Medicina da Fé

A Medicina se tornou uma das categorias científicas mais exploradas na contemporaneidade, devido ao seu alto potencial econômico. Devemos pensar que a importância das ciências da saúde, como de tantas outras no chamado movimento cientificista, emergiram no final do século XIX. Algo recente, embora busquem esse tradicionalismo desde Hipócrates. Mas falar da fabricação dessa tradição, não é o tema desse ensaio, deixemos as célebres palavras do historiador Eric Hobsbawm explorar esse assunto, com a chamada “invenção da tradição.”

Percebemos o quanto essa sociedade em que vivemos, nos torna doentes, já que o ideal de saúde só pode existir tendo como parâmetro o doente. Não é o são que nasce, fazendo com que se identifique a falta dele no doente. Mas criando a doença, dizemos que existe algo que possa contornar esse “malefício” e damos a ele o nome de saúde. Só bradamos o desejo de saúde porque somos doentes inveterados, ou seja, inventados. Nietzsche classificou de forma genuína, o engodo de doente, anormal e outras formas de criar regras que desejam criar um padrão, transformar em uma série, uma produção humanóide.

Dessa forma, somos bombardeados por um marketing opressivo, que nos diz onde habitar, o que consumir. Bebemos isso, comemos aquilo, usamos aquele aparelho. Tudo para depois adoecermos e mais uma vez estarmos diante de outro consumo, o de remédios. A prevenção é muito mais eficaz e sem custos na maioria dos casos, mas os laboratórios, com seus acadêmicos prontos para se tornarem cientistas manipuláveis, irão vender a saúde, que custa caro, é claro. A triagem ocorre de forma brutal, eliminando os que não possuem o poder capital para a permuta medicamentosa.

Mas os médicos reclamam. Os pacientes possuem sua responsabilidade, a própria discussão do filósofo Karl Jaspers alimenta o debate. Pois, o paciente espera, passivo pelo milagre da cura, desejando o remédio sem esforço, que o médico o salve. Se abstém de ser responsável, não segue dietas, não faz exercícios. Seu esforço consiste em pagar os serviços e ir se consultar, para que a mágica ocorra dentro da alquimia clínica. É um drama que envolve o conhecimento técnico, que o paciente não possui, se resignando a seguir as prescrições.

Com o honorável filósofo Michel Foucault, assim como as pesquisas do também filósofo Gilles Deleuze, foi possível identificar um processo de transição. Foucault identifica desde a chamada Grécia “Antiga”, o denominado “cuidado de si”, exposto em sua magnífica obra “A História da Sexualidade”, tema que é descrito em inúmeros outros trabalhos que lhe servem de parâmetro. Ocorre também a identificação da relação entre o psicanalista — já pensando em uma ligação com os trabalhos deleuzianos e do também filósofo Félix Guattari — e o padre, a troca do confessionário pelos divãs.

Justamente nesse ponto que podemos identificar a Medicina contemporânea, que não deseja estar atrelada a esse misticismo, como legado iluminista repudiando a “idade das trevas”. Só que quando as Ciências Médicas, adentram o campo místico, trazendo para si a responsabilidade em relação ao bem estar humano, trazem junto todo esse postulado da fé. Agora é o médico que assume a figura patriarcal, que já foi do rei, assim como do padre, com sua conduta de paternalista de tutelar, dizer o que é certo e o que é errado. Não se rezam mais missas, mas fazem receitas com a mesma eficácia. As pessoas em vez de irem aos confessionários, dirigem-se aos consultórios, em busca de seu milagre, aquele prometido, o da saúde. Agora não é mais a língua dos anjos, nem mesmo a Qabalah, ou mesmo o latim, mas o conhecimento técnico, que se faz divisor entre os que detêm ou não o conhecimento do suposto “bem”.

Assim, temos uma Medicina que não é tão distante do discurso que hoje tanto se critica nessa área. As batinas foram trocadas por jalecos, mas continuam dando aquela aura de mistério, decidindo sobre a vida e a morte, cobrando dízimos ou tarifas de saúde, operando milagres, fazendo surgirem santos e fornecendo diabos os fiéis. Os Templos Hospitais estão transbordando de súplicas, todos em busca da salvação, sem exigir de si a responsabilidade, criando um deus para agir por eles ou fazendo do médico um instrumento de desculpa. Nesse mundo de fé clínica só mesmo os esquizofrênicos para fugirem dessa Enferma Prisão, como os possuídos que transcendiam a Inquisição.