SIMBOLISMO BÍBLICO- O SAGRADO FEMININO
                           
 
“E da costela que tinha tirado de Adão, formou o Senhor Deus uma mulher; e a levou a Adão. E Adão disse: eis aqui agora os ossos dos meus ossos e a carne da minha carne (...)”. Gênesis, 2;22.
 
E no princípio Deus fez o céu e a terra,
Num simples ato de Vontade exercida.
Para dar sentido ao que nela se encerra,

Encheu-a com diversas formas de vida.
E assim formou-se o reino dito animal,
Com criaturas da terra, da água e do ar;
E para dar remate a essa obra magistral,
Ele fez o homem, sua criatura modelar.

Do pó da terra ergueu o homem Adão,
Com um sopro o tornou alma vivente.
Multiplicar-se lhe foi dado por missão.

Para garantir que fosse bom o resultado,
Fez a mulher, a criatura surpreendente
Que todo homem necessita ter do lado.

                           (João Anatalino- O Sal da Terra)

Um pouco de história

A Bíblia é reconhecidamente um formidável monumento literário, construído pelos cronistas judeus para dar a Israel uma sustentação histórica e filosófica aos direitos que eles pretendem ter sobre as terras ocupadas na Palestina. Vários historiadores sustentam que ela foi compilada a partir de antigas tradições dos povos semitas, cultivadas pelos israelitas e transformadas em uma formidável saga heróica, semelhante às epopéias homéricas e védicas, cujo único propósito seria o de justificar a ocupação das terras palestinas e dar fundamento histórico à pretensão judaica de ser um povo culturalmente superior aos seus vizinhos. Essa pretensão se expressa principalmente pela religião que eles desenvolveram e legaram ao ocidente através da sua Bíblia.
Esses historiadores acreditam que a Bíblia começou a ser escrita nos tempos do Rei Josias (639- 586 a.C), citado no Segundo Livro dos Reis como sendo um dos mais respeitados monarcas da história de Israel. Esse rei, que viveu depois da queda dos reinos israelitas do norte e sua extinção pelos assírios, tornou-se a grande esperança de sobrevivência do povo de Israel, pois conseguiu manter o reino de Judá livre da ameaça assíria e fortaleceu o seu reino tornando-o um dos mais prósperos da região, numa época em que praticamente todo o Oriente Médio tinha caído sobre o domínio dos belicosos assírios.
Assim Josias reuniu em sua corte uma plêiade de sábios e mandou compilar todas as antigas tradições judaicas, bem como suas crenças e lendas, e com esse farto material histórico, mítico, sociológico e político, produziu esse que é, ainda hoje, o mais famoso e respeitado de todos os livros.[1]

Os primeiros seres humanos eram andrógenos?

Na tradição grega há vários mitos sobre a participação feminina na origem da humanidade. Um deles é o divulgado por Platão no seu “Banquete”.
 “Os seres humanos foram criados, primeiro, como andrógenos, possuindo em um só corpo os atributos do homem e da mulher. Por ter a capacidade de reproduzir a si mesmo, logo acharam que não precisavam mais dos deuses e resolveram desafiá-los.
Os deuses, reunidos em assembléia só viram uma solução para aplacar essa rebelião:  matar todos os seres humanos.Essa solução estava para ser aplicada quando um deles lembrou que se os seres humanos morressem todos, os deuses também deixariam de existir, pois não haveria mais ninguém para adorá-los. Assim resolveu-se que o ser humano não seria mais andrógeno, mas teria os dois sexos separados e para procriar teriam que se juntar um ao outro.Dessa forma cada metade passaria parte da sua vida à procura da  sua metade e assim não teriam tempo nem forças para desafiar os deuses.


Outro mito grego sustenta que a primeira mulher surgiu como uma represália de Zeus contra o roubo do fogo por Prometeu. Essa versão é do famoso escritor Hesíodo, que chamou de chamou de Pandora a essa mulher originária. Ela trazia consigo uma caixa com todos os males que os deuses iriam prodigalizar aos homens por conta do pecado cometido por Prometeu.   
                                                       (Hesíodo, Os Trabalhos e os Dias.)

Essa mulher foi dada de presente ao irmão de Prometeu, o curioso e frívolo Epimeteu. Epimeteu é o correspondente grego do Adão judeu, que curioso a respeito da “caixa” que Pandora trazia com ela resolveu abri-la. De dentro saíram as doenças, as infelicidades, todos os males que os homens não conheciam até momento.[2]
Note-se a estreita semelhança entre versão de Hesíodo e a descrição bíblica, que simboliza a caixa de Pandora como sendo o fruto que o casal humano come e em conseqüência atrai para a raça humana o castigo da expulsão do paraíso, a morte, a fadiga do trabalho e o peso de uma vida de labuta diária.
 
