Salvador, uma visão histórico-social da Cidade da Bahia.

Salvador, uma visão histórico-social da Cidade da Bahia.

Jorge Linhaça

Salvador é inegavelmente uma cidade que tem história, sua vasta arquitetura remonta ao Brasil Colônia em suas mais variadas fases. O que resta do antigo casario, nos faz viajar no tempo como se em alguns momentos visitássemos a Lisboa antiga com suas ruas demasiadamente estreitas para a vida urbana atual.

Que Salvador tem suas pérolas arquitetônicas não há como contestar, no entanto, a cidade sofre de um paradoxo terrível:

Espreme-se entre o excesso de zelo das entidades de preservação de sítios históricos que insiste em tombar o que hoje não passam de ruínas e ao mesmo tempo deixa degradar-se o que ainda pode ter condições de restauração.

Claro que para o soteropolitano resta o orgulho duvidoso de ter sido a primeira capital do Brasil. Não que haja dúvidas em relação ao fato histórico, mas sim quanto ao que isto fez por Salvador.

Sociologicamente observando o comportamento do povo soteropolitano, é impossível não perceber o ranço acumulado desde os áureos tempos de capital colonial.

Pouco ou nada mudou no comportamento dos habitantes nativos desta antiga Cidade da Bahia.

O tempo passou, a tecnologia chegou, veio o progresso em vários sentidos, mas a mentalidade continua a de uma província medieval.

Talvez agora entenda as loucas indumentárias de Jaime Figura.

A sua genialidade disfarçada de loucura está além da percepção dos que não atentam à atmosfera bucólica da cidade de Salvador. Ele, como um Don Quixote soteropolitano, reveste-se de suas armaduras medievais estilizadas, como que a mostrar a verdadeira face da cidade.

Não se pode dizer que Salvador seja uma cidade esquecida do tempo, perdida em alguma realidade alternativa, mas a mentalidade do povo soteropolitano pouco evoluiu ao longo dos séculos. Mudou-se o linguajar, as vestimentas, os meios de locomoção, mas a mentalidade permanece congelada no medievalismo ou na melhor das hipóteses no início do século XX.

Apesar das conceituadas instituições de ensino que hoje se instalam em Salvador; apesar da boa formação acadêmica de alguns, permanece ativo e recorrente o sentimento de castas sociais na Capital baiana.

Alguns dizem que Salvador é a cidade mais negra do Brasil, não sei até que ponto isto é verdade, mas, que a população é predominantemente negra é facilmente perceptível sem nenhum esforço. Até por isso uma infinidade de movimentos culturais e sociais busca encontrar, reencontrar e amalgamar ritos, culinária e expressões culturais da mãe África.

É quase impossível fazer com que tomem consciência de que, apesar de muitas similaridades com ritos e cultura africana, inclusive a tentativa de manter as línguas mães nos terreiros de candomblé, existem diferenças bastante perceptíveis entre cultos e linguajares. Claro que para os leigos isso passa imperceptível.

Baiano não é africano embora seus ancestrais o fossem.

Isso não é nenhum demérito para os praticantes de tais cultos, mas as línguas são dinâmicas e sujeitas a modificações fonéticas ao longo dos anos.

Basta vermos a velocidade com que novas palavras e expressões são incorporadas à nossa linguagem atual e detém significados, às vezes antagônicos de região para região de nosso país.

Chamar uma moça de rapariga no nordeste é uma ofensa, anos atrás chamar uma moça de “mina” no Paraná tinha o mesmo sentido de ofensa, enquanto em São Paulo as duas linguagens são naturais.

Da mesma maneira é absolutamente natural um lusitano de referir a um meninote como puto, já aqui a conotação é demeritória e ligada à sexualidade.

Voltando ao nosso fio condutor, os contrastes soteropolitanos são por demais explícitos para serem ignorado.

