VICTOR HUGO, NA VANGUARDA
 

A mente mais poderosa do movimento romântico, poeta, dramaturgo e romancista de fôlego, Victor Hugo (1802-1885) continua a nos espantar em segmento pouco conhecido de sua gigantesca produção: as artes visuais. Fora da França e de restrito circulo de admiradores do conjunto de sua obra é pouco conhecida a produção plástica de três mil trabalhos entre desenhos, aquarelas, nanquins e técnicas mistas realizadas num fluxo contínuo durante toda sua vida. Em 1998 o Drawing Center de New York selecionou 100 obras lançando nova luz na produção deste gênio da literatura, mostrando através de inteligente curadoria que, além das fantasiosas imagens de velhas mansões em ruínas, tão adequadas ao gosto romântico de então, e daqueles contrastes violentos de luz e sombra já assinalados por Gautier na “Historia do Romantismo,” existia outro Victor Hugo precursor de movimentos plásticos do século vinte, como o surrealismo e o abstracionismo. Verdadeiramente há unidade psicológica dentro de sua produção apontando a autoria, seja em obras nitidamente figurativas, seja nas abstratas, traduzida em claro-escuro pelo confronto desesperado entre vontade e destino, ponto focal no drama romântico.
Mesmo sob olhar critico suas obras plásticas resistem a analise embora Victor Hugo jamais tivesse estudado pintura, inicialmente seu interesse sendo de caráter documental. Na aguada de nanquim ou no desenho a bico-de-pena seu intuito era de fixar mentalmente uma visão que lhe transmitira uma sequencia de impressões como anotações a serem desenvolvidas: um velho muro parcialmente em ruínas, uma arvore mais seca, o precário equilíbrio de um castelo em decadência, tudo registrado, entretanto sob luz enfática, expressionista como seu contemporâneo Goya. Com espantosa habilidade para um escritor e artista amador Victor Hugo complementaria suas obras executando molduras em madeira de abeto, madeira clara que ele caprichosamente entalhava, estendendo o motivo além do espaço pictórico. Antecedeu dessa maneira uma tendência do movimento simbolista de Gustav Klimt ( 1862-1918); do Art Nouveau nos trabalhos de Max Klinger ( 1857-1920) e de Charles Mackintosh( 1868-1928); e, contemporaneamente, nos últimos trabalhos norte americanos, em que a moldura é parte integrante no conceito da obra.
Victor Hugo entre 1851 e 1870 sofreu exílio político por ter combatido a monarquia e a ascensão de Napoleão 3º, e sentindo as limitações de uma poesia engajada desenvolve a parte mais criativa de sua extensa obra literária: a poesia pura de Les contemplations, na qual obcecado pelo sobrenatural cria o termo surréel ( surreal), para identificar uma visão única de poesia pura no confronto entre bem e mal, luz e sombra, no seu entendimento o fundamento metafísico da existência. No momento histórico em que o positivismo de Auguste Comte abalava os alicerces da religião Victor Hugo desponta como o profeta do mundo moderno acreditando no progresso infinito do homem, fruto da união final entre ciência e consciência moral. O maniqueísmo luz-trevas de sua mitologia pessoal transparece na obra plástica claramente nas paisagens de Guernsey, e de maneira oculta nas abstrações. E é nos trabalhos dessa fase que Victor Hugo nos espanta criando imagens do inconsciente que não tem nenhuma mensagem pré-formada fluindo espontaneamente através do papel. Usando pincel, esponja, às vezes a extremidade dos dedos permitindo que a tinta escorra, crie caminhos. Aí dobra a folha, duplica o percurso, cria manchas de Rorscharch. O que poderia ser mera obra do acaso vai além, uma vez que nos fortes contrastes formais existe tensão entre as áreas interligando a totalidade. O espaço do papel não delimita o espaço pictórico, existe interpretação da obra em desenvolvimento, sensação de continuidade pressupondo movimento, estendendo-se além daquele visível, quiçá fazendo parte de universo maior. Essa possibilidade coloca o espectador em um instante congelado do tempo, algo que Jacson Pollock (1912-1956) iria desenvolver no seu automatismo expressionista. A ideia de utilizar manchas como inspiração vem de longe, de Leonardo da Vinci, que aconselhava aos pintores buscar nas manchas de paredes similitudes com o mundo real. Victor Hugo se reporta a essa ideia criando fantasias góticas – como ele diz de “horas e horas quase inconsciente, sonhando com os olhos abertos” - mas foi além, liberou a imaginação para a criação eminentemente plástica. Comparando uma abstração de 1850 com trabalhos da década de 1930 de Hans Hartung, um dos grandes artistas abstratos alemães e criador da denominada pintura psicográfica, encontramos inúmeros pontos em comum: a tensão entre os traços, os sinais de expressão do próprio ego, a composição dominada pelo ritmo. Nos dois artistas existe a liberdade, uma concessão voluntária ao processo pictórico e à consciência de que os materiais empregados têm natureza própria, uma postura absolutamente moderna que integra o ideário surrealista. Surrealista apenas para citar uma obra de Victor Hugo é a imagem de gigantesco cogumelo dominando paisagem devastada, entrevendo-se na linha de horizonte o perfil de uma cidade. Seria essa uma visão profética, que de imediato nos remete a uma explosão atômica, ou apenas um símbolo fálico, coluna ereta inconsciente-consciente de uma vida sexual intensa, uma vez que além de sua amante Juliette Drouet chegou a manter encontros diários com quarenta mulheres diferentes em curto espaço de tempo? As viagens surreais do artista não cessam jamais de despertar associações. Seus componentes geram novas associações, num processo que duplica suas imagens literárias, oscilando entre luz e sombra como no poema: “ e via-se até o fundo,quando o olhar ousava aí descer, além da vida, do sopro e do som, um espantoso sol negro onde resplandecia a noite”.
No conjunto vemos que sua obra plástica aparece sob três vertentes: uma documental, com caráter de registro visual de emoções poéticas; outra surreal em que as impressões são reelaborações mentais de um mundo gótico; e a terceira, talvez a mais importante, pela sintonia com a visão contemporânea da arte, na qual o poder de criar a imagem flui diretamente pela libertação do acaso, longe do caráter literário nas citações. Existe o acaso sim, mas além do acaso ocorre a percepção plástica, o recorte espacial, a visão do todo, o modelo eidético subjacente à forma. Pegar um retângulo de papel e construir uma parábola invertida em tinta negra, rebaixar uma área proporcional em cinza dentro do negro, marcar com a ponta dos dedos impressões digitais na curva destruindo a estabilidade da forma e gerando dessa maneira nova condição de expansão do espaço é ir além do acaso: é criar uma nova estrutura formal dinâmica.
Do mesmo modo que seu herói romântico “Hernani ou a honra castelhana”, peça em cinco atos, Victor Hugo desafia as convenções também nas artes plásticas, reaparecendo na contemporaneidade como titã rebelde em demonstração de versatilidade de seu gênio, afirmando mais uma vez estar na vanguarda.
Walter de Queiroz Guerreiro
Historiador e Critico de Arte(ABCA/AICA)