O CIRCO E O TEATRO

01 – INTRODUÇÃO.

Uma das maiores maravilhas da ciência do direito está no simples fato de não ser ela uma ciência exata, cuja precisão pode ser mensurada aos extremos da impossibilidade de qualquer arguição em sentido contrário. A dúvida instalada no seio da ciência do direito é o sal, o tempero que a torna tão especial tanto aos olhos de quem por ela se apaixona como também por todo aquele que um dia dela deverão se valer para salvaguardarem uma lesão ou ameaça de lesão ao seu direito líquido e certo. Sempre que olhamos por este prisma tomamos para nós uma nova perspectiva desta ciência, concluindo que sempre existe um ponto de vista pelo qual aquele questionamento não foi considerado e cujas repercussões podem mudar de forma absolutamente radical as conclusões e a finalização de um processo ou de uma decisão pendente de apreciação.

Certa ocasião, uma amiga minha disse-me que entendia que o direito passava por mudanças radicais e perigosas nos últimos anos: saindo de uma fase teatral na direção de uma fase circense. Não se assustem, por favor. Eu explico tal assertiva que à primeira vista pode parecer maldosa: a ciência do direito estava evoluindo, e neste processo de evolução perdia um certo ar de ritualidade (teatralidade como podemos observar no tribunal do juri), e, neste sentido, caminhava na direção de uma modernização que, em um primeiro instante, poderia parecer com a desordem que se instala no picadeiro de um circo durante a sua apresentação.

Esta alegação, que poderia muito bem ser tomada de uma abordagem ofensiva por mentes incautas ou despreparadas, pode conter em seu âmago muito mais consistência e coerência do que se imagina, inclusive se tivermos em mente que a ritualidade contida na ciência processual vem sendo alvo constante de embates arraigados entre juristas cujo objetivo primordial é o de minimizar as possibilidades de amplo acesso à defesa, direito ao contraditório e presunção de inocência. Isto apenas para se falar em temas recentíssimos que tem sido constantemente alvejados por críticas contumazes e inserções de ordem implementadas pelo apelo social que clama por mais agilidade, mais celeridade e menos efetividade.

Melhor explicando mais uma vez: a lentidão do judiciário e os pífios resultados de ordem prática tem causado junto ao meio social um enorme grau de insatisfação, trazendo a lume o ranço contido nesta “ritualidade” que por tantos anos foi pacientemente cultivada por pensadores e operadores do direito que, ante o caso concreto busca na interpretação da lei uma lacuna passível de dúvida razoável que possa colocar em cheque as evidências contrárias à sua tese, promovendo uma reversão de julgamento ou ainda de formação do convencimento do magistrado ou do juri popular convocado a exercer sua obrigação para com a justiça.

Resumidamente, podemos afirmar sem medo que “a bola da vez” é o judiciário nacional e por via direta a própria validação da ciência do direito do ponto de vista de uma ciência social, inexata, porém em cuja inexatidão reside a sua maior e mais significativa preciosidade não apenas na órbita acadêmica como também na esfera de resultados práticos que pode apresentar ao longo deste processo evolutivo. Estamos em meio à um furação de proporções imensuráveis e cujos reflexos ainda serão sentidos por toda a sociedade.

Assim é que o teatro está, lentamente, sendo substituído pelo circo, na medida em que certos institutos tidos como pedras de toque da ciência do direito, bem como outras tomadas como elementos fundamentais para que o processo e o procedimento pudessem se tornar a grande expressão da prática forense (assim como também algumas formalidades tidas como necessárias) estão perdendo seu lugar e, consequentemente, sua razão de ser.

Aliás, é o que pretendemos demonstrar ao longo deste pequenos opúsculo, abordando os diversos temas que consideramos relevantes para demonstrar que a afirmação acima feita por nossa amiga não está tão longe da realidade como possa parecer, ao mesmo tempo que este “rito de passagem” do estágio do teatro para o do circo, não possui – de modo algum – uma conotação irônica ou ainda sarcástica, posto que o que se pretende não é uma crítica ácida e sem conteúdo, visando apenas achincalhar a instituição e o dogma do Direito, até mesmo porque, os rumos tomados pela prática forense atual nos parece muito mais criticável e, porque não dizer deplorável, do que um simples texto de caráter ensaísta e cuja perspectiva visa muito mais uma abordagem de caráter acadêmico do que político, e uma finalidade muito mais estimulativa do que conspícua.

