Sobre a Amizade

Que força seria essa a unir dois seres? Independente de qualquer outro fator, raça, cultura, sexo, idade.

Há quem questione o aspecto sexo e a idade. Em um dos contos do livro “Dublinenses”, James Joyce coloca como ponto central de sua história exatamente o fato de que homem e mulher não poderiam ser simplesmente amigos, pois a evolução desse contato seria exatamente o encaminhar para o encontro sexual. Em outras palavras, “se vamos ser amigos, não podemos fazer sexo, mas se não fizermos sexo, não continuaremos a ser amigos”.

Esse conflito, capaz de gerar um conto maravilhoso, pode não ser, exatamente, verdadeiro. Um homem e uma mulher podem, de fato, desenvolver uma bela amizade, se introduzirmos o outro fator, a idade. Assim, pessoas maduras podem desenvolver amizade por pessoas novas de outro sexo. Ainda assim essa afinidade vem realçada por forte atração sexual, quase sempre irrealizável.

O mesmo autor, James Joyce, recoloca o tema amizade, no seu imortal romance Ulisses, que teria sido inspirado em sua amizade com um italiano, Ítalo Svevo, homem bem mais velho do que Joyce, que o conheceu quando se auto-exilou de sua Irlanda natal, em Trieste, norte da Itália, cidade disputada com o império austríaco, na época. Podemos imaginar o jovem Joyce numa terra estranha passando por privações materiais sendo ajudado por Svevo, que era um comerciante judeu, também um milenar exilado, um estranho em meio a estranhos, numa cidade em disputa, onde se falava tanto o italiano quanto o alemão. A amizade, essa misteriosa força de solidariedade os uniu de forma poderosa. Consta que Svevo serviu de modelo para o personagem central de Ulisses, Leopold Bloom, um judeu isolado na Irlanda, símbolo de Ulisses em busca do retorno ao lar, e Joyce, representado pelo personagem Stephen Dedalus era Telêmaco, o filho de Ulisses. No romance, Ulisses e Telêmaco percorrem, cada um por seu lado, a cidade, Dublin, vivenciando os seus conflitos, Ulisses-Leopold Bloom, com a miséria de ter perdido o filho, a suspeita da traição da mulher, Penélope-Molly, Telêmaco-Stephen, com o emprego perdido, sem lugar para dormir. O encontro de Ulisses e Telêmaco num prostíbulo, no meio da noite, desperta imediatamente a amizade. Ulisses leva Telêmaco para casa. O romance termina com um longo monólogo de Molly-Penélope. Na manhã seguinte ela deverá servir o café para Leopold...

Assim, a amizade de Joyce com Svevo, assumiu aos olhos do primeiro um significado quase paternal. Joyce devia sentir-se protegido. E, na relação de amizade, a reciprocidade não é imediata, o retorno seguro em termos de afeto ocorre independente do tempo. Joyce encoraja Svevo a escrever. E ele era um grande escritor. O seu romance “A consciência de Zeno” merece ser lido.

A amizade, enfim, é a relação especial que se estabelece entre dois indivíduos, mobilizada pela afinidade inexplicável, onde prevalece o interesse “desinteressado”, a extrema solidariedade pela resolução de conflitos pessoais que se manifesta, antes de tudo, pela capacidade de ouvir e de entender. De resto, há, também, a motivação de que se fale, pois só se pode ouvir se o outro falar, abrir o seu coração sem obstáculos ou censuras. E, na relação, a retribuição não é imediata, mas é certa, a reciprocidade não é medida por valores materiais, mas sentimentais, cumprindo-se a lei da frutificação natural: para cada grão lançado a terra (amiga), esta devolverá mil grãos renascidos. Não há necessidade de contá-los.