A sensação primeira diante das obras de Anselm Kiefer é de monumentalidade, de amplitude da cena que o olhar mal consegue abarcar. Em seguida vem o impacto do tema, a densidade dos tons sombrios e uniformes, variando na escala do cinza e das cores terra. Surgem então os primeiros vestígios através de nomes, situações, referências históricas que podem ser verdadeiras.
A admiração por Marcel Duchamp indica um dos caminhos que norteiam sua concepção pictórica, a que obriga o observador a se colocar como pequena parte daquele cenário teatral, agregando algo à obra. A participação direta irá além da submissão ao tema proposto, uma vez que na pintura não sendo simples narrativa coexistem varias leituras possíveis. Enquanto as dimensões grandiosas exigem distanciamento para apreender a totalidade os detalhes (sejam sementes, metal, vestígios de escrita) forçam o individuo à aproximação. Esta, ligada à imprecisão de nossa visão periférica, torna ambígua a relação entre o visto e as imagens dos modelos mentais que emergem. Mais ainda, a fixação prolongada para decifrar a proposta faz com que a perspectiva acelerada de grande convergência nos pontos de fuga inverta o fundo tornando-o positivo, saltando em direção ao observador e evolvendo-o. Nesta situação, seguindo a proposta de Duchamp, o observador terá de refletir, ir além da construção plástica, desenvolver um processo mental que chamaríamos de metapintura, uma vez que entra no campo da semiótica, em que cada elemento pictórico agregado tem caráter de sinal, de vestígio, de valor dentro do sistema de valores do conhecimento humano. O tratamento da perspectiva não segue, entretanto um modelo repetitivo, ao contrário cada obra é concebida do inicio ao fim com objetivo preciso, delineado pela abordagem mais adequada, ora propondo uma visão vertical ora lateral, às vezes seccionando a paisagem em representação planiforme. Se o tratamento é diverso a intenção é única: colocar o observador diante de uma realidade volumétrica, no caso das obras planas diante de uma vitrine em que o espaço existe além do vidro.
Kiefer é às vezes rotulado como um novo pintor histórico, alguém que evoca fatos do passado com nova visão, até mesmo um romântico, pela aproximação às paisagens monumentais e solitárias de Casper David Friedrich (1774-1840). A história, entretanto, é mais um dos elementos utilizados por Kiefer na elaboração de sua obra, da mesma forma que o esoterismo da Cabala e das tradições ocultas da Alquimia. As referências cruzadas, as metáforas, a busca interior para um sentido no mundo tornam extremamente complexa a obra de Kiefer, se há algo que possa caracterizá-la é a ambiguidade, a orientação em direções opostas.
Sua obsessão por certos materiais como o chumbo, o emprego do fogo, as referencias a Robert Fludd um dos personagens históricos que admira, a mensagem apocalíptica do homem como destruidor da harmonia do Cosmos criaram uma aura de misticismo em torno do artista. Percebe-se, no entanto que, embora ele não possa negar a origem sua tendência natural é tentar compreender o Universo utilizando de todos os meios a seu alcance, inclusive aqueles cercados de mistérios, com a intenção de fazer ver que sempre existiram contradições entre a verdade aceita e aquela que pode ser intuída, entre a ciência e a religião, nenhuma tendo caráter definitivo. Essa contradição é que afasta qualquer possibilidade de ser um pintor histórico, já que não acredita no conhecimento definitivo do passado, nem nos vários modelos de interpretação da História e de suas finalidades. Aliás, sua concepção de que tudo ocorre simultaneamente num único tempo, faz lembrar a teoria de Gödel, hoje acreditada viável, da possibilidade de uma curva no espaço-tempo que implicaria na simultaneidade de todos os tempos.
Observamos nessa exposição no Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM-SP), duas de suas mais enigmáticas obras: Naglfar e Heliogábalo. Tem em comum o chumbo como elemento principal, e com ele foram desenvolvidos os trabalhos em que as referências fotográficas foram adicionadas em processo inverso à maioria de suas telas, em que o chumbo é acessório. Para Kiefer o chumbo tem a mesma importância que o feltro e a gordura tiveram para Joseph Beuys( 1921-1986), sem significado pessoal. Pelas suas características de extrema densidade, de ser o mais pesado dos metais e ao mesmo tempo o mais maleável, intransponível às radiações e suave ao toque, é símbolo da individualidade não corrompível, associada a Saturno que é o deus separador e delimitador dos espaços. Nas duas obras o chumbo assume o papel da água, em “Naglfar” se constituindo num dos quatro elementos, existindo na área superior da obra o fogo e consequentemente o ar, e embaixo, submerso, um navio de guerra, do qual se desprendem fragmentos de unhas. Lembremos que as unhas como os cabelos são virtualmente indestrutíveis pela morte, no primeiro caso associadas à ressurreição, no segundo como sede do espírito. Fica aí a alusão ao Homem como traço de ligação entre os elementos, capaz de transmutação (o chumbo) e passível de renovação. Já em “Heliogábalo”, sob um mar de chumbo, repousa cercado pelo gelo um navio de guerra alemão, talvez o couraçado Tirpitz, afundado em Trömso, nos fiordes da Noruega. A referencia ao nome Heliogábalo ( Elagabalus) , imperador romano que obrigou o culto ao deus cananita Baal, personificado numa pedra negra como exacerbação dos instintos e do monstruoso pelo sacrifício humano, é possivelmente uma metáfora de Kiefer ao mal representado pela apoteose do poder, e grandiosidade do período nazista com o sacrifício inútil de vidas.