02 – UM POUCO DE TEATRO.

Ao consultar-se o blog “DIREITO OU ENDIRETA”, extraímos o seguinte excerto, no mínimo, curioso:

“Num processo de divórcio, litigioso, ou não, costumo dizer que existem sempre três histórias, a dele, a dela e a história verídica.

Esta (a história verídica) é um cocktail das outras, mais um ingrediente desconhecido.

A justiça é um valor abstracto e faz parte do nosso imaginário. Neste sentido posso comparar o Direito ao Teatro e só neste sentido porque o Direito é muito mais que os Advogados!

Os advogados deveriam ser uma classe respeitada por todos, pois os valores que prosseguem são nobres.

Ao contrário do que as pessoas pensam, um advogado não deveria mentir, nem deveria incitar o seu cliente a mentir para simplesmente se “safar” daquele maldito processo.

A missão de um advogado é colaborar para que se faça justiça, defendendo, é claro, os direitos do seu cliente…

A representação teatral não faz, ou não deveria fazer, parte de nenhum tribunal. Muitos dos nossos teatros estão às moscas… Será que estamos perante um caso de concorrência desleal? Ah pois! As portas da maioria dos tribunais estão abertas ao público sem cobrar bilhete…” (g.n.)1

Ao analisar-se os recentíssimos casos jurídicos veiculados pela mídia, concluímos facilmente que a assertiva acima além de extremamente irônica, traz dentro de si uma ambiguidade única ao afirmar que “advogados deveriam ser uma classe respeitada por todos ...”, ao mesmo tempo em que afirma que “A missão do advogado é colaborar para que se faça justiça, defendendo, é claro, os direitos de seu cliente...”. Vamos nos deter neste excerto apenas para tecermos algumas considerações relevantes.

Senão vejamos. Ao que consta, aprendemos, nos primeiros meses de bancos universitários que direito e justiça são valores que não caminham de mãos dadas, uma vez que o direito deve prestar assistência a todo e qualquer cidadão – seja ele inocente ou culpado – ao passo que a justiça é um sentimento a ser perseguido incessantemente por todos os indivíduos.

Ora, defender os direitos de seu cliente não significa fazer justiça, já que percebemos que isto não é o que ocorre na prática. Defender os direitos de seu cliente – quando este está errado – não significa fazer justiça, mas apenas assegurar a ele a possibilidade de safar-se de uma eventual condenação, ao mesmo tempo em que procura evitar um prejuízo pecuniário de grande vulta.

Melhor explicando: ao procurar fazer justiça para o seu cliente, o advogado exerce o direito no sentido de dar ao seu cliente a melhor defesa – independentemente da razão estar do seu lado ou contra ele – buscando maximizar o resultado, caso perceba ele que o conjunto probatório está favorável, ou, de outro lado, minimizar o prejuízo, caso o mesmoconjunto probatório denote a possibilidade de derrota. No texto acima, observando a questão da existência de “três verdades”, seria por demais irônico admitir tal possibilidade. A verdade – seja ela qual for – é sempre uma e apenas uma, não havendo espaço para “histórias”.

É o que demonstra o ocorrido recente entre o jogador de futebol Alexandre Pato e a atriz global Sthefani Brito que após um curto casamento de dez meses redundou em um processo litigioso de divórcio, sob a alegação de vida agitada por parte do marido e ausência de vida profissional da atriz, e cuja sentença em sede de pedido de alimentos provisórios, condenou o ex-marido a pagar à sua ex-esposa 20% (vinte por cento) de seus ganhos e contratos. Aliás, é o que revela a notícia abaixo:

“O valor da pensão alimentícia ainda pode mudar. Em todo processo de divórcio, o juiz fixa um valor provisório para que o dependente possa se sustentar enquanto corre o processo.

Após o julgamento, esse valor poderá mudar. É que a pensão alimentícia final que o réu será obrigado a pagar só será decidida após o fim do processo”.2

Analisando o instituto verificamos que este encontra-se escoimado no princípio do binômio necessidade versus disponibilidade, no qual está inserida a condição fundamental para que haja equilíbrio na separação do ponto de vista pecuniário: a necessidade do alimentado e a disponibilidade do alimentando que, no caso em tela está subordinado às disponibilidades de ambos para uma transação – veja-se bem: uma transação de direito disponível – e a partir de certos limites moralmente admitidos.

