, responde ao conceito criado por Mallarmé.
Surge assim uma obra criada como hipertexto fragmentário, no chamado pós-modernismo, como rede de encontros neurais fortuitos, entretecidos por elementos dispersos e meros frutos do “acaso”, dialogando pela visualidade desenhada na memória, composição emergente de uma construção de múltiplos significados, desconstruídos e relacionados pela contínua intersecção do limite entre artes.
Existirá apenas o acaso? Como Hesíodo nos Erga, te digo: Se quiseres, contarte-ei com arte uma segunda história até o fim.Acolhe-a, porém, no teu coração.


Walter de Queiroz Guerreiro, M.A.
Membro da Associação Brasileira e
Internacional de Críticos de Arte (ABCA/AICA).