O PROCESSO DE DESLOCAMENTO NO FILME CARAMURU, A INVENÇÃO DO BRASIL, RUMO A UM “ENTRE LUGAR”

Ao assistir o filme Caramuru, a invenção do Brasil, de Guel Arraes e ao ler o livro Caramuru, de Frei José de Santa Rita Durão, pode-se levantar a seguinte questão: “De que maneira o filme Caramuru, a invenção do Brasil cita os processos de deslocamento do texto primário Caramuru, de Santa Rita Durão, rumo a um suposto entre-lugar”? Para este questionamento levaremos em consideração a questão do “entre- lugar” como síntese ou processo de negociação.

Para começamos a discutir sobre isso, precisamos retorna ao filme em que Diogo Álvares ao chegar a terra “descoberta” na Bahia através do naufrágio, encontra-se com os Tupinambás que querem comê-lo. Ao longo da narrativa fílmica, Diogo Álvares se torna chefe dos índios que o consagram como Caramuru, o Filho do trovão. Ao longo do filme, observar-se a tentativa de resgatar os valores da nação portuguesa. Para fazer isso, Diogo Álvares tanto no filme como no poema, narra a partir do seu olhar eurocêntrico em relação ao outro (o índio) do novo mundo. Embora, a visão do índio não é exposta no poema Caramuru em relação aos europeus (portugueses, espanhóis e franceses). Já no filme, além de mostrar o olhar etnocêntrico diante da terra “descoberta” e de suas belezas exóticas, expõe também o olhar do índio sobre o europeu como pessoa estranha, atrasada, ambiciosa a procurava de algo. O índio também é visto como estranho por Diogo Álvares. “O estranhamento” é iniciador das relações “extraterritoriais e interculturais [...]. Os recessos do espaço doméstico tornam-se os lugares das invasões mais intrincada da história. Nesse deslocamento, as fronteiras entre casa e mundo se confundem [...]” (BHABHA, 1998, 29-30). Nesse sentido, o indígena no filme é representado como pessoa esperta que também sabe negociar e fazer trapaças. Em um do tom bem humorado, o filme ainda é pautado num discurso aparente civilizatório, da mesma forma que as outras reescritas dessa história, encaminhando-o no “lá” e “cá”.

A partir disso, nota-se que o índio do filme é deslocado dos anos de 1.500 para os anos de 2000. O índio está vestido de uma nova roupagem, tem uma visão muito boa para negócios, não sendo o mesmo indígena descrito por Diogo Álvares no poema como: “infeliz”, “gente insana”, “devassos”, “cruel gente”, “feíssimos selvagens”, “gente tão nojosa”, “bárbaro ignorante”, “gente bruta”. Para contradizer estas características descritas no poema, o índio no filme é deslocado no tempo e no espaço da época colonial para as mudanças econômicas e culturais do século XX. É o “além que estabelece uma fronteira: uma ponte onde o ‘fazer-se presente’ começa porque capta algo do espírito de distanciamento que acompanha a re-colocação do lar e do mundo” (BHABHA, 1998, 29).

O tipo de negociação que o Cacique Itaparica e Dom Vasco fazem não é mais o escambo como era feito no início da colonização do Brasil. Mas sim, outro tipo de processo de negociação implantado no século XIX, o capitalismo, o qual é regido pelo liberalismo econômico permanecendo a exploração de mão-obra, visando cada vez mais lucros exorbitantes. Nesse sentido, o capitalismo está destinado a:

Ampliar e manter a submissão da franja periférica [...] amparada na predominância do capital financeiro e na sua capacidade de exacerbar a sua concorrência e produzir o monopólio. Daí a centralização e concentração do capital, impulsionando o aumento das escalas de produção, a formação de enormes massas sob o mesmo comando capitalista e alentando o surgimento das camadas parasitárias e rentistas (BELLUZZO, 2004, p. 42).

