ZEN NA PINTURA

Na arte existem mitos construídos pela repetição de “verdades indiscutíveis”, fruto da palavra dos próprios artistas, da interpretação jornalísticas nas entrevistas, e de frases de efeito cunhadas pela crítica especializada. Dependendo da importância da obra e do respeito devido ao artista pelo seu destaque na sociedade essas verdades jamais são repensadas, consolidando-se com o passar do tempo, e formando a base de um falso conhecimento.
Tudo isso me veio à lembrança, entre tantos outros casos, ao ler as resenhas publicadas após a morte de um dos maiores nomes da arte abstrata nacional que tive a satisfação de conhecer, Manabu Mabe (1924-1997). Pela sua origem japonesa, principalmente por uma de suas fases, a caligráfica, e por estar intimamente ligado às tradições da colônia no Brasil, a mídia além de designá-lo como “o samurai dos pinceis”, estabeleceu que sua arte tivesse raízes na tradição zen budista. O próprio artista alimentou essa crença por seu apego à natureza e a cerimoniais que fazem parte da tradição cavalheiresca Zen, neste caso na cerimônia do chá (cha-no- yu) e na meditação em seu fantástico jardim japonês. Esses dois elementos rituais tem forte apelos estéticos, e incorporados à vida diária teriam introduzido o pensamento zen na obra do artista, com claros reflexos na forma. Tanto um como outro são modos de exercício mental para desprender a mente do supérfluo, e intuir a resposta ao que não pode ser indagado. A cerimônia do chá é uma forma de ação dirigida ao exterior, que produz paz ao individuo que a executa, sem confronto com nada, constituindo-se na maneira de superar todos os obstáculos ou se libertar deles – através da naturalidade na execução e na simplicidade extrema haveria o encontro com o Tao (o caminho interior). O jardim japonês, por outro lado, é uma forma extremamente sutil de arquitetura paisagística, contrapõe elementos da natureza, rochas e água, musgo e pinheiros, areia e as nuvens no céu, em que a assimetria exerce papel fundamental lado a lado com as texturas, sinalizando caminhos opostos na natureza e indicando que a solução de um problema só se alcança pela intuição. A meditação no jardim surtiria efeito oposto à do chá – neste espaço buscar-se-ia a natureza intrínseca do Koan (exercício para a intuição, para o qual não existe resposta certa).
Seria a obra de Mabe realmente fruto do Zen? Até onde posso intuir, não. Se alguns quadros da década de 60 parecem se enquadrar no pensamento Zen, a maior parte de sua produção dos anos 70 até sua morte contraria radicalmente esse princípio. Aliás, até 1957 Mabe era um pintor figurativo, quando decide reduzir figuras e paisagens a linhas e cores,retirando as referências imediatas das formas. Em suas próprias palavras abole os traços suaves e as cores líricas, escolhe vermelho, branco e ocre para o fundo, e preto para expressar os sentimentos. Inclina-se para a caligrafia, base da cultura no Oriente, que em particular na escrita ideográfica chinesa e japonesa é a transformação da natureza em símbolos, com a simplificação extrema das ideias gerando a abstração, e pela redução criando os caracteres.
Em sua expressão caligráfica há uma hesitação do pincel, um titubear na mão totalmente oposta ao espírito do Zen. Se para nós a referência ao ideograma é clara, para o oriental revela incerteza, interrupção do gesto, como se o artista não houvesse alcançado a espiritualidade necessária. Convém frisar que não vai uma crítica, que o que ocorre não impeça de que haja uma beleza intrínseca em suas obras dessa fase, alcançando pontos altos como em “O grito” datada de 1958, onde sobre fundo vermelho se destacam linhas negras em ritmo staccato. A vibração sonora atravessa o espaço, não existe a palavra, e para o oriental nem o ideograma, sentindo-se, no entanto a força contida nas linhas, que interrompidas geram energia. Como o crítico Mario Pedrosa observou em 1961 seu traço não é autônomo, não tem movimento próprio nem direção por que lhe falta a construção própria do ideograma, que não pode ser lido sendo arremedo da forma sem o conteúdo desta.
A partir dessa data sua obra irá adquirir a estrutura pela qual se tornará famoso dentro da corrente do expressionismo abstrato: surgem manchas praticamente recortadas sobre o fundo da tela, fundo esse liso à primeira vista, entretanto rico, pleno de sonoridades, construído em sucessivas camadas de grande transparência cuja soma cria vibração única na cor. Essa técnica da mancha sobre fundo liso, que nada tem a ver com o tachismo francês em que o artista lança a tinta diretamente sobre a tela, e que no recorte se assemelharia à dialética entre a forma e o à-plat (recorte em cor pura sobre fundo chapado), empregado por Hans Hartung e Pierre Soulages, é a tentativa de equilibrar dissonâncias na ação recíproca entre figura e fundo.