Não queremos aqui tecer qualquer comentário sobre o fato noticioso, posto que não é este nosso interesse, sendo certo que nos assentamos na diretiva de ordem jurídica, uma vez que o fato incontido e indiscutível é de que se tratam de dois jovens totalmente despreparados para a vida em comum, razão pela qual entende-se que o divórcio seria algo inevitável, tornando-se uma árdua batalha judicial, na qual a discussão principal versa exclusivamente pela reparação de caráter pecuniário, deixando de lado entendimentos tardios, possíveis conciliações de ordem emocional, ou ainda, a distante visibilidade de que tornem eles a serem um casal.

Nesta espécie de lide que podemos ver bem caracterizada o tema deste trabalho: alterna-se momentos teatralizados por seus protagonistas, passando-se para o picadeiro de um circo de quinta categoria. Dividem-se expectativas, sentimentos ambíguos e sensações absolutamente diversas e exigindo do causídico um exercício de psicologia e sociologia jurídicas: tratar seus clientes e a própria lide como se sua fosse; deixar claro aos seus clientes que não se trata de uma oportunidade de enriquecimento sem causa ou de obtenção de vantagens que quase (disse quase) granjeiam o oportunismo da vingança.

Não podemos acreditar que tais profissionais, cujos serviços revelam-se de importância fundamental para a existência e manutenção de uma sociedade justa e equilibrada, possam esquecer-se de uma tarefa quase sacerdotal, preocupando-se apenas com dinheiro, bens e resultados de ordem prática. Impossível ter-se em mente que este profissionais altamente qualificados e de certo renome nacional admitam a mera possibilidade de aceitar uma causa apenas pensando em seus honorários e nos resultados obtidos para a sua parte.

Se a sua função é é colaborar para que se faça justiça, defendendo, é claro, os direitos do seu cliente…, não pode ele atuar apenas no sentido material, deixando apenas para as mãos do magistrado as tentativas (inócuas em sua maioria) de obter a remota e impensável reconciliação das partes envolvidas.

Por fim, apenas para destacar este tópico inicial, trazemos à lume o fato mais imperioso em questões desta ordem deveria ser a observação um pouco mais rigorosa do disposto na lei civil, da qual destacamos os artigos abaixo:

Art. 1.566. São deveres de ambos os cônjuges:

I - fidelidade recíproca;

II - vida em comum, no domicílio conjugal;

III - mútua assistência;

IV - sustento, guarda e educação dos filhos;

V - respeito e consideração mútuos.

Art. 1.724. As relações pessoais entre os companheiros obedecerão aos deveres de lealdade, respeito e assistência, e de guarda, sustento e educação dos filhos.

Os excertos acima não podem ser tomados apenas como a letra fria da lei, sempre carente de uma interpretação controvertida, ambígua ou mesmo contraditória em sua origem. O que releva ao causídico é revestir a lei de uma roupagem social e voltada para a psiquê humanas, almejando sempre um resultado que não seja apenas adequado ao ordenamento jurídico vigente que sempre está ávido por adequações que o legitimem e – via de consequência – surtam os efeitos ansiados pelo legislador para a manutenção do sistema político em vigência (atendimento de interesses).

O resultado deve e precisa ser vislumbrado sob a óptica humana, cujas falhas e desafios são os temperos necessários para que possa o indivíduo atingir uma maturidade equiparada à sua capacidade criativa. Pessoas devem ser vistas enquanto pessoas e não apenas a partir de dados estatísticos e informes de ordem econômica, já que estes aspectos um estado de posse em lugar de um estado de consciência sobre a sua própria essência humana: o amor que nos une enos torna absolutamente diferentes dos demais seres tidos como irracionais.

Deste modo, tenhamos em mente que os divórcios não podem ser a rotina diária da vida em comum, posto que esta mesma vida em comum pressupõe lealdade, respeito e assistência. E na notícia objeto de nossa análise fica patente que estes pressupostos não foram observados, tornando a relação algo insuportável cujos efeitos espraiam-se para além dos limites da relação propriamente dita (isto por tratar-se de pessoas agentes formadores de opinião e de geração), gerando efeitos não queridos e não esperados pelo ordenamento jurídico para a sociedade a qual prontificou-se a proteger e zelar.

CNJ impõe a Medina a pena máxima: ‘Aposentadoria’

Há no Brasil, como se sabe, quatro poderes: o Executivo, o Legislativo, o Judiciário e o Dinheiro.

