O medo e a Esperança de Fernando Couto

Leituras em Diagonal por Jorge Viegas

O medo e a Esperança de Fernando Couto

“Glória a Deus nas alturas, e Paz na Terra aos homens de boa vontade”. Esta frase angélica é a epígrafe ideal para um escrito no qual se pretenda assinalar o nascimento de Jesus. Julga-se que os poetas são homens de boa vontade. Eu julgo que nem todos o são. Mas o poeta Fernando Leite Couto, decerto que o é. Nascido em Rio Tinto, Porto, em 1924, e fixado na Beira, Sofala, Moçambique, a partir de 1953, este poeta foi escrevendo a sua obra algo à margem dos centros de interesse literários, mas não de um modo superficialmente atento à realidade africana.

Num território ocupado, os únicos sinais permitidos são os do ocupador. A dimensão humana do sujeito à ocupação é rasurada, e passa a ser integrada como um elemento paisagístico. Só que, a configuração anímica do ocupador não é uniforme. Um ou outro elemento, dos que a constituem, recusam acertar o passo com as linhas gerais que lhes são definidas como sendo as mais próprias.

Fernando Couto é, com muita propriedade, um desses elementos. Ele tenta, e porque animado por uma fé verdadeira na possibilidade de comunicação entre homens de raças e culturas diferentes, decerto que a conseguiu obter. E a mais cabal prova desse conseguimento, será não só a sua obra literária como a do seu filho, o meritoriamente laureado escritor moçambicano, Mia Couto.

O poema “O medo e a esperança” retirado do livro “Jangada do inconformismo” descreve a busca de sinais de entendimento e aproximação entre dois seres humanos divididos por um passado de incompreensão e de antagonismo brutal. A perspectiva desvelada é a do poeta, permanecendo a da outra personagem do poema na incógnita do seu silêncio de oprimido.

O poeta inicia a sua narrativa a partir do seu próprio movimento: “Tranquilo e devagar entro na aldeia | de mão ao alto aberta em sinal de paz | desertas e contudo palpitantes | se encontram ainda as palhotas.” Quando o seu olhar se cruza com o de um dos habitantes da povoação o poeta apercebe-se duma tensão latente gerada por um terror ancestral: “ No único rosto presente é visível | o medo está atento procurando antecipar-se | nos meandros da incómoda adivinha | Falo e sorrio e entreteço pontes de caniço | e nãos sei estendê-las até à outra margem: | fechado e atento o rosto em frente do meu | entremeia um rio sem vau e sem barcos | de águas opacas e demasiado largo”. As raízes do medo afundam-se na noite dos tempos: “Procuro na memória de distantes avós | autênticos e críveis sinais de paz | e ao fazê-lo acordo aves de lembranças | de ventres pejados de sangue e ódios | e apenas avivo no rosto em frente as cores do medo. | Olho o meu braço estendido e nu | inofensivo e pronto à espera do acolhimento | e no rosto em frente projecta-se uma sombra | a dolorosa sombra-lembrança de um chicote | E o medo ganha relevo no rosto escuro | atento e vigilante à porta da palhota: | pergunto aos teus olhos e às tuas costas | à tua carne e ao abismo dos teus olhos | onde e quando brotou a fonte desse medo | - como se eu fosse o deus vivo do raio | e fizesse empalidecer o teu rosto cor de noite | a ti que nunca me viste e contudo és valente | e já viste de perto a fome de feras em liberdade. A pergunta do poeta debate-se com a impassibilidade silenciosa daquele a quem é dirigida: “Quero perguntar de frente aos teus olhos | e a tua cabeça pende como um ramo | ameaçando de morte com o peso dos frutos | prestes a perderem-se inúteis em chão batido.” Mas a esperança que anima o coração do poeta permite-lhe ter a certeza ser possível estabelecer elos de ligação solidária entre ele, erroneamente identificado como um dominador, e o camponês moçambicano envolto pelas sombras do medo: “Quero perguntar-te e não sei os gestos | nem as palavras mágicas ou compreensíveis | para conjurar a mancha de medo | que ensombra o teu rosto esculpido em negro | Não sei os gestos e as palavras mágicas | e todavia não desisto e procuro | certo de haver uma ponte praticável | entre os meus e os teus olhos erguidos.” E essa busca insistente dos gestos e das palavras mágicas justificam uma parte razoável da obra poética de Fernando Couto, e, em grau mais elevado, a extensa obra literária de Mia Couto.

Jorge Viegas

(Poeta/Escritor Moçambicano)

JORGE VIEGAS
Enviado por CEMD em 28/02/2013
Reeditado em 11/03/2013
Código do texto: T4163884
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