Vejamos, dentro da tradição Zen, o pintor japonês Sesshû (em 1460) desenvolveu a técnica chamada Haboku ou das manchas de tinta, na qual propunha valores abstratos que são sugestões de forma, a pincelada solta como em Soulages, 600 anos antes deste. As formas abertas nas manchas induzem o observador a participar na criação, alcançando-se a iluminação interior através da projeção da própria visão. Comparando-se a concepção da mancha de como um artista Zen do quilate de Sesshû com a forma criada por Mabe nota-se a diferença de conceitos. A pintura de Mabe é totalmente matérica,alimentada pelas ressonâncias luminosas do entorno, é rica em empaste, trabalhada de maneira tátil, tão elaborada que se percebe não haver ali espontaneidade, mas ainda assim, pintura de sutileza e profundidade. Tudo ali é procurado, não existe o acaso, e quando existente causando espanto ao próprio artista. É o caso que relata, quando ao executar uma obra a tinta escorre, e descobre ter-se acrescentado uma nova dimensão, pela retenção do movimento. A repetição do acaso será introduzida em seu repertório plástico, e este, como outros maneirismos criarão crítica negativa pela repetição de um modelo.
A filosofia Zen, que busca o uno no todo, se expressa na pintura através do Zengá, o caminho para mobilização do espírito. A pintura daria respostas que não são encontradas pela palavra, e a apreciação pictórica conduziria vida à intuição. A base dessa pintura como arte é de que a natureza é perfeita e não tem finalidade, ao homem cabendo possibilidade de se autoaperfeiçoar. Ao fazer algo nunca pretenderá atingir um objetivo, cada etapa terá um início e um fim, e a obra uma vez expressa é perfeita. Os matizes na pintura são nossas emoções, o claro-escuro formado pela luz de nossas alegrias e pela sombra de nossas tristezas. A pintura consistirá em penetrar diretamente no objeto e vê-lo desde o seu interior. Pintar o Outono é ser o Outono, as obras de arte movendo-se no mesmo plano das coisas que expressam. E mais: a obra será inseparável de quem esteja em sua presença, quanto mais forte a corrente de alma a alma, maior a vibração estética. A técnica Zen por excelência é o Sumi-ê, em que pintar é como estar dentro de um turbilhão, o artista transferindo para o suporte sua inspiração enquanto está viva, não existindo esquemas preparatórios, a insinuação mais que a forma, sem hesitação, uma vez que a centelha da criação não pode der alterada. Não existe diferença entre ser e agir. Quando o artista toma o pincel cria a partir do inconsciente, sua obra é cópia do nada, existe por si mesma, ela é.
Voltemos ao que nos levou a pensar no Zen, a Manabu Mabe e à questão de sua pintura, embora esta retenha o gesto, percebendo-se o impulso vital que impunha o pincel, ocorre também um trabalhar e retrabalhar a matéria, que contraria o espírito Zen. Na década de 70 as manchas se transformam em insinuações de figura, delineiam-se situações sugerindo volumes e remetendo diretamente ao concreto; trata-se de um neofigurativismo expressionista que relembra os testes de Rorschach – olha-se a mancha, intui-se a forma e o título da obra confirma a suposição. Finalmente, nas décadas de 80 e 90 aparecem traços emaranhados, grafismos e composições semelhantes a estruturas minerais ou metálicas vistas ao microscópio, tudo distante do Zen.
Por mais que queira explicar não conseguiria aceitar a pintura de Mabe dentro da tradição Zen, contudo lembro que a arte Zen é individual, pessoal e não pode ser discutida. Atinge-se o Zen quando se alcança o Satóri, a iluminação. Esse é o estado da pré-consciência, de natureza intuitiva e que não pode ser descrito – aquele que o conhece não fala, o que fala não o conhece. Seria pretensão discutir se Mabe alcançou ou não o Satóri a cada instante de sua vasta produção, apenas me parece muito distante da tradição Zen. Indiscutível, porém é sua contribuição à pintura como alguém que teve a coragem de ousar, de ir além das cores suaves, de iluminar, excitar e sonhar unindo-se à Natureza.
Walter de Queiroz Guerreiro, Prof. M.A.
Critico de Arte (ABCA/AICA)
Walter de Queiroz Guerreiro
Enviado por Walter de Queiroz Guerreiro em 14/04/2012
Reeditado em 14/04/2012
Código do texto: T3611812
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