Isso é bem notório e representado quando Dom Vasco propõe a Diogo Álvares e ao Cacique Itaparica que ele gerencia “as vendas com exclusividade” e fica “com os lucros e em troca” os dois trabalham. “Quem ganha é o país que se desenvolve, gerando empregos, aumentando a circulação de mercadorias” (ARRAES, 2001). E ainda acrescenta com seu discurso bem capitalista e atualizado: “vocês não precisam pagar nada, nada por isso”, apenas que trabalhem “mais do que justo”. E Itaparica mais atento do que Diogo Álvares, pergunta ao Dom Vasco o que ele ganha para não trabalhar. Dom Vasco responde que ele ganha a “liberdade” em troca de alguns favores: apresentar-lhe a nova terra cheia de riquezas naturais e indicar o local dos metais preciosos que só os índios sabiam. De acordo com Roberto Schwarz:

Pode-se dizer que a colonização produziu, com base no monopólio da terra, três classes de população: o latifundiário, o escravo e o 'homem livre', na verdade dependente. Nem proprietários nem proletários, seu acesso à vida social e a seus bens depende materialmente do favor, indireto ou direto, de um grande. O agregado é a sua caricatura. O favor, é portanto, o mecanismo através do qual se reproduz uma das grandes classes da sociedade, envolvendo também outra, a dos que têm. Assim, com mil formas e nomes, o favor atravessou e afetou no conjunto a existência nacional, ressalvada sempre a relação produtiva de base, esta assegurada pela força (SCHWARZ, 2000, p.15,16).

Nesse caso, o índio representado pelo chefe Itaparica é o suposto “homem livre” que se encontra dependente. Em relação a Dom Vasco, podemos encaixá-lo como latifundiário caracterizado pela grande concentração desequilibrada de terras da Colônia. O índio representado por Itaparica está em pleno século XX, sendo ele, um grande negociador da terra brasílica. Esta é vista como se fosse um grande terreno para a construção de condomínios bem localizados e que o estrangeiro fica vislumbrado pela natureza e suas riquezas. O chefe tenta convencer Dom Vasco de que as terras do novo mundo são excelentes para se viver, crescer e enriquecer, onde têm florestas e muitos minérios e tem também lugar para estacionar. Segundo Itaparica: “o terreno é uma belezura, não tem maremoto, terremoto, furacão, nada disso, vista consolidada, tem cinco mil quilômetros de praia para criança e a localização, no meio do caminho para as Índias” (ARRAES, 2001). Diante disso, a visão do índio ingênuo, bruto, besta sai de cena para dar lugar a um novo índio para outro contexto que entra e sai da sociedade moderna. Assim,

As buscas mais radicais sobre o que significa estar entrando e saindo da modernidade são as dos que assumem as tensões entre desterritorialização e reterritorialização. Com isso refiro-me a dois processos: a perda da relação “natural” da cultura com os territórios geográficos e socais e, ao mesmo tempo, certas relocalizações territoriais relativas, parciais, das velhas e novas produções simbólicas (CANCLINI, 2008, p.309).

No filme de Guel Arraes, alguns trechos do poema Caramuru aparecem deslocados, onde tudo já aconteceu. E em que os temas históricos foram postergados para darem lugar a tentativa de atender as demandas atuais como: o deslumbramento do turista estrangeiro ao chegar ao Brasil ou ainda das empresas multinacionais que acham que o Brasil é terra de ninguém, onde tudo pode fazer e acontecer. Isso é notável no filme Caramuru, a invenção do Brasil, no momento em que o chefe Itaparica descreve para Dom Vasco o caminho para se chegar ao “Eldorado” perdido. A construção da personagem evidencia a diferença entre ambos, estando amarrada à idéia das diferentes ambições que norteiam a visão do branco e a do índio. Os europeus, em tudo viam sinal do metal procurado (o ouro) e o índio Itaparica além de negociar a terra basílica, negociava também bugigangas por apenas um real nas praias para os turistas estrangeiros ganhando um dinheiro extra como camelô. Percebe-se que tanto Itaparica como o processo de negociação são deslocados do século XVI (em que o índio nem se quer conhecia a pólvora) para os anos atuais demonstrando ser um bom ambulante de beira de praia e bom conhecedor da moeda brasileira do século XX, o Real. Nesse sentido, a vida colonial transgride a cada momento

No movimento da cidade, os interesses mercantis cruzam-se com os históricos, estéticos e comunicacionais. [...], são encenações dos conflitos entre as forças sociais: entre o mercado, a história, o Estado e a luta popular para sobreviver (CANCLINI, 2008, p.301).

