SONETOS FRATERNOS
JOSÉ INÁCIO VIEIRA DE MELO
O encontro entre poetas é quase sempre motivo de festa, da qual são convidados cativos a lua, os deuses do vinho e a Musa Inspiradora. Nesses momentos são comentados livros e são lidos os versos mais frescos, recém-saídos do alforje da criação de cada poeta. E é assim noite adentro, madrugada afora.
No caso específico de Jubiraci Santana e Kleber Luis Khell, além dos motivos acima mencionados, há entre esses dois poetas, algo mais forte, que é uma amizade sem restrições. A amizade sincera é, por si só, causa de comunhão, mas esses poetas têm uma outra grande paixão em comum a uni-los ainda mais: o soneto.
E é o soneto, essa forma poética tão cantada e decantada, que os reúne neste livro, Sonetos, título-signo da predileção de Birão Santana e Kleber Luis.
Sonetos é dividido em quatro partes.
A primeira parte traz 40 sonetos da autoria de Birão Santana, em que encontramos construções que revelam a inquietação do poeta, como em “Ter por travesseiro”, no qual canta, em sinal de reclame ao cotidiano fastigioso, da seguinte forma:
Nada além da insuportável rotina.
Não tenho pés que me levem à França.
O trabalho apenas me determina.
Enquanto a alma aspira o corpo se cansa.
[...]
Nada resolve este grande conflito.
Quando me calo eu ainda grito
– negar tudo e viver vida de artista.
O poeta está a procura de algo que possa ser um sustentáculo para os seus dias, busca onde se firmar, e para ele somente a literatura é capaz de trazer a redenção, de possibilitar ao caminheiro da vida a busca da plenitude, e compreende que é chegada a sua hora de acender a luz e tomar prumo:
Acender a luz que quer brotar de mim.
Abdicar do meu passado de miséria!
Saber que esta vida passa, que ela é etérea.
Relegar aos escombros meu lado ruim.
Renascer novo coração, nova artéria.
Não ter alucinações de Serafim!
Caminhar!, nova vida que não tem fim.
Novo ser, habitando nova matéria. (“Importa a nova”)
No derradeiro poema dessa primeira parte, “Não sejas, meu filho”, Birão presta uma justa homenagem ao seu pai. O filho percorre as ruas da infância, ruas das caminhadas que outrora fizera com seu pai, e tenta encontrar, em vão, um suspiro daqueles tempos aurorais:
O campo ainda permanece santo.
Também permanecem flores e luas.
Eu te procuro nas desertas ruas
onde não sinto mais o teu encanto.
Mas o poeta não destoa, não emudece, e tenta em cada verso que faz, em cada soneto que cria, seguir o conselho do pai : “Não sejas, meu filho, menos que o vento”.
Na segunda parte nos é apresentado um conjunto de sonetos de Kleber Luis Khell. Esse poeta sabe que tudo é um sopro, que a vida passa veloz, por isso não se engana com o tempo, sabe que ele não tem piedade de coisa alguma, e a tudo devora:
[...]
Foi-se o meu tempo de pescar piabas
e já vem chegando o tempo das podas.
É minha Fase Azul que já se acaba...
O tempo, que me beijou, me incomoda
e cobra duro – e minha ruga paga...
A boca, que foi doce, é aziaga.
O tempo finge que dá, mas engoda
– a hora que passou sonhos desaba... (“O tempo finge”)
O poeta não se ilude; sonha, mas não se ilude, pois entende que na vida o que se deve fazer mesmo é viver intensamente cada momento. A sua atitude perante a vida, longe de ser de contemplação, é de esquecimento: esquecer da problemática existencial, deixar essas preocupações de lado e cuidar em viver, como se estivesse sempre a conclamar a todos com um brado de carpe diem, e o faz, efetivamente, com sua poesia, como em “Nem se importa se voa”:
[...]
Ter a vida quer dizer: esquecer,
poder vivê-la como quem respira,
como quem observa tudo o que vê.
Esquecer da vida é de tudo a chave;
ganhar, perder, é somente mentira –
nem se importa se voa (mas voa) a ave.
E segue, obstinadamente, pelos caminhos da poesia dando voz à força lírica dos seus versos, mas numa caminhada tranqüila, pois bem sabe que
[...]
Depois de mim, todo eu serei diversos
[...]