Durante esta minha estada na capital baiana tenho percebido ser extremamente raro um negro em uma posição de destaque profissional. Claro que devem haver advogados negros, professores, profissionais da saúde, funcionários públicos em cargos intermediários , etc. No entanto, a impressão mais marcante é a de que quase não existem brancos no trabalho braçal ou subempregos.

Não seria o caso de se levantar a bandeira do tal racismo, da desigualdade de oportunidades, não há quem consiga me convencer desse tipo de coisa, ao menos na dimensão que tanto se insiste em alardear em nosso país.

O que me parece acontecer em salvador é apenas uma perpetuação de hábitos adquiridos geração após geração.

Criou-se em nossa cultura nacional e parece que aqui isso se percebe de uma maneira mais cruel, digamos assim, é que o negro só consegue algum destaque enveredando pelo lado das artes ou dos esportes. Aqueles que ainda não o conseguiram acabam passando a vida empurrando carrinhos de mão, levando as compras dos supermercados até a casa dos clientes, ou vendendo frutas e outras coisas pelas calçadas ou de porta em porta.

Claro que há aqueles que trabalham com carteira assinada, principalmente no comércio, mas nesse caso impera a política do:

“O patrão finge que me paga e eu finjo que trabalho”.

A morosidade dos funcionários, sejam eles públicos ou privados, é tamanha que causa desespero a quem não é daqui.

Quando, raramente me defronto com algum trabalhador que quebra esse paradigma e trabalha com vontade e sem lentidão, logo descubro que ele não é soteropolitano, veio de alguma cidade do interior ou de outro estado, ou, na improvável hipótese de ser filho da terra, morou por anos longe daqui.

Não é que o soteropolitano seja preguiçoso por pura sacanagem, ele é lento por cultura. Aqui ninguém parece ter pressa e, se ninguém tem pressa para que agilizar o atendimento?

O soteropolitano é, por natureza, acomodado, a cidade está um caos de tantos buracos, de tanta falta de hospitais públicos equipados, de falta de política pública em todas as áreas, mas o soteropolitano insiste em deixar pra lá, esperando que alguém faça por eles.

Talvez isso seja um resquício da época da escravidão e do subsequente coronelismo que sempre dominou a Bahia como um todo.

Talvez ainda resida na mente da população soteropolitana o resquício do medo do tronco, do pelourinho, dos capitães do mato travestidos de policiais e dos jagunços dos coronéis que matavam e despareciam com os corpos dos desafetos políticos.

Talvez algum historiador soteropolitano, formado nas faculdades daqui, conhecedor da história e da formação étnica e das relações sociais do povo soteropolitano possa esmiuçar muito mais e com mais propriedade as coisas que hora escrevo, eu, no entanto escrevo baseado na minha observação do cotidiano desta cidade onde as pessoas ainda não perceberam que carros não são cavalos para serem estacionados, ou melhor, largados de qualquer maneira no meio fio sem se incomodarem se isso causa ou não transtorno aos demais; que tem como prática comum o uso do que aqui chama de “dar um terço” , jogando a frente de seu veículo sobre o nosso forçando a passagem como se apenas eles tivessem necessidade de chegar a algum lugar.

Aqui em Salvador ainda não se descobriu para que servem aquelas luzinhas enfileiradas e penduradas nos postes com as cores verde, amarelo, e vermelho.

Tanto faz a cor da luz e eles passam assim mesmo nos cruzamentos.

Nesta cidade não existe fiscalização no trânsito, jamais vi um fiscal sequer aplicando uma multa, tudo bem medieval, como se os veículos aqui ainda fossem de tração animal e não houvesse necessidade de habilitação, quanto mais de respeitar as leis de trânsito.

A impressão que tenho é que o Detran daqui reúne uma multidão no pátio e joga as carteiras de habilitação para o alto e quem pegar uma já pode sair colocando os outros em risco.

Coisas que eram aceitáveis séculos atrás, quando não haviam carros, como as pessoas se apossarem das ruas e calçadas para “esticarem” seus pontos comerciais, hoje continuam a todo vapor aqui em salvador.

