Febril
E se eu morresse hoje
ficariam saudades eu sei
mas se existe céu
será que é para lá que eu iria?
Quero crer que exista
insisto em acreditar em Deus
pois alguém tem que ter criado tudo isso
e como abandonar isso tudo
se eu morresse amanhã de manhã?
E se eu dormisse e não acordasse mais?
E se eu apenas um vulto
ainda vagando pelo quarto
assistisse a falta que faço
a dor que causo
o desespero em todos
e não pudesse fazer nada?
E se eu tentasse cochichar
ao ouvido de cada um
e sentisse que não era ouvido?
E se eu tentasse dizer que a minha sensação
era maior que a saudade causada
e todos fossem indiferentes ao meus apelos?
E se um vento frio
me erguesse da cama eu que eu dormira
e me soprasse do quarto que sempre fora meu?
Se como um fantasma atravessasse a parede
e me visse lá inerte?
Eu morto, que absurdo!
E eu que fizera tantos planos...
e para onde eu iria
para o céu
ou para o céu-da-boca-da-onça
como as crianças do meu tempo
costumavam dizer?
Será que entre o que fiz em vida
de bom e ruim
o saldo seria positivo
ou não?
E subindo, subindo
leve como uma folha solta ao vento
mesmo antes que fosse sepultado
sem saber ainda para onde seria levado
tendo nascido e morrido
sem entender o mundo
sem concordar com a maioria
sem mesmo até saber
porque é que eu tinha vindo
mas eu ia
para onde, como e quando
eu não sabia.
Mas eu subia
subia, subia e percebia
que as respostas estavam por vir.
Jatos cortavam o ar
me atropelavam e eu nada sentia
pois só se morre uma vez.
Eu que nunca acordara
com o frio dos mendigos pelas sarjetas
nas longas noites de inverno em que vivi
mas no aconchego entre quatro paredes
sob grossos cobertores
o que fizera eu para mudar tal situação?
Eu que sempre achara o mundo meio louco
as pessoas egoístas em excesso
mas no entanto
muito embora eu sempre me tenha recusado a ver
eu também era um dentre milhões
pois morri numa cama confortável
quando muitos não tinham onde dormir.
Não sei se fora do coração
ou se do pulmão
mas eu fumava
e um pão custava bem menos
mas eu preferia enfumaçar o ar.
E as guerras então?
Sempre achara estúpido tudo aquilo
mas estiveram sempre em dia os meus impostos
e com eles mantinham os exércitos
testavam novas armas
estocavam os arsenais
e eu ali passivo, pacífico
matando por tabela eu sei.
Já não dava para distinguir bem o mundo
era uma bola solta no espaço
envolvida num manto branco
sozinha num imenso azulão
quase que insignificante
quando vista de tão de cima.
E agora eu entrava num corredor
e no fim dele uma escadaria milenar
com as marcas dos pés de todos
que por ali passaram
e em cada degrau uma silhueta
uma esfarrapada, outra mutilada
dentre tantas outras sofridas
e eu perfeito em minha forma.
Os anjos não eram anjos
eram crianças coreanas
com um pássaro em cada mão.
De repente tocam os sinos
e eu me recordo da igreja
do meu antigo bairro que era pobre
e que de tão pobre
nunca me inspirou orar ali.
Chora um órgão e eu quase que choro também
porque ainda choram na Terra
milhões de crianças abandonadas
e quem as abandonou não sabe
e nem se comovem
os que não foram abandonados nunca.
Soa uma trombeta num canto qualquer
e assim sem mais nem menos
me lembro do massacre no Vietnã
e eis que surgem num trovão
japoneses vítimas da primeira explosão nuclear
mas todos estão tão serenos
porque ali o bem sempre triunfará.
Abre-se uma porta
rangendo como quem agoniza só
e sem que eu perceba estou num salão vazio.
Ouço passos também o som de harpa
se aproximam rostos calados
brancos, negros e índios
irmãos russos e americanos
em total harmonia
e em pouco somos um círculo
sentados mesmo no chão
e no centro uma luz que não ofusca.
Sempre é dia
o tempo não conta
não contam as horas
e nem contam as posses.
A ceia de minha chegada
no que julgo ser o céu é pobre
de valor só o amor.
Nenhum contato com os vivos
e de lá só desejo que vivam
os que um dia foram meus.
Lágrima não faz sentido
se o peito é mais forte que a dor
porque morrer é uma consequência natural
e a eternidade depende de cada um.
Lá só vultos e gestos.
Ninguém fala, só sorri.
Depois do pão repartido
vinho servido e bebido
cada um falou um pouco de mim
cada qual falou de si
e em pouco sou um deles
e todos são parte de mim.
Só existe céu ou inferno
quando se quer
pode-se ignorar tudo
e simplesmente não existir.
O mundo lá embaixo é um jogo
para se revelar vocações
se mata ou se morre
se ri ou se chora
se ama ou se odeia
com a mesma intensidade
e com a idade do mundo
já se fez mais mal do que supúnhamos.
Depois de passada a febre
algo me diz
que no céu não havia Deus algum
simplesmente
somos uma pequena parte Dele
e Ele
uma grande parte de cada um.