Ressalte-se desde logo que a maioria dos mitos da criação sugere que o ser humano foi criado primeiramente como um ser andrógeno, ou seja, tinha em seu corpo os dois sexos. Essa mitologia reflete o pensamento da maioria dos povos, de que a divindade – por suposto macho e fêmea ao mesmo tempo- criou o homem á sua imagem e semelhança, e deu-lhe os atributos da procriação como sendo uma transferência do seu próprio poder, o de criar.
A própria Bíblia parece confirmar essa tese. Em  Gênesis, versículo 27 do primeiro capítulo, lemos que "Deus criou o homem à sua imagem e semelhança; criou-o à imagem de Deus, criou o homem e a mulher." E no segundo capítulo, o versículo 18 diz: '"O Senhor Deus disse: "Não é bom que o homem esteja só; vou dar-lhe uma ajuda que lhe seja adequada." Mas é apenas no versículo 22 do segundo capítulo que Eva  é criada: "E da costela que tinha tomado do homem, o Senhor Deus fez uma mulher, e levou-a para junto do homem."
Assim, a Bíblia sugere que Deus criou o homem-mulher antes mesmo de fazer Adão e Eva como dois seres de sexos diferentes e que somente depois é que os sexos foram separados, e o ser humano passou a constituir-se um casal. Por isso se diz em Gênesis 1: 20 (...) “Mas não se achava para Adão adjutório semelhante a ele.” Por isso, numa intervenção cirúrgica digna do mais moderno cirurgião, Deus tirou uma costela de Adão e fêz Eva. Estaria o cronista bíblico descrevendo uma operação de engenharia genética, como os modernos genetecistas fazem hoje em seus laboratórios, ou simplesmente registrando, numa metáfora, o momento em que a natureza encenava essa mutação?
 
Houve outra mulher antes de Eva?
 
O livro da Cabala judaica ( uma interpretação mística da Bíblia, baseada principalmente nas metáforas próféticas), vai mais adiante. Ele sugere que Eva não teria sido a primeira mulher feita por Deus para companhia de Adão, mas sim Lilith, uma mulher que teria sido criada do pó da terra, na mesma ocasião em que Adão foi criado. Mas essa mulher logo brigou com Adão e se revoltou contra a dominação a que ele quis submetê-la. Segundo a versão de “O Alfabeto de Ben Sirac,” obra cabalística medieval, depois que Deus criou Adão, Ele viu a solidão dele e disse: 'Não é bom que o homem esteja só "(Gênesis 2:18). Ele então criou uma mulher para Adão, do barro da terra, como Ele havia criado o próprio Adão, e chamou-a de Lilith. Adão e Lilith imediatamente começaram a brigar. Lilith disse: "Por que devo deitar-me embaixo de ti? Por que devo abrir-me para que entres em mim? Por que devo ser dominada por ti? Não fui eu também feita de pó da terra? Não serei, por isso, tua igual?"
Adão lhe respondeu:"Eu não vou me deitar por baixo de ti, apenas por cima. Pois você está apta apenas para estar na posição inferior, enquanto eu sou um ser superior." Lilith respondeu: "Nós somos iguais um ao outro, pois que ambos fomos criados a partir da terra".
E eles não conseguiram entrar em acordo. Quando Lilith percebeu que isso seria impossível, ela pronunciou o Nome Inefável de Deus e voou para o ar. Adão pronunciou uma oração, dizendo: "Soberano do universo! A mulher que você me deu fugiu!". Deus, ao ouvir a prece de Adão, enviou três anjos para trazê-la de volta. Os três anjos foram atráz dela e  insistiram para que ela voltasse para Adão, ameaçando inclusive afogá-la no mar, porém ela se recusou a voltar, sendo assim condenada por Deus a perder cem filhos por dia. Então, para se vingar de Deus e da raça humana, Lilith juntou-se aos anjos caídos e se casou com Samael, anjo rebelde que havia desafiado o Criador.  Lilith tornou-se mãe da raça dos demônios.[3] E só depois desse relacionamento conflituoso com sua primeira mulher é Deus deu a Adão uma segunda esposa, Eva, mais submissa.
 