Os donos de estabelecimentos, principalmente bares e assemelhados, insistem em acreditar que a rua faz parte de seu negócio, espalhando mesas nas calçadas e no leito carroçável para atrair mais clientes.

Sendo assim, o pouco que sobra das ruas é disputado por carros e pedestres, pondo vidas em risco e causando transtornos apenas para aumentar o lucro de uns poucos espertinhos que contam com a conivência de um governo inepto e desvinculado da realidade do que hoje tornou-se uma cidade.

Quanto ao transporte público, especificamente os ônibus, são conduzidos por motoristas e cobradores despreparados para lidar com o público, ofendendo-o e algumas vezes parando o coletivo para que passageiros desçam, persigam pessoas e depois voltem ao ônibus.

Não bastasse isso, os “Buzus” de Salvador, são verdadeiras jaulas entre a porta de embarque e a catraca.

Quem passa por ali tem a sensação de ser parte de uma boiada que tem de passar por um brete, cercada de todos os lados por grades, coisa impensável em uma cidade civilizada.

Quem pretender sentar nos últimos bancos ( aqui o embarque é pela porta traseira) não pode ter barriga ou estar acima do peso, pois é impossível, após passar pela roleta, dirigir-se até aquele local, num verdadeiro descaso com a população.

Mas é essa mesma população que tem a atitude de gado, a mesma atitude de escravos guiados para a senzala, calando-se diante de tantas afrontas à sua dignidade.

Basta distribuir cerveja e música ruim, que o soteropolitano esquece todos os problemas, todas as angústias, todas as aviltações a que se sujeita dia após dia.

Logo Salvador que outrora foi palco de tantas lutas pela liberdade e que hoje se esconde do mundo e das lutas sociais no fundo de um copo de cerveja.

Existem soteropolitanos descontentes com tal estado de coisas? Claro que sim, mas estão ocupados demais se reunindo para discutir e reclamar para partirem para uma ação concreta.

O discurso predominante é o de que não adianta fazer nada, que isso só vai mudar nas próximas gerações. Esquecem-se de que a inação é o terreno fértil para a proliferação e reprodução contumaz do atual estado de coisas.

Provei nos últimos dias, que tal discurso é equivocado.

Havia uma cratera intransitável na esquina de minha rua, meti a boca via internet, desafiei o prefeito a vir aqui tapar o buraco comigo, ele obviamente não apareceu e a providência foi zero.

Não me dei por vencido, sendo a rua de paralelepípedos e tendo sido estes retirados havia quase dois meses e o buraco resultante, permanecido ali, causando transtornos a todos que precisavam utilizar aquela via de acesso, me armei de meu martelo e uma chave de fendas e lá fui eu recolocar os paralelepípedos no lugar. Claro que isso chamou a atenção de algumas pessoas e um dos moradores ficou o tempo todo observando meu trabalho e falando ao celular sei lá com quem.

Um dos entregadores de gás que infestam esta área, passando por mim de carro falou:

- Deixa disso, isso é serviço da prefeitura...

Continuei meu trabalho de recolocação das pedras e parei depois de haver recolocado 13 delas e voltei para casa, imaginando retomar o serviço em outra ocasião.

No dia seguinte apareceram funcionários da prefeitura e descarregaram uma mistura de areia e pedrisco na esquina.

No dia seguinte voltaram e iniciaram obra de onde eu havia parado, eram uns oito funcionários mais ou menos e três dias depois o problema estava resolvido.

Coincidência? Duvido, existem coisas que só se resolvem se começarmos a agir.

É exatamente o que falta ao povo soteropolitano, a ação; a vontade de resolver.

Afinal é sempre melhor esperar que a solução venha do céu.

Torço para que Salvador vire uma cidade um dia e para que os soteropolitanos recuperem a sua hombridade e autoestima, antes que acabem retrocedendo até a bestialidade.

Salvador, 28 de abril de 2012.