Os três primeiros mantêm uma relação de autônoma interdependência. O último impera sobre os demais. Em julgamento desta terça (3), O CNJ (Conselho Nacional de Justiça) tratou de um caso em que o Dinheiro, ao se impor no Judiciário, esqueceu de maneirar.

Tratou-se do processo em que o ministro Paulo Medina, do STJ, é acusado de vender sentença à máfia de caça niqueis do Rio. Por unanimidade, os magistrados que integram o CNJ decidiram condenar Medina. Impuseram a ela a pena administrativa máxima.

Medina foi sentenciado a desfrutar da aposentadoria compulsória, com direito à preservação dos vencimentos. Coisa de R$ 25 mil por mês.

Junto com ele, foi condenado o desembargador José Eduardo Carreira Alvim, -do TRF do Rio. De novo: aposentadoria, com preservação do salário.Se quiserem, os advogados de Medina e Alvim ainda podem recorrer ao STF. In http://josiasdesouza.folha.blog.uol.com.br.

03. MUITO ALÉM DO PROCESSO

Na seara do direito do trabalho vê-se ainda mais os efeitos (nefastos ou indesejáveis, ou ambos) do que se busca nestas páginas digressivas. Aliás, a cena é típica: reclamante (trabalhador desepojado de informações e senso crítico) é abordado por uma figura denominada de “paqueiro” que induz a ele a necessidade de interpor ação trabalhista em face de seu empregador. O pobre mal informado que sequer sabe se tem ou não direitos lesados – muito embora, via de regra, os tenha – aceita a eloquência do seu interlocutor que imediatamente o conduz ao escritório de um advogado especializado que pede-lhe sua Carteira de Trabalho e Previdência Social e após algumas anotações e consultas a volumosos livros de direito que sempre mantém em sua mesa, afirma taxativamente que é necessário “por o empregador no pau”, como única forma do trabalhador ver reconhecidos os direitos que lhe foram negados.

Mesmo o leitor mais incauto sabe muito bem onde isso vai acabar: a primeira situação, o advogado reduz a termo a reclamatória e a distribui, não sem antes fazer com que seu “cliente” assine uma procuração “ad juditia et extra”, pela qual recebe o advogado poderes ilimitados para atuar em nome de seu cliente, e chegada a audiência imediatamente responde afirmativamente à eventual proposta de acordo da parte contrária ou do Juízo que, segundo ele afirma ao seu cliente, é sempre a melhor e mais justa.

Já a segunda situação, distribuída a ação, o advogado contata a empresa (ou melhor, o empregador) e informa a ele que brevemente receberá uma notificação judicial para comparecer em audiência trabalhista, mas que sabedor das dificuldades do empresariado nacional, pode desde já aceitar acordo que pode, inclusive, ser homologado antes da audiência, minimizando os transtornos que a referida ação irá causar a ele que, por seu turno, aceita sem titubear.

Assim, a petição de acordo é confeccionada, assinada e protocolada para aguardar o despacho do juízo que não tardará – afinal, trata-se de um processo a menos, uma sentença a menos e muita preocupação a menos – deixando todos muito satisfeitos: o reclamante que receberá não aquilo que teria direito, mas apenas aquilo que foi possível naquela situação; o empregador que livrou-se de uma ação que além demorada também lhe custaria caro e, finalmente, o advogado que embolsou seus honorários.

Ironias à parte, não se vislumbra neste cenário acima delineado qualquer evidência de justiça, mas apenas de direito (letra da lei), que serve como panaceia para todos os males que afligem as relações entre Capital e Trabalho, e que tem no acordo a melhor saída (?). E para aqueles que ainda tem dúvidas sobre esta constatação, basta consultar os anais recentes das chamadas “Semanas Nacionais da Conciliação” e verificar que o acordos celebrados possuem uma vertente muito mais estatística do que jurídica.

De outro lado, notamos ainda que certo número de processos trabalhistas são interpostos como mera medida de vingança pessoal do trabalhador em relação ao seu antigo empregador. Explica-se: mesmo sabedor de que seus direitos foram pagos dentro de um dado limite de legitimidade e legalidade, o ex-empregado vem a juízo apenas para ter um pequeno e fugaz gosto de vingança em sua boca; sente-se bem em ver o seu ex-patrão à sua frente na sala de audiências de uma Vara do Trabalho e mesmo que seu processo não redunde em benefício de ordem pecuniária, ele sentir-se-á satisfeito com aquela situação.