A criação da mulher
 
A criação da mulher é um dos mitos mais antigos história da humanidade. Ele foi apropriado pelos sábios israelitas em suas formulações ideológicas e políticas. Todavia, ele aparece em quase todas as tradições, refletindo, de modos diferentes e com diferentes motivações, os aspectos ideológicos, políticos e religiosos dos povos que os cultivavam. Assim, Eva, a mãe da humanidade, segundo a Bíblia, não é exatamente uma inspiração de origem exclusiva dos judeus, e nem é uma criação bíblica, mas sim, uma adaptação arquetípica do princípio feminino que todos os povos antigos cultivavam como necessário á criação da humanidade. Um antigo poema hindu (cerca de 2000 a.C) descreve a formação da mulher pelo deus Twasti,  

“Twasti – o deus – tomou a forma redonda da lua
e as curvas das trepadeiras
e o enroscar-se entre si dos vimes do bosque
e o tremor da erva
e a esbeltez da cana de bambu
e as flores
e a delicadeza das folhas
e o olhar do veadinho
e o rodopiar das abelhas
e a alegria risonha dos raios do sol
e o sonho inconsolado das nuvens
e o oscilar suave do vento
e a timidez da lebre
e a frivolidade do pavão real
e a suavidade da asa do papagaio
e a dureza do diamante
e a doçura do mel
e a crueldade do tigre
e a luminosidade confortável do fogo
e o frio da neve
e o palrar da gralha
e o arrulhar da pomba
e a adulação dos cisnes.
E juntando tudo isto criou a mulher e apresentou-a ao homem.” P
                            
U. Schembach- Publ. Laurinda Freire- Estudos Teológicos, Coimbra.or L


Já a tradição chinesa do Taoísmo diz que o “Tao produziu um. O Um dividiu-se em dois, dois produziram três e três produziram todos os seres mortais” – Tao Te King- Verso V.
Esse enunciado denuncia a crença chinesa de que o mundo é construído e sustentado por dois princípios antagônicos, mas complementares, que são yin e yang (o positivo e o negativo, a luz e as trevas, o mal e o bem etc).

O mito da criação humana, e especialmente o da criação da mulher, reflete as diversas crenças dos povos antigos a respeito do surgimento da humanidade. É pois, um arquétipo de compartilhamento coletivo em todos os tempos e lugares. Reflete também as diferentes fases de organização política e social pelas quais a humanidade passou em seu longo processo civilizatório.
As sociedades antigas, de uma forma geral, acreditavam que ao longo do tempo as formas de vida da humanidade sofriam transformações. Elas ocorriam por força de intervenções divinas que se sucediam na medida em que os deuses se agradavam ou se desagradavam das ações humanas. Era comum dividir o tempo em ciclos que eram identificados por ascensões e quedas nas condições de vida da humanidade. Entre os hindús, como entre os gregos, é comum encontrarmos quatro épocas de desenvolvimento humano, nas quais se identificam um tipo de civilização que se destaca pelo grau do desenvolvimento que teria atingido. Hesíodo, historiador grego já citado aqui, por exemplo, dizia que a humanidade, antes de sua época, teria vivido cinco eras, que ele identificava pelos metais que eles usavam como armas; Assim teria havido uma era de ouro, uma de prata, uma de bronze, e uma de ferro. E entre a era do bronze e do ferro, teria acontecido a era dos heróis, identificada como o período homérico, que Homero descreve na Ilíada e na Odisséia. 
Para Hesíodo, as eras mais antigas hospedaram civilizações mais desenvolvidas e homogêneas, o que combina com a tradição egípcia e mesopotâmea, para quem as raças mais antigas eram muito mais nobres e sábias que as mais recentes, pois elas teriam convivido com os deuses e falado com eles face a face.
A par disso, também as tradições hindus falam das quatro idades do mundo. A primeira (Krita Yuga) corresponderia ao paraíso terrestre, ou seja, a era de ouro. A segunda, que começou com a queda, seria a Têtra Yuga (idade da prata); a terceira, a Devpâra Yuga (Idade de Bronze) e a quarta a Kali Yuga (Idade de Ferro).
Na primeira Idade, ou Yuga, o mundo é criado por um Deus andrógino, que é, ao mesmo tempo Pai e Mãe. Na segunda, este mundo é criado por um deus andrógino ou um casal criador, ou então, por um coro de deuses, que se dividem em “masculinos” e “femininos” para criar o universo. Na terceira, um deus macho toma o poder da deusa, ou então cria o mundo sobre o corpo da deusa primordial. Finalmente, na última etapa, um deus macho cria o mundo sozinho.
 
