Cortando e colando, a aventura gráfica de um mestre da ilustração
A mão que empunha a tesoura é a mesma que segura a pena, o critério de segregação do fundo, de excisão da imagem, de rasgamento do papel, são os mesmos daquela cuidadosa colocação do recorte, da formação e da colagem, do impulso caligráfico que preenche o espaço, qual vinheta de uma linguagem desco-nhecida. Tide Hellmeister, um dos maiores artistas gráficas e ilustradores brasileiros, tornou claro em antológica mostra na Pinacoteca do Estado de São Paulo (31/10/2000 a 16/02/2001) seu processo criativo em 500 obras selecionadas, no percurso de 40 anos de trabalho. Todos em alguns momentos já viram uma obra sua, aquelas fantásticas ilustrações do “Diário da Corte” de Paulo Francis, no Ca-derno 2 do Jornal “o Estado de São Paulo”, pela sinalização gráfica de palavras ile-gíveis, cuidadosamente traçadas na caligrafia de um mestre do passado. Faz-se presente a nostalgia de uma forma lúdica, de pura poesia barroca, em que a palavra se liberta de todo conteúdo, fluindo constantemente como diz Huizinga, do material ao pensado, coincidência entre verdade e beleza. Poder-se-ia acusar Tide de barroquismo na construção da imagem, entretanto existe mais verdade que a desconstrução do artista barroco desnudando a realidade, desnudamento que é, aliás, o título do livro de artista, lançado durante a retrospectiva. O desnudamento é exatamente isso, a fragmentação dos detalhes, os recortes retirados da realidade, a sondagem profunda de um indivíduo que é o objeto artístico, a subordinação de múltiplos elementos à complexidade do todo. Se ser barroco é combinar as partes no texto, formando uma estrutura homogênea, então Tide é um artista barroco. Por outro lado quão moderna é a desconstrução, a libertação criativa de todas as suas partes, a expressão gráfica de todo um conteúdo a que ele empresta sentido, a inquietação na linguagem das cortes e recortes de refinamento intelectual, em que a mensagem plástica é a metáfora da palavra.
Hellmeister como ele mesmo afirma é um intuitivo, sem normas estabeleci-das, em que seu processo de criação, a colagem, flui livremente. Os ilustradores atuais poderiam considerar o trabalho de Tide como a pré-história do Photoshop, aquele programa de computação que possibilita a rápida alteração das imagens, num processo de recorte ótico. No entanto, embora ferramenta útil, jamais o proces-so criativo das artes gráficas, poderá ser substituído na escolha dos mestres tipográ-ficos e linotipistas, no equilíbrio entre formas e cores, pasteis e nanquins, no relevo das matrizes secas e texturas dos papéis.
Esse é um de seus segredos, o processo inconsciente da escolha, a manifestação livre da mão criando garatujas que nada significam, mas se reportam ao todo.
A caligrafia rebuscada tem aqui outra função, não é ela a vinheta que explica a imagem, faz ela parte da linguagem do ícone, refletindo em sua forma o sentido da informação plástica. Existe realmente uma inseparabilidade entre forma e conte-údo, a forma obtida através dos recortes é a expressão do sentimento, e num pro-cesso inverso, o conteúdo da imagem é a expressão plástica criando a própria for-ma.
Não existe no seu processo o ornato como acréscimo à forma, a produção do objeto artístico é a própria matéria formada, qual lava vulcânica inseparável de sua cratera borbulhante. Os componentes plásticos intelectualmente se atraem, fun-dem-se, é o que é dessemelhante, no caso a linguagem escrita, torna-se o con-traste que irá acrescentar uma tensão espacial maior que a própria imagem inicial.
A aventura tipo Gráfica de Hellmeister em “Desnudamentos” é bem isso, a noção clara dos distanciamentos que configuram um sentido lírico nas modulações da forma. Nos poemas de Otoniel Santos Pereira, seu parceiro de jornada, reflete-se a criação de Hellmeister, em que “o pensador se toma pensamento”, a matéria dócil endurece e “entre os poros da pele e os da pedra em forma humana, a mão deforma as semelhanças”, não podendo existir maior tensão emocional no contraste que essa criação poética do desnudamento nos faz viver.

Walter de Queiroz Guerreiro
Crítico de Arte (ABCA/AICA)