Observamos ainda que a ganância e o desejo desenfreado por ganhos tidos como “astronômicos” ofuscam o bom senso e a razoabilidade dos seres humanos presentes em uma mesa de audiências. Senão isso, o que dizer de um trabalhador que, chamado para a conciliação em um processo de sua titularidade – que se arrasta por mais de oito anos! - rejeita um acordo líquido de quinhentos e setenta mil reais (!), preferindo continuar a executar um bem imóvel pertencente à um dos sócios da empresa devedora, ou ainda as cotas sociais de uma empresa de capital limitado (?).

A isto dar-se-ia o nome de incoerência, se a razão que movesse o interessado fosse apenas de natureza jurídica, o que não é, posto que ao seu lado está um operador do direito que tem por função orientar o seu cliente e quando o faz, age de forma oblíqua e sem demonstrar a ele que não se trata de uma barganha de um “mau acordo em lugar de uma boa sentença”.

A bem da verdade, o nome dessa conduta não pode ser algo diferente da cega e faminta vingança pessoal que induz o autor a embrenhar-se em uma ação que durará anos e resultará possivelmente em uma herança para seus netos (!).

Para além do processo há mais do que direito: há interesses econômicos, pessoais e corporativos que jamais imbricam-se em uma direção única preferindo os caminhos divergentes que jamais conduzem a um bom resultado, ou melhor, a qualquer resultado. E a justiça permanece à margem de tudo isso sendo cega, e surda aos anseios do equilíbrio e do bom senso que devem sempre orientar a conduta do indivíduo.

E para o incauto observador externo – aquele indivíduo que jamais precisou do judiciário,seja como autor, seja como réu – a visão mais se assemelha a um teatro mambembe em que a pantomima toma lugar do cerimonioso. Aos olhos de uma pessoa integrante da classe média, informado e razoavelmente culto, todo aquele cenário não possui um fundo de realidade que possa ser absolutamente crível. Não admite este observador audiências onde todos podem falar, mas jamais pretendem ouvir, preferindo um acerto definitivo, mesmo que este lhe seja parcialmente benéfico, ao lugar de ver seu direito reconhecido (ou não) sob a égide da justiça – aquela justiça que ele apenas percebe quando está orando, cultuando ou pensando. A este observador tudo realmente se parece com o que ocorre abaixo da lona de um circo.

Ressalte-se aqui, que não é nossa intenção denegrir a imagem do judiciário nacional, muito menos o relevante exercício da advocacia, isto seria, no mínimo, pérfido, senão imoral. Nossa intenção reveste-se apenas do caráter literário científico, buscando explorar as razões ocultas na alma humana quando esta encontra-se defrontada pelo interesse de ver para si aquilo que concebe ser seu por direito. Trata-se, na verdade, de uma realização humana, uma verbalização da alma, pois é na ciência do direito que se encontra a verdadeira alma humana – repleta de facetas, interesses não divulgados, sensações de perda ou de inferioridade, necessidades e anseios – que somente se revelam em situações de crise – e o processo, como dizia Chiovenda, é a instalação de uma crise, e que exige uma resolução. E esta resolução revela-se em uma escolha (aliás, crise nada mais é que uma escolha), escolha essa que tanto pode desaguar em um bem para o indivíduo ou ainda em um mal para ele e, talvez, para a sua coletividade.

Importante é salientar-se que o objetivo deste ensaio não é o de desnudar as mazelas do processo a do judiciário, inclusive porque este último tem sido o alvo preferido dos iconoclastas de plantão como o “mal dos males” e que deve ser resolvido, sob pena de tornar-se o eterno vilão e algoz de toda a sociedade.

Retornando ao cerne de nossa digressão, concebemos de forma inequívoca que o processo reveste-se de certa personalidade independente daquela que lhe concebeu; ou seja, o processo parece tomar rumo próprio que em nada liga-se aos interesses que lhe deram origem. E neste sentido, observemos as ações movidas pelo Ministério Público que inciam-se pelo interesse coletivo e acabam por serem tomados de assalto por interesses de ordem econômica e social, onde aqueles que detém maior interesse sagram-se vencedores alijando os demais interesses que originalmente estavam envolvidos.

Isto não é irônico ou mordaz, apenas a constatação do que acontece de fato. E também não é uma crítica, posto que uma crítica somente serve se for construtiva e não destrutiva – aliás, não existe crítica destrutiva, porque se apenas é destrutiva não pretende criticar, mas apenas destruir – trata-se apenas de observar o que acontece neste universo judicial.