Simbolismo político e religioso

Como se pode perceber, há nesse simbolismo uma clara evocação do processo político e sociológico que a civilização humana tem percorrido desde que iniciou a sua jornada civilizatória. Há tempos que um bom número de estudiosos tem defendido a tese de que as primeiras civilizações humanas eram estruturadas a partir do principio feminino, ou seja, o reconhecimento de que estaria no elemento feminino a certeza de que a linhagem da família se manteria pura, pois somente a mulher poderia ter garantia da origem dos seus descendentes, mas o homem não. Essa consideração de ordem biológica, associada à propriedade da concepção, e reforçada pela mística da Terra-Mãe daria origem aos cultos das deusas-mãe, que nos primeiros tempos da humanidade foram as principais manifestações religiosas dos povos antigos. Essa idéia transparece principalmente na cultura grega com o mito de que a Grande Mãe Géa (ou Gaia, a mãe Terra) cria o universo sozinha, sem precisar de um princípio masculino para fecundá-la. Dela nascem todos os semi-deuses (Urano e os Titãs) e as protodeusas, entre as quais Réia, que virá a ser a mãe do futuro dominador do Olimpo, o grande Zeus.
Mais tarde, á medida que os homens foram conquistando o poder, baseados principalmente nos atributos da sua força física, essas tradições seriam substituídas pelo principio masculino. Assim, ocorre uma substituição do princípio feminino pelo masculino. Essa substituição coincide com o início da organização da civilização ocidental, e reflete nas tradições compiladas pela Bíblia, as quais revelam uma sociedade guiada fundamentalmente pelo princípio masculino, baseado na estrutura patriarcal. A idéia de um Deus único, masculino e misógeno, como parece ser o Deus do Velho Testamento, é o corolário dessa transição do matriarcado para o patriarcado.  
Os mitos astecas também falam de um mundo perdido, um jardim paradisíaco governado por Xoxiquetzal, a Mãe Terra. Dela nasceram os Huitzuhuahua, que são os Titãs e os Quatrocentos Habitantes do Sul, identificados com as estrelas. Mais tarde, seus filhos revoltaram-se contra a deusa, e ela, para salvar o mundo dos seus filhos rebeldes, dá à luz ao deus que iria governar doravante o mundo, Huitzilopochtli. Qualquer coincidência com as tradições cristãs referentes ao nascimento e a missão de Jesus não terá sido mera coincidência.
Verifica-se assim, que a ideologia machista, centrada na metáfora de que a mulher foi feita a partir de uma costela do homem, e por isso mesmo deveria se conservar numa posição hierárquica inferior a ele é uma concepção ideológica bastante recente em se considerando o todo da história da humanidade. Eva, na verdade, é um arquétipo que existe em todas as tradições criacionistas elaboradas pelos povos antigos, não sendo, pois, uma criação exclusivamente bíblica. E a versão que a Bíblia divulga a respeito da origem da primeira mulher é uma pálida visão, ideologizada, corrompida e deturpada desse elemento fundamental na gênese da vida, que é o princípio feminino. Reconduzido ás suas origens, esse mito nos revela um precioso simbolismo que revela toda a arquetipia do sagrado feminino e nos conduz a uma nova apreciação dessa que, no nosso soneto de abertura, é chamada de a “criatura surpreendente que todo homem necessita ter do lado.”    
 

[1]Ver a esse respeito A Bíblia Não Tinha Razão- Israel Finkelstein e Neil Asher Silberman- Ed. Girafa, 2003
[2] Interpretações modernas dessa metáfora, centradas principalmente na psicanálise oriunda do trabalho de Freud, vêem nesse simbolismo uma referência à descoberta do instinto sexual do ser humano, em termos de conscientização do prazer. Isto é, aqui estaria simbolizado o momento psicológico da descoberta de que o sexo, no ser humano, comporta um elemento de prazer e não apenas uma função biológica, como parece ser nos animais. Nessa referência estaria a descoberta da “noção do pecado”, que a teologia religiosa, principalmente do judaísmo e do cristianismo transformou em dogma.
[3] Kennet Hanson- Segredos da Bíblia Perdida- Ed. Cultrix, 2007
 
 
 
João Anatalino
Enviado por João Anatalino em 21/09/2012
Reeditado em 21/09/2012
Código do texto: T3893862
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