Com boa morte eu morrerei um dia
e na lápide da minha alegria
lerão: a poesia foi cumprida. (“Depois de mim”)
Os poemas que compõem a terceira parte foram feitos a quatro mãos. Pode-se supor que o trabalho fica bem mais fácil, pois são duas cabeças pensantes em busca da mesma solução para o texto; ledo engano. O poema feito em parceria exige muito mais apuro técnico do que o realizado individualmente. O poeta, na sua particularidade, ciente do seu oficio e possuidor de uma marca, sabe por onde trilhar e que rumo dar à sua inspiração, à sua construção, o que é diferente de quando encontra algo já começado, que precisa de continuidade.
Como Birão Santana e Kleber Luis se afinam no mesmo diapasão, o fruto da parceria só vem acrescentar valor às suas criações individuais, conseguindo realizar belos sonetos, como em “Por alguns momentos” em que retomam a temática da elevação do ser e das suas possibilidades de construção:
[...]
POR MOMENTOS DEVO ASCENDER,
NEGAR A MIM MESMO E CRESCER,
me alevantar por sobre as casas:
posso ser tudo por momentos.
[...]
Em “O banquete das carnes”, o tom sinistro, rico em imagens que devastam a fragilidade humana, reduz o homem à pastagem da morte. Percebe-se neste poema uma influência do poeta paraibano Augusto dos Anjos. Nele a morte sentencia:
[...]
– “SOBREVIVO!, E NADA, NINGUÉM, QUE ISTO MUDE!
Cada corpo rijo de hoje será pasto
[...]
pra que ninguém se arvore ou muito se anime:
NO BANQUETE DAS CARNES EU ME SACIO.”
Os dois poetas não perdem a esperança, sonham com portas abertas. Apesar de esbarrarem nas trancas, sabem que conseguirão abri-las, pois possuem a chave da poesia, e, ao declamarem seus versos, fazem o devido uso da poderosa chave. Que cantem então os poetas:
QUE EU TENHA PARA A VIDA A PORTA ABERTA,
Sem trincos, sem fechaduras ou trancas.
TENHA EU PERNAS FIRMES OU PERNAS MANCAS
Vou todo me jogar na estrada incerta.
[...]
Mas a vida comporta belo e grave:
PASSO PRA REDENÇÃO, PASSO PRA ABISMO,
feliz o que tem sequer uma chave. (“Feliz o que tem”)
A quarta e última parte destes Sonetos é intitulada de “Panegíricos”. São 43 sonetos resultantes da correspondência entre os dois poetas. Datam de 1992 a 97, período em que Kleber Khell estava em Itabuna, servindo como Tenente. Jubiraci Santana continuava em Salvador. São sonetos de louvação à amizade, cantos impregnados do mais puro fervor em honra ao amigo ausente. Um pequeno detalhe, cada soneto inicia com o último verso do antecedente, à maneira das coroas de sonetos. Em seguida, são apresentados alguns exemplos para que o leitor possa ter uma noção dos poemas-missivas.
[...]
Como será me recolher em bar
sempre as outras duas mãos a buscar
o que alevanta meu soneto: o verso?
Com qual matéria construirei ponte
por este distante, imenso universo?
Sei: basta diluir-me no horizonte. (“E como será”, Birão Santana)
“Sei: basta diluir-me no horizonte”
para estar contigo em qualquer lugar,
conjugando o verso fácil: amar.
Vou – sendo ensinado a construir ponte. (“Sei: basta diluir-me”, Kleber Khell)
[...]
E as cartas continuam. E os poemas
– pérolas sobre alegrias ou dilemas.
Continuamos nós, muito além vendo.
Vem a caneta, o papel, vem Agosto.
Quem chamou ao meu poema teu rosto?
Sei: quem me chamou pra estar escrevendo. (“Sei: é este interagir”, Kleber Khell)
“Sei: quem me chamou pra estar escrevendo”
– floração em primavera fecunda
sol que nasce e vive mesmo morrendo,
riso que aflora e a si mesmo secunda. (“Sei: quem me chamou”, Birão Santana)
Birão Santana e Kleber Luis Khell, dois poetas unidos por um ideal, qual seja a glória da poesia, o louvor dos mistérios que envolvem a forma fixa dos 14 versos, o soneto. Forma clássica levada às alturas por mestres como Petrarca, Camões, Olavo Bilac e Vinícius de Moraes, mas que ainda encanta gerações e gerações de poetas, tomando fôlego e se renovando como acontece neste livro Sonetos.
O pacto sagrado feito por Davi e Jônatas, que ligou suas almas pelo amor fraterno, parece se reproduzir agora entre Birão e Kleber. A forma encontrada pelos dois poetas para celebrar a comunhão de suas almas é esta festa de sonetos – sonetos à mão cheia!