Pensemos por um instante no seguinte questionamento: de que adianta uma UPP (Unidade de Polícia Pacificadora) composta por policiais que acabam tornando-se chantageadores tão inescrupulosos quanto os criminosos que anteriormente dominavam dada comunidade? Que credibilidade um sistema pode ter quando ele está corroído em suas entranhas mais profundas? Policiais que se tornam sequestradores, bombeiros que fazem reféns por dinheiro, soldados do exército que comercializam armas de uso exclusivo, … e tudo isso não é ficção (não é Tropa de Elite), mas pode muito bem ser faca na caveira!

E assim processos administrativos avolumam-se nas mesas e ali descansam, a espera da doce prescrição. Comissões Parlamentares de Inquérito que redundam apenas em troca de acusações vazias e destituídas de objetividade. Muito além do processo há diversos interesses conflitantes que na maioria das vezes precisam ser ocultados, maquiados ou mesmo disfarçados com a roupagem de uma pantomima tragicômica na qual os espectadores são apenas uma plateia passiva que espera não sabe muito bem o que, apenas espera.

No contexto acima delineado temos, portanto, que a ação legislativa redundará em processo judicial que, via de regra, arrastar-se-á por certo tempo buscando pela prescrição ou pela decadência a fim de não surtir os efeitos desejados, sendo certo que não é a intenção do judiciário que isto ocorra; porém, de outro lado, uma administração capenga e não sintonizada com a realidade deste milênio, simplesmente deixará que isto venha a tornar-se a mais sofrível realidade.

Entende-se que o processo judicial deva ser sempre o último recurso após o esgotamento de todas as vias possíveis para a conciliação de interesses conflitantes. Todavia, o que se tem observado é uma cornucópia de litígios que alguns denominaram de “judicialização das relações sociais”, criando-se superestruturas judiciais com poderes cada vez maiores e com limitações cada vez menores. Melhor explicando: eventual polêmica entre particulares e entre particulares e o Estado devem, a partir deste conceito, serem, sempre, objetos de apreciação judicial, que quando apresentadas ao judiciário deverão ser resolvidas de forma terminativa absoluta.

Neste modelo não houve espaço para o advento de uma administração judiciária, na qual ter-se-ia a figura do gestor judicial, que, em sintonia com os modernos processos de administração e gerenciamento, facilmente buscaria soluções de ordem prática orientadas para o aprimoramento contínuo da gestão de processos como elemento crucial na melhoria dos resultados a serem obtidos. O modelo da judicialização não peca, quer por excesso quer por omissão, apenas peca por ser um processo destituído de infraestrutura de apoio, iniciando-se, é claro, pela ausência de planejamento estratégico e beirando à pura desconsideração do planejamento tático e operacional.

Muito além do processo, há o interesse econômico que no mundo atual é aquele que possui maior proeminência, trazendo para perto de si tudo aquilo que lhe interessa e afastando para bem longe tudo aquilo que possa significar perda ou prejuízo. Veja-se, por exemplo, a recente fusão entre as empresas SADIA e PERDIGÃO, onde o CADE (Conselho Administrativo de Defesa Econômica), intervindo no processo determinou algumas ações que visem evitar a cartelização do segmento.

Mazelas à parte, o que temos é um resultado lento e demorado, posto que tal fusão envolve interesse público, e, deste modo, precisa ser aferido com vistas a impedir a cartelização ou ainda a concentração de poder econômico nas mãos da empresa resultante (BRF ALIMENTOS); aliás, nas palavras do conselheiro do CADE, Carlos Ragazzo, que manteve seu voto contrário à fusão, ele aponta que a tendência dos consumidores, com a ausência de produtos da Perdigão, é migrar para os da Sadia, e que a o acordo não garante competitividade no setor. São dele as seguintes palavras:

Em seu relatório, Ragazzo afirmava que a união entre as empresas, principais produtoras de alimentos congelados e processados no país, cria um “cenário extremamente danoso” para o consumidor brasileiro, com aumento de preços, geração de inflação e comprometimento do poder de compra das famílias das classes C e D. 3

Todavia, mesmo estas restrições não foram suficientes, e o processo de aglutinação (fusão empresarial), acabou aprovado com algumas restrições, e apenas o futuro nos dirá se este procedimento não resultará em prejuízo ao consumidor – algo absolutamente impossível de ser previsto, especialmente no atual cenário econômico mundial.

