FuturoSofia

FUTUROSOFIA

Queria te contar algumas coisas, pois acho que sabendo por mim evitaremos as deturpações comuns das acreditações preconcebidas.

- Minha futura neta, ainda nem gerada, Sofia, você nem imagina como foi a minha vida pregressa! Vou te falar antes de ficar velha demais e de você ser muito nova para entender esta conversa.

A história da minha família determinou o que eu sou. Nasci no Estácio e logo mudei para o Bairro de Fátima, perto da casa onde minha avó alugava vagas para moças que se prostituiam ali mesmo, no Centro da cidade. Dentro de uma realidade rodrigueana, cresci programando uma forma de ajudar ao próximo com as suas dores. Primeiro dava aulas particulares para alfabetizar as inquilinas do prédio e seus amantes, muitas vezes contrabandistas ou gigolôs, depois me filiei ao Partido Socialista dos Trabalhadores, ainda clandestino àquela época, para militar pela mudança da sociedade através do “acirramento” da luta de classes. Na faculdade de Medicina, além de aprender a fazer farofa e panqueca com a Wilmaça, eu construí minha revolução dentro do DAME, nosso diretório acadêmico, e fui a representante da reorganização da UEE e UNE em Salvador. Detida e fichada pelo DOPS antes de terminar o segundo ano da faculdade, acabei indo ao Projeto Rondon em Almeirim, no Pará, para ver o que era a carência nua e crua produzida pela injustiça social. Quando voltei, participei da fundação do Partido dos Trabalhadores em São Paulo e depois de ver as diferentes tendências argumentando se era classe trabalhadora ou força popular a verdadeira base social, se deveria haver assembleia nacional constituinte ou se o certo era a luta armada, ou ainda, se o movimento era leninista ou trotskista e ouvir a LIBELU, Convergência e MR-8 se atracando no plenário para dar o tom que aqueles sindicalistas deveriam ter ao mudar este país, Sofia, eu desisti do Comunismo! Que coisa chata participar das picuinhas dos companheiros, mas claro que amei dormir num “aparelho” com jovens românticos e idealistas após lermos Wilhen Reich e a revolução pela igualdade entre os sexos, ter aprendido sobre o teatrólogo Brecht, o trovador Victor Jara e os poetas Neruda e Ferreira Gullar, ter participado de peças de teatro e decidido não ser mais tão tímida. Cantava com o violão desafinado “Prá não dizer que não falei de flores” e ”Andança” com a Margareth. Minha neta, eu participei de serenatas e organizei com meus colegas, festivais e semanas de arte e música, em Valença, compreendendo então como era bom ser médica e que este era o meu caminho: a Medicina Social, a Saúde Pública e hoje o SUS.

Sobre a minha opção amorosa você deveria saber que o meu desejo foi tão grande em ser mulher que atravessou o outro lado do meu coração e me apaixonei pelo mesmo sexo que o meu. Claro que também amei o seu avô, e acho que ainda o amo. Quando falo avô aqui me refiro ao Bené.

Queria que você já crescesse consciente de que o preconceito é algo que as pessoas inventaram para não lidarem consigo e o segregam para não ver o que lhes limita. Isso é problema delas. É melhor crescer sem eles. Deixe-os para os doentes que em algum momento sucumbirão por dentro de si como uma planta que nem germinou, mas já cresceu florindo toda.

-Você precisa saber que eu sempre fui feliz mesmo nos momentos tristes, eu os superei com um sorriso ingênuo e esperto.

-Tudo é fácil e variável, Sofia, considerando que fazemos o que nos acontece. Nós é que daremos o peso exato para a nossa carga durante a vida. Nem um grama a mais do que podemos. Não somos vítimas de um destino cruel! Podemos ter a leveza de pássaros sobre as lagoas com uma vibração sobre a água por fração de segundos. Existem belezas lindas neste mundo: A revoada dos pássaros-rosa no Pantanal, os flamingos; O pôr do sol silencioso e o tamanho das folhas das samambaias sobre o rio Amazonas; Os tucanos andando coloridos e trôpegos nas clareiras indígenas; o mercado Ver-o-Peso; A poesia do Drummond e a prosa do Machado; O manifesto comunista de Marx e Engels; A lógica do Budismo e a falta de senso do movimento Hippie; A medicina alternativa com o advento do quantum energético; A sopa na Praça Castro Alves em Salvador; O pão quentinho da padaria da Rua dos Mineiros em Valença e da N. Sra de Fátima em Resende; Ficar grávida e ter em mim o olhar jabuticaba da Julia, ouvir o riso do Jonas e sentir a meiguice precoce do Gil- Nos ouvíamos desde Gismonti até Pink Floyd! Morar em Marechal Hermes e ter ido às gincanas da Feira da Providência, no Pavilhão de São Cristóvão; As nossas cachorras da vida Mimosa, Tai, Luna, Palita e Patty, o periquito Pepino e o canário Tico; As histórias dos meus avós, suas gargalhadas, nossas piadas, nosso jogo de palavra e de cintura; Os filmes, novelas e algumas séries de TV que eu acompanhei e me ensinaram curiosidades da vida; O cheiro de café e o da carne assada com macarrão dos domingos de minha infância, tanto da mamãe quanto da vovó Anita!

Eu não posso deixar de dizer que o meu primeiro momento amoroso foi na Ilha de Paquetá, após procurar um lugar de onde desse para ver a lua cheia e a entrada do ano de 1976, ouvindo Mercedes Sosa e emocionando-me com aquela descoberta.

-Sofia, eu tive amigos que se fizeram irmãos e parceiros de estudo revestindo sua energia a todas as fases de minha vida. Nunca deixe de estudar! Todas as matérias são legais! Até Educação Física quando estiver menstruada é divertido. Fazer parte do time da escola mesmo sem ser convocada, aliás, aliviava. Sempre tive dor de barriga antes de alguma coisa importante.

Cheguei a pensar em morar em comunidade e abriguei muitos amigos em minha casa pelo menos para um prato de sopa, um pernoite ou até que vendessem umas camisetas com o carimbo dos deuses indianos para poder seguir viagem.

-Sofia, eu tive muita sorte nesta vida. Ganhei bolsa de estudos integral para fazer a faculdade de Medicina e para fazer a especialização em Homeopatia. Esforçava-me muito para cumprir todas as tarefas com recursos econômicos limitados sempre. Não tinha tempo ruim. Divertia-me muito com meus filhos interessantes e seus ouvidos discípulos chorando ou sorrindo com as historinhas inventadas por mim e cantando o disco “Adivinha o que é” do MPB4, com aquela musica “O Pato” do Vinicius de Moraes.

Há pouco tempo, publicaram uma lista de lugares que você não pode deixar de ver nesta vida e que eu narraria diferentemente. Não são os lugares e sim o que eles produzem na gente que demonstra a razão indizível do que viemos fazer neste plano relativo de existência. Nem são as pessoas e nem mesmo o que nos acontece o que realmente importa. -Isso é o futuro, é você, Sofia! No fim basta surgirem dúvidas, manuais inéditos algumas adaptações e práticas mais modernas para que de novo sejamos lançados ao futuro de onde vigiamos o que realmente nos acontecerá. O conceito da futurosofia não pára de se atualizar sempre certificando um passo à frente do vivido, ao mudar nosso infinito, brincando com a nossa eternidade: insofismável, indissolúvel, onipresente e onisciente. A futurosofia determinará até em quê deveremos acreditar.