A transmutação alquímica pode surgir de forma explicita em xilogravura, como a de Robert Fludd, um de seus mitos pessoais. Robert Fludd (1574-1637) foi médico, filosofo e alquimista, estabelecendo paralelismo entre homem e mundo, ambos como imagens divinas. Deus ao retirar de si mesmo parte de sua luz cria a matéria, o que vai de encontro às tradições cabalistas das Sefirot. Nesta xilo Kiefer se autorrepresenta como Le pendu ( o enforcado), figura do Tarô de um homem suspenso pelos pés, alusão à suprema desonra imposta aos traidores e advertência mística a qualquer ideia a que o homem possa ser mais forte que a natureza,contrariando os desígnios divinos. A inversão do corpo também se refere à posição contrária ao homem na árvore cósmica da Cabala, em que o homem é a décima emanação divina, Malkuth (a matéria), fusão do masculino e do feminino em Deus. O girassol no qual está suspenso é uma planta cujas sementes são símbolo da imortalidade, e que se orienta continuamente em direção à luz (da Criação). Uma das obras mais tranquilas dessa exposição, “A vida das plantas”, também foi criada com sementes de girassol; nela o artista propõe uma paisagem de girassóis, que numa segunda leitura mostra ser um mapa celeste das constelações, identificado por seus nomes. A matéria poética está ali presente, o espaço em que não existe luz é o branco, e a matéria criada, as estrelas, no caso as flores dos girassóis são o negro. Pontilhado pelas sementes de girassol que se constituem na matéria pictórica cria uma analogia entre as plantas e estrelas, as sementes recebendo o fluxo cósmico direto do universo, sementes como matriz de toda a vida.
Na apreensão da obra deve-se constantemente ir além das indicações, refletir nas propostas recorrentes do artista, caso dos “ Caminhos da sabedoria universal”( Batalha de Arminius) construída com xilogravuras representando personagens positivos e negativos da cultura alemã, de Arminius a Bismarck, de Bach a Wagner, de Von Schlieffen a Von Kleist. Desenvolvida de maneira radial, como secção de uma árvore na qual os anéis correspondem à concepção teleológica da História, contrapõe ao centro sua paleta fugindo da ordem cronológica. Adicionem-se a isso os sinais de fogo como elemento de transmutação e teremos sua visão de que a História não se faz pela narração direta dos fatos.
Das reflexões sobre a atuação do homem no meio ambiente impressionam as telas de Kerala na India, como em “A areia de Umen”, da construção e desconstrução de olarias gerando mastabas (túmulos egípcios) em que o barro é a matéria prima da pintura, e em que o homem pode se tornar parte da cinza da queima dos tijolos.
Chegamos assim à serie sobre a cidade de São Paulo, identificada como “Lilith, o Demônio Sedutor”, desenvolvida sobre fotografias, mais uma vez um processo alquímico ligado à geração espontânea ( a criação da imagem a partir do nada). Existe em Lilith a referencia ao inacessível, à hiperlucidez, à energia que deve ser vencida, aos fenômenos opostos de recusa e fascínio. Em “Paisagem árida” a perspectiva é aérea, vertical,o edifício Copan de Niemeyer dominando o cenário, como se o observador estivesse no alto e fosse sugado pelo vórtice da cidade. O nome Lilith aparece como um vestígio dentro da cidade, com a presença de áreas queimadas e cabelos agregados pela sua passagem devastadora. Na área superior surge um elemento metálico suspenso, uma resistência embranquecida pelo calor no centro de uma espiral de giz, marcando no sentido horário a passagem do tempo; na parte inferior da obra o chumbo que flui lentamente. A ambiguidade Lilith-Megalópole está ali plasmada de modo indelével, o acesso à libertação ou à própria destruição, e a expectativa possível de que do caos e das contradições surja o impulso vital pela resistência. Lilith aparece alias em outras obras como Shiva, o Criador e o Destruidor no processo de constante renovação do universo, e nas “Filhas de Lilith”, que de acordo com a tradição talmúdica espalham o mal pelo mundo. Cada obra instaura uma nova percepção de sua visão de mundo, exprime as duvidas sobre os acontecimentos que se esgotam no próprio ato, sobretudo aquele excesso que Merleau-Ponty considera a possibilidade de reflexão.
Acompanhando sua admiração por Nietszche diria que sua força é a da vertigem, do pinheiro (kiefer) à beira do abismo, vinculo entre terra e céu, do mal e do bem, à sombra do qual não pode haver descanso.
Walter de Queiroz Guerreiro
Crítico de Arte (ABCA/AICA)