Mais uma vez observamos aqui que o interesse econômico prevaleceu sobre qualquer outro, e, sem a intenção de parecermos redundantes ou abusivamente pedantes, novamente percebe-se que há algo muito além do processo. Pode parecer que foi teatro, mas apenas o futuro do consumidor poderá comprovar se não foi mesmo uma pantomima.

04. ALÉM DO PROCESSO E ALÉM DO INDIVÍDUO.

Permita-nos mais um olhar sobre a Justiça do Trabalho; é gritante no meio empresarial que a atual legislação – leia-se Consolidação das Leis do Trabalho – encontra-se desatualizada, cujo arcaísmo apenas serve para impedir o crescimento econômico, posto que a proteção ao trabalhador excede seus próprios limites, deixando o empregador impedido de agir livremente na contratação de mão de obra.

Por mais que pudéssemos crer nesta afirmação, não podemos perder de vista que a Consolidação das Leis do Trabalho também é um instrumento, uma guia, para o empregador orientando suas atividades e impedindo abusos ou excessos. E da mesma forma cremos ainda que não se pode depositar sobre a legislação trabalhista a responsabilização por vários anos de atraso tecnológico, administrativo e operacional que criaram uma indústria lenta, subsidiada e sempre apoiada em um governo que, preocupando-se com o crescimento econômico desenfreado, deixou de lado a infraestrutura necessária para que esse parque nacional florescesse e criasse raízes suficientemente fortes para sustentá-lo nos momentos de tormenta.

Qualquer atributo no sentido de sustentar-se que a Consolidação das Leis do Trabalho carrega em si os pecados do mundo empresarial brasileiro além de risível, seria, no mínimo, um delírio beirando a alucinação. Trata-se de um monstro que criou outro e depois por este foi engolido.

O que acontece – além do processo – é a revitalização de um modelo paternalista para todos os lados, onde trabalhadores e empregadores são absolutamente incapazes de caminhar pelas próprias pernas, precisando apoiar-se no judiciário e esperando dele a solução mágica para a demissão sem justa causa e sem o pagamento das verbas rescisórias devidas, a locupletação de direitos sociais em detrimento de uma mão de obra mal treinada e constantemente sujeita a acidentes de trabalho e doenças profissionais que se proliferam com a mesma velocidade de uma epidemia.

Poderíamos ficar escrevendo aqui por dias, talvez semanas, e mesmo assim não seríamos capazes de esgotar o tema – que além de apaixonante – reveste-se de um aspecto social apenas percebido por aqueles indivíduos que, em algum momento de suas vidas, foi demitido injustamente, e teve que valer-se da Justiça do Trabalho para ver assegurados direitos que lhe foram impedidos porque o empregador apenas olhou para o seu próprio umbigo, investindo todo o resultado de seu empreendimento em benefício pessoal, descapitalizando o respectivo empreendimento e deixando-o à própria sorte. E se alguém discorda de mim, que prove que este não é funcionamento da mentalidade vigente no meio empresarial nacional.

Ao que nos parece, realmente, o circo veio para ficar, substituindo a necessária teatralização ritualística que tornava o procedimento e o processo mais solene e mais seriamente encarado por todos. Lembremo-nos da primeira audiência pública convocada pelo ministro Ayres Brito do Supremo Tribunal Federal para ouvir as partes acerca do processo controvertido que tratava do uso das células-tronco em pesquisas científicas. Apenas um indivíduo de coragem poderia ter tomado a atitude Aristotélica da coragem e da temperança. E isto é, de fato, fazer-se direito com justiça.

Impossível conceber-se algo além do processo, como também impossível conceber-se algo além do indivíduo; aliás, nada pode estar além do indivíduo, sob pena deste indivíduo ser tomado como coisa, do mesmo modo que, em Roma, tomavam-se os escravos, esquecendo os detentores do poder que coisificar pessoas, além de extremamente perigoso, não é a melhor forma de solucionar-se problemas de ordem econômica e social.

Quando se faz prevalecer o econômico sobre o social, temos um resultado desastroso, cujas repercussões podem ser sentidas por muito tempo. O malfadado processo dos “mensaleiros” é um triste exemplo de como o interesse limitado pode estar acima do interesse social – não nos limitando apenas ao interesse coletivo – fazendo do judiciário um órgão sobre o qual pesam as irresponsabilidades de um executivo incompetente e de um legislativo moroso, ineficiente e sem qualquer comprometimento com a sociedade. E mais uma vez precisamos lembrar a máxima de que, a certa altura, quando por diversos meios, o direito dá as costas à sociedade, mais cedo ou mais tarde a sociedade dará as costas para o direito (algo extremamente perigoso constituindo um caminho sem volta).