Nesse caso, a velha forma de negociar, o escambo, praticado entre os colonos e os índios na Colônia, sai de cena dando espaço a “um empreendimento do capital comercial, e que portanto o lucro fora desde sempre o seu pivô. Ora, o lucro, como prioridade subjetiva é comum às formas antiquadas do capital e às mais modernas” (SCHWARZ, 2000, p.14).

Assim como acontece o deslocamento de Diogo Álvares de sua cultura e de sua nação para uma terra estranha (o Brasil) e para outra cultura, o deslocamento de Paraguaçu também ocupa lugar central, já que também em terra estrangeira, vimos uma indígena das terras brasílicas atravessa o oceano até chegar a uma Europa vislumbrada pela ambição do “Eldorado Perdido”, sabendo negociar muito bem em prol de seus interesses. Isso fica explícito, na cena em que Paraguaçu convence a Duquesa Isabelle de que ser amante é melhor do que esposa, e acaba comprando-a através da história do “Eldorado Perdido”, invertendo o antigo binômio colonizador-colonizado. Nessa cena é o colonizado que se sobrai ao colonizador, desmitificando a imagem de bestialidade que se fazia dos indígenas da nova terra. Parodiando o poema “Erro de Português”, de Oswald de Andrade, podemos dizer que foi uma manhã de sol e o índio (Paraguaçu) despiu o português (nesse caso a Duquesa Isabelle). Assim:

O gentil-homem [...] com diferentes recursos culturais e com objetivos históricos muito diversos, demonstram que as forças da autoridade social e da subversão ou subalternidade podem emergir em estratégias de significação deslocadas, até mesmo descentradas. Isto não impede essas posições de serem eficazes num sentido político, apesar de se sugerir que as posições da autoridade podem elas próprias ser parte de um processo de identificação ambivalente. De fato, o exercício do poder pode ser ao mesmo tempo politicamente eficaz e psiquicamente afetivo, pois a liminaridade discursiva, através da qual ele é representado, pode dar maior alcance para manobras e negociações estratégicas (BHABHA, 1998, p.206)

Deste modo, há uma fronteira entre o suposto mundo do indígena com o mundo dos europeus. E “uma fronteira não é o ponto onde algo termina, mas, como os gregos reconheceram, a fronteira é o ponto a partir do qual algo começa a se fazer presente” (BHABHA, 1998, p.19). Notemos no filme tais deslocamentos engendrados por seus personagens e lugares geográficos, lingüísticos e culturais do novo mundo com o velho mundo. Essa mistura de fronteiras opera não apenas como metáfora da realidade social brasileira. Mas trata-se ao mesmo tempo de um movimento econômico, social, cultural e geográfico pelo um país de um continente desconhecido como se a viagem pudesse propiciar a descoberta não apenas de uma nova cultura, de nova língua e de novos costumes de povos diferentes, mais também a busca de uma possível identidade.

REFERÊNCIAS:

ARRAES, Guel. Caramuru: a invenção do Brasil. 2001.

BHABHA, Homi K. O local da cultura. Tradução de Myrian Ávila, Eliana Lourenço de Lima Reis, Glaúcia Renate Gonçalves. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998.

BELLUZZO, Luiz Gonzaga de Mello. Ensaios sobre o Capitalismo no século XX; seleção e organização Frederico Mazzucchelli. São Paulo: Editora UNESP: Campinas São Paulo: UNICAMP, Instituto de Economia, 2004.

DURÃO, José de Santa Rita. Caramuru: poema épico do descobrimento da Bahia.

SCHWARZ, Roberto. "As idéias fora do lugar". In: Ao Vencedor as batatas: forma literária e processo nos incios do romance brasileiro - São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2000.

josuelene
Enviado por josuelene em 20/03/2013
Reeditado em 29/11/2013
Código do texto: T4198465
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