A PRESENÇA DO MITO E DA TRAGÉDIA GREGA NO CONTO “A BENFAZEJA”, DE GUIMARÃES ROSA

O conto “A Benfazeja”, de Guimarães Rosa, inicia-se com a descrição de uma mulher, apelidada de Mula-Marmela: “A mulher – malandraja, a malacafar, suja de si, misericordiada, tão em velha e feia, feita tonta, no crime não arrependida.” (p.176).

O narrador é observador, alguém de fora que analisa a trajetória de Mula-Marmela como guia de um cego apelidado Retrupé. Ambos, a velha e o cego, são pedintes, vivem de esmolas, são rejeitados, abominados, por todos os moradores do “lugarejo”.

A mulher é culpada por um crime, o assassinato do próprio marido, o Mumbungo, homem terrível, assassino cruel e sanguinário, pai de Retrupé. Os dois viviam bem, amavam-se, mas Marmela agiu em nome de uma causa maior: “A mulher tinha de matar, tinha que cumprir por suas mãos o necessário bem de todos, só ela mesma poderia ser a executora.” (p.180)

O narrador continua a observar, investigar e analisar a história da madrasta assassina, quem passa a cuidar, como se fosse mãe, deste cego. A narrativa insinua que a tal cegueira também foi provocada por Mula-Marmela, por meio de “venenos que ocultamente retiram a visão, de olhos que não devem ver” (p.182), ela fizera isso para neutralizar a crueldade hereditária, presente em Retrupé: o “filho tal-pai-tal” (p.179).

O conto termina com a tentativa de assassinato cometida por Retrupé contra Marmela. A mulher, enigmaticamente, não desvia dos golpes de faca emitidos pelo enteado, e mesmo assim ele não consegue acertá-la, depois da tentativa, arrependido, ele chora chamando-a de “mãe... Mamãe... Minha mãe!” (p.185) Após isso, a narrativa se encerra com o último feito de Mula-Marmela em favor desta causa maior, ela estrangula o próprio enteado, a quem cuidara como filho, e é expulsa do lugarejo como “bode expiatório”, mas suas ações devem ser contadas por gerações, pois todas foram “para livrar o logradouro e lugar de sua pestilência perigosa.” (p.187)

O conto remonta a estrutura da tragédia grega. Possui apenas um espaço: o lugarejo; um tempo: o presente da ação, pois os fatos passados são citados dentro desta linearidade do que está acontecendo; e uma única ação, trama única, os feitos de Mula-Marmela como aquela que pune, mas cura a ferida social presente em sua comunidade. A história suscita terror (o assassinato do marido e do enteado) e piedade (a sina de uma mulher que abriu mão do amor e do sentimento materno para o bem de todos, e não foi recompensada por isso, tornou-se bode expiatório).

O narrador se propõe a mostrar a dualidade dessa mulher, a outra face de benfeitora por trás de todos os crimes por ela cometidos.

A tragédia se inicia com o prólogo: a descrição do lugar e da personagem principal, aquela que vive “nos domínios do demasiado”, ou seja, ultrapassará limites socialmente aceitos para alcançar o bem maior.

O coro está presente na voz do narrador, quem tenta fazer com que as pessoas vejam a outra face de Marmela, e reconheçam seus feitos: “poderiam (todos) estar em tudo e por tudo enganados? (...) por aquilo, todos lhe estariam em grande dívida (...). Vocês nunca pensaram nisso e culparam-na (...) não a recompensaram (...). Deixem-na, se não a entendem (...). Saibam ver (...).” (p.177-184) Todas as cenas do conto estão permeadas pela presença do Parodo (entrada do coro), no decorrer do discurso do narrador.

Os episódios de desenvolvem desde a cena da Marmela e do Retrupé pedindo esmolas, o repúdio das pessoas, o medo que Mula-Marmela provocava em Retrupé, assim como provocara no pai Mumbungo, a tentativa de assassinato do enteado contra a madrasta.

O desfecho ou epílogo acontecem a partir do estrangulamento de Retrupé feito por Marmela, e a expedição do bode, ou a expulsão de Marmela do lugarejo.