Sempre que vemos as discussões na mídia sobre o judiciário nacional, o que temos é a condenação absoluta de juízes, advogados, membros do Ministério Público, vertendo uma faceta dos meios de comunicação extremamente tendenciosa: a de auferir críticas e apontar soluções (via de regra, desastrosas), quase que obrigando o legislador pátrio a exercer o seu mister por meio de uma imposição midiática onde, quase sempre, a punição está acima dos meios, justificando-se apenas e tão somente por conta da comoção social que o caso noticioso possa causar.

Triste esta perspectiva curta e reducionista; quando se legisla a partir de uma pressão social criada propositadamente com o fito de “vender-se” a notícia enquanto notícia – e não como fato social que deva, de fato, ser analisado – o resultado, além de pífio, não resiste à uma análise à luz da Constituição Federal de 1988. E a mera alegação de que se trata de uma crítica construtiva, simplesmente não pode frutificar, uma vez que a construção nasce de um reducionismo banal, senão torpe.

Fato incontestável resume-se na questão de que não se pode alocar recursos políticos apenas para a satisfação de dado grupo social apenas porque assim querem alguns. Uma legislação coerente e consistente exige equilíbrio nas decisões a serem tomadas e resolutividade no resultado final. De que adianta condenar-se o consumidor de drogas ao cárcere, se este cárcere além de insuficiente, não apresenta condições mínimas de ressocialização? Ou ainda, como funciona um sistema de segurança máxima, onde o presidiário (sempre muito perigoso), continua a controlar seus negócios escusos mesmo estando sob condições de vigilância diuturna?

Lamentavelmente, não temos respostas para essas perguntas, não queremos a arrogância de apresentar a solução final para tudo. O que queremos é demonstrar que tanto no teatro como no circo a performance dos atores não se limita apenas à soluções imediatas que deixem uma falsa sensação de bem-estar e segurança. A experiência tem demonstrado de forma escancarada que esta sensação além de passageira é ilusória. A pertinência do resultado depende sempre dos meios que foram utilizados para ali chegar-se. Um caminho oblíquo vai encontrar uma solução pobre em resultados práticos e sem qualquer consistência social.

ENCERRAMENTO

Poderíamos continuar a tecer muitos comentários acerca do momento pelo qual o judiciário nacional está passando; todavia, não podemos nos alongar tanto, posto que o presente texto pretende apenas e tão somente colocar em debate alguns questionamentos que julgamos relevantes, principalmente um olhar sobre a ritualística (necessária), a teatralização sem profundidade e o caos do picadeiro sem os ditames do apresentador principal. Ou seja, estamos à deriva, fora da realidade e preocupados apenas com nossos próprios umbigos. O olhar não está para a frente, mas para baixo, com medo de tropeçar em nossa própria incompetência.

Acreditamos firmemente que uma legislação moderna não se faz com um ordenamento jurídico extenso e prolixo, cujos resultados sempre seguem o caminho mais fácil da prescrição, da decadência ou do simples perdimento. Se o legislador não se vale de palavras inúteis, o mesmo não acontece com suas digressões originárias de instrumentos de pressão social localizados, ou ainda, de necessidades que não serão plenamente satisfeitas.

Uma legislação moderna pode ser enxuta e, ao mesmo tempo, eficiente; resumida, mas objetiva, coerente sem excessos verborrágicos. Em recente decisão proferida pela Suprema Corte dos Estados Unidos da América, composta por texto de setenta e oito laudas, o seu Presidente valeu-se basicamente da Constituição em vigor e de duas emendas principais, apenas para afirmar a legitimidade do plano de saúde proposto pelo Chefe do Executivo. Isto, sem qualquer sombra de dúvidas, é aplicar a lei de forma objetiva e cristalina.

Se o Judiciário Nacional não ater-se à necessidade de uma modernização que se inicie pela estrutura, não serão sistemas eletrônicos, processos virtuais ou julgamentos à distância que serão capazes de atuar neste sentido. Modernização começa pela renovação conceitual para findar-se em métodos e processos.

São Paulo, 15 de julho de 2012.