Quem não for egoísta, atire a primeira pedra.

Certa vez escrevi o seguinte aforismo:

“Há três tipos de homens: os egoístas; os dissimulados, que escondem seu egoísmo e os ingênuos, que acreditam no altruísmo, tanto próprio, quanto alheio.”

Evidentemente, tratava-se de uma provocação. De fato, a frase sugere que, em primeira instância, qualquer ação humana é regida pelo egoísmo, mesmo aquelas aparentemente mais puras. Entretanto, sugere isso de maneira hiperbólica. E pelas respostas que obtive, creio que o exagero da frase não fora bem absorvido.

Como li tempos atrás, “toda generalização é metafísica”. É óbvio que não é lícito reduzir ao egoísmo toda e qualquer atitude humana. Contudo, é possível fundamentar minimamente a proposição supracitada. E para tal, sugiro pensarmos em quatro sentimentos que, em princípio, seriam antagônicos ao egoísmo: humildade, caridade, vontade de ter filhos e amor conjugal.

Comecemos com a humildade. Para ilustrar esse sentimento, nada mais pertinente do que destacar uma lição do mais humilde dos homens. Jesus ensinou aos seus seguidores que apresentasse a outra face ao tapa inimigo (Lucas 6:29). Muitos pensadores dizem que tal ato nada tem de elevação moral. Ao contrário: não passaria de uma grande afirmação egóica. Ao sugerir que a vítima ofereça a outra face, Jesus estaria, implicitamente, impelindo os agredidos a demonstrarem sua superioridade. Em última instância, tratar-se-ia de uma atitude arrogante. Outro exercício interessante é pensarmos naquelas pessoas que temem ressaltar as próprias qualidades, mas esperam ou até suscitam elogios alheios. E o que dizer, então, daqueles que asseveram que seu principal defeito é “não saber dizer não”?

Partamos para a caridade, sentimento que as religiões (principalmente a católica) tanto pregam. Com efeito, é inegável que, mesmo para aqueles menos emotivos, ver um ser humano sofrendo é uma experiência dolorosa. Assim sendo, se a ajuda ao “sofredor” estiver ao alcance de quem observa, este ajudará aquele. Contudo, cabe uma indagação: por que, em geral, alguém faz caridade? No dicionário, a definição de caridade é clara: uma ação altruísta de ajuda a alguém sem busca de qualquer recompensa. Mas, perscrutando além da superfície, é impossível afirmar que não haja recompensa e que tal ato seja prioritariamente em prol do outro. Em essência, quem ajuda faz por si; para se sentir melhor, mais humano; para tornar mais suportável a própria "consciência". Quantas vezes não ouvimos frases como: "Me sinto tão bem ajudando o próximo!” Além do mais, vale ressaltar que muitos praticam a caridade com o intuito de construir uma imagem social adequada às suas pretensões ou para adubar seu terreno no Paraíso.

Pensemos agora no impulso que leva o homem a gerar descendentes. Parece absurdo, mas, mesmo ter um filho, pode ser vislumbrado como um perversão egoísta. Por quê? Sob o ponto de vista vital, procriar é uma necessidade de conservação e perpetuação da espécie. Mas como seres racionais e sociais, os homens transferem essa necessidade para o âmbito moral. Primeiro quando concebem o filho como objeto, produto ou motivo de afirmação dos próprios feitos. O filho é um troféu: “meu filho só tira notas boas”; “minha filha é a melhor do balé” (o uso enfático do pronome possessivo é digno de nota). Segundo quando acreditam que ter filhos é fundamental para a satisfação pessoal ou pior, para “dar sentido à vida”, como já ouvi por aí. Terceiro quando resolvem ter um filho para “realçar” ou “ressuscitar” a felicidade matrimonial. Sob todos esses ângulos, o filho é um meio e não um fim em si mesmo. Isso fica mais evidente ao pensarmos que pouquíssimas pessoas perguntam-se algo como: eu tenho o direito de colocar uma vida no mundo, nesse mundo? Naturalmente, aqueles que “precisam ter filhos” esquecem-se que a imagem da “família feliz” foi construída na modernidade. Entre os gregos antigos, por exemplo, não existia a noção de família nuclear como hoje; os filhos eram da e para a polis.

Por fim, falemos do mais nobre dos sentimentos. Com a ajuda do filósofo alemão Immanuel Kant, pensemos, especificamente, sobre o amor conjugal. Com a sua teoria do conhecimento, Kant demonstrou que o homem é incapaz de conhecer as coisas em si mesmas, ou seja, a essência dos objetos e das pessoas. O máximo que conseguimos é captar através dos sentidos o objeto que nos é apresentado. Portanto, vemos não o objeto em si, mas a representação que nós criamos desse objeto. Seguindo essa linha de raciocínio, quando amamos alguém, nada mais fazemos do que amar uma imagem que nós criamos daquela pessoa. Filosofias à parte, vale pensar que por mais que se "entregue " ao outro, no fim das contas, faz-se isso para satisfazer os anseios da pessoa amada e, com isso, minimizar as chances de sofrer com a perda desse amor.

Para evitar interpretações distorcidas, faço mais duas ressalvas: esse artigo não se baseia em qualquer metodologia científica. Portanto, com as situações acima pontuadas, não pretendo forjar uma natureza humana. Depois, destaco que essas ações ou sentimentos não são orientados exclusivamente pela consciência. Por isso, os apontamentos parecem não permear o nosso dia-a-dia. Todavia, basta refletirmos com cuidado, abrindo mão dos dogmas herdados socialmente, que muitas dessas cogitações farão o mínimo de sentido.

Desse modo, com o espírito tomado de tal predisposição, podemos retomar o aforisma inicial e concluir que agora existem apenas duas opções: ou assumir o egoísmo ou assumir a dissimulação. Afinal, depois destas mal traçadas linhas, creio que a ingenuidade não pode mais cumprir o papel de muleta.