A trama traz os elementos intrínsecos da tragédia. Mula-Marmela é marcada pela hybris, ela desafia as autoridades, pune seus transgressores para proteger todos os outros, ela “sentia por todos”. Marmela é vítima de um destino terrível (moira), ela não tem livre-arbítrio (amar/ ter família/ ser mãe), pois assume a condição de bode expiatório (pharmakós). Seu expiar demonstra o pathos, ou sofrimento intenso como consequência de seu destino, o narrador procura demonstrar isso para despertar a compaixão (éleos).

A anagnorise trágica ocorre quando Mula-Marmela reconhece a necessidade do último ato de expiação, o estrangulamento de Retrupé, a causa do phóbos: “Diz-se que ela teria lágrimas nos olhos; que falou, soturna de ternuras terríveis: - Meu filho. (...) ninguém entenderá nada, jamais (...) E ela ia se indo, amargã (...).” (p.186)

Neste ato, aparece também a némesis, a vingança dos deuses contra os atos ruins dos homens: “ele padecia de uma dor terrivelmente, de demasiado castigo, e uma sufocação medonha de ar (...) ela a Mula Marmela, no decorrer das trevas, foi quem enganou estranguladamente o pobre-diabo”. (p.186).

Por fim, a Catástase ou desfecho trágico:

quando ia partir, ela avistou aquele um cachorro morto, abandonado e meio já podre, na ponta-da-rua, e pegou-o às costas, o foi levando - : se para livrar o logradouro e lugar de sua pestilência perigosa, se para piedade de dar-lhe cova em terra, se para com ele ter com que ou quê se abraçar, na hora de sua grande morte solitária? (p.187)

Tal desfecho deve provocar a catarse, ou a reflexão purificadora, a purgação das emoções: “Pensem, meditem nela, entanto.” (p.187).

O conto “A benfazeja” revisita as tragédias de Sófocles e Ésquilo, as trilogias: Tebana (Édipo Rei; Antígona; Édipo em Colono); e Oréstia (Agamêmnon; Coéforas; Eumênides).

Mula-Marmela pode ser associada à Esfinge – A estranguladora. Marmela assassina Retrupé estrangulando-o.

A rainha Jocasta, em Édipo Rei, suicida-se por enforcamento. A presença tipo de morte expiatória é comum nas tragédias gregas. Na segunda peça de Ésquilo, Coéforas, o príncipe Oréstes, de Micenas, vinga a morte de seu pai, o rei Agamêmnon, degolando sua mãe, assassina do marido.

Marmela também é associada às deusas Erínias, deusas virgens, violentas e de aspectos disformes que tinham por função punir crimes cometidos entre consanguíneos. Tal punição trazia a purificação da comunidade, que era assolada pela ira dos deuses causada por tais crimes, por conta disto, elas serão chamadas Eumênides, ou as deusas benfazejas, pois traziam salvação aos homens.

Entre as referências ao mito de Édipo encontramos no conto: (Marmela) “sentia por todos”, tal como Édipo: “eu padeço as dores de toda a cidade”. Retrupé, “sem adiante”, também faz referência a Édipo, o que se arrasta por causa dos pés inchados, quem sofre por uma maldição hereditária oriunda de Laio, seu pai. Da mesma maneira, Retrupé herdou a “maligna índole” de seu pai Mumbungo. (p.181).

O conto traz uma ideia constante em Édipo Rei, a necessidade de ver, de entender ou decifrar os fatos: “Saibam ver como ela sabe dar desgraça a si (...) a gente não consegue nem persegue os fios feixes dos fatos (...). A luz é para todos (...) a gente gosta de aceitar essas simples, apaziguadoras suposições.” (p.184)

Assim como Atena, em seu discurso persuasivo, tenta legitimar os atos das Eumênides, tornando-as deusas benfeitoras, o narrador, no conto roseano, procura legitimar os atos de Marmela, para mostrar a face dúbia punitiva e purificadora da heroína trágica: a benfazeja.

Referências

ROSA, João Guimarães. Primeiras Estórias.15ªed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.

SANTOS, Adilson dos. A atualização de Eumêmides, de Ésquilo, em “A Benfazeja”, de Guimarães Rosa. São Paulo: Todas as Musas, 2011. Disponível em: http://www.todasasmusas.org/05Adilson_Santos.pdf. Acesso em 20 de março de 2013.

SÓFOCLES. Édipo Rei & Antígona. Trad. Jean Melville. São Paulo, Martin Claret: 2005.

Priscila Caetano
Enviado por Priscila Caetano em 28/03/2013
Código do texto: T4211325
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