Nossas algemas estilizadas

O “Fantástico” de ontem ( 4 / 11) veiculou a instrução de um gângster qualquer que através do celular, onipresente nas cadeias brasileiras, disse que, cada “ato covarde” de um policial, deveria ser pago na mesma moeda. Em outras palavras, o que matasse um marginal no exercício de seu trabalho, deveria ser executado.

Dadas as dezenas de policiais mortos nos últimos tempos, parece que a ordem está sendo cumprida. Estariam os tais “apenas” exercendo o “direito de vingança” contra quem os reprime? Esse abominável incidente é o ápice da inépcia social, em lidar com as questões de direito e dever.

O conceito de marginais pressupõe pessoas que vivem à margem da sociedade, desconhecem voluntariamente seus deveres; podendo, por isso, ser privados até do direito de ir e vir.

Numa primeira análise, o direito é um bem pessoal, e o dever, um patrimônio coletivo, social. Claro que o fiel cumprimento dos deveres traz reflexos individuais, e há direitos sociais também; mas, no âmbito comum, os deveres são mais perceptíveis.

O problema ocorre quando se presume a primazia do direito em face aos deveres, ou pior, alienado daqueles. A absolutização da liberdade, onde é “proibido proibir”, não nos faz uma civilização evoluída, antes, inconsequente. Alguns consideram evoluir, aperfeiçoar meios, e ignorar fins.

Imaginemos uma sociedade antropófaga, que um dia, teve contato com a “civilização” e após alguns anos de convívio, come ainda carne humana, mas, agora corta e espeta com facas e garfos inox, não seus antigos rudimentos de pedra. Em face aos meios, teriam evoluído muito, mas, no que tange aos fins, permaneceriam no mesmo lugar.

Muitas facetas doentias e hipócritas até, das famílias e da sociedade conservadoras foram revistas e arrostadas nos anos sessenta e setenta, pelo idealista movimento “Hippie” que deixou suas marcas em todo mundo. Foi um porre de liberdade e direito, incluindo as drogas e a promiscuidade.

Mas, passado o auge da febre, um inspirado compositor denunciou que um desses que tendiam a uma nova consciência e juventude, deixou a luta seduzido pela matéria, “abençoado por Deus contando seus metais”, enquanto ele sofria ao constatar, (disse) que “apesar de termos feito tudo o que fizemos, ainda somos os mesmos e vivemos, como nossos pais” ( trecho da música “Como nossos pais”); se bem que, na verdade pioraram, pois, conservaram a hipocrisia, senão como aqueles, das relações de fachada, esses, do idealismo de fachada, com agravante que desceram muito, em seu descalabro moral.

Como os filhos geralmente refletem os pais, e essa geração já é neta daquela, muita coisa que hoje nos assombra, deveria ter sido prevista, como caminho natural do império do direito que se instalou por todo globo. Meia dúzia de almas sadias, ainda se escandaliza com a promiscuidade, a indecênca, a corrupção, o vergonhoso fisiologismo político ainda que sob a eufêmica bandeira de “pacto de governabilidade”.

O horário nobre da TV está eivado de programação adequada para as madrugadas; os Games que os pimpolhos jogam, são, quase todos, baseados no manuseio de armas virtuais por infantes, inclusive jogos de matar policiais; mas censura é um palavrão e nós somos educados demais para incorrer em tal grosseria.

Vez em quando um americano, principalmente, que tem fácil acesso às armas reais, se cansa das mortes virtuais, e adentra num colégio matando dezenas, afinal, tem mais adrenalina e está treinado para isso. Depois, os netos dos hipócritas convocam “especialistas” para explicarem o que se passa com nossa sociedade.

Não que eu seja contra o direito, mas, contra a falta de noção. Todos têm direito a dirigir um carro, por exemplo, desde que avaliados nos quesitos de conhecimento das leis de trânsito, visão, psicológico, e habilidade prática. Quatro deveres, antes do direito. Certas coisas devem ser vetadas às crianças sim! Quem disse que psiquês ainda em formação já têm condições de avaliar corretamente o que será edificante e o que é pernicioso?

Mas, nosso porre democrático canoniza a bagunça em nome da liberdade; outro dia em Porto Alegre, meia dúzia de baderneiros profissionais derrubou o mascote de Copa de 2014, e a polícia que reagiu tentando proteger o bem público, é que está sendo acusada de ser truculenta. ( Não que eu morra de amores pelo boneco, só como exemplo da libertinagem travestida de liberdade).

Mas, voltando aos policiais e aos bandidos, os primeiro são facilmente identificáveis por seus veículos e suas fardas, enquanto os outros, podem se camuflar entre pessoas de bem, e atacar quando lhes convier. Em muitos casos, os policiais são atacados de modo imprevisto, e, se matarem alguém revidando tiros, estarão praticando um ato socialmente higiênico, não covarde.

Todavia, olhando para Brasília, onde se concentram os mais estrondosos roubos da nação, e não vendo punição alguma, natural que os bandidos menores que, “dão duro” tendo que assaltar a mão armada, considerem um direito agir assim, afinal, são meros varejistas em face ao atacado do roubo.

Parece que nossa identidade nacional assoma de quatro em quatro anos, na Copa do Mundo, depois, somos um aglomerado de indivíduos com seu mosaico de interesses; mesmo na política, já não há estadistas comprometidos com o povo, mas carreiristas tributários a siglas e bandeiras inúteis.

A liberdade nesses termos é desprovida de sua essência, pois, nos outorga apenas o direito de um personal stylist para que escolhamos nossas próprias algemas. “Evoluímos” de uma sociedade escravocrata, para um amontoado de robôs igualmente programados, pois, fugir à ditadura do “politicamente correto” seria ridículo... nosso menu não se altera, pois; ainda somos os mesmos; mas, nossos garfos e facas são inox...

“Mas eu desconfio que a única pessoa livre, realmente livre, é a que não tem medo do ridículo.”

Luis Fernando Veríssimo