ESPERAR, ESPERANÇA, CRISE E DEGENERESCÊNCIA

Ficava à espera de outra frase, de uma palavra, da última palavra. Mesmo que não fosse a última. Mas qualquer palavra pode ser a última. Escrever é esperar, o sentimento perfeito da espera. Escrever e sentir que cada instante é uma espera. Vamos. Inventamos palavras e olhamos. À espera. Do nada. A varanda da casa de portas abertas. Por onde pode entrar o vento e um pó fino, invisível. A luz coalhada em círculos, a luz pendurada na sua sombra, ouço a sombra. Escrever é inventar, inventar a espera, não do que aguarda a possibilidade de se exprimir, mas algo contrário, a realização do imponderável, uma margem exterior que apenas, de facto, se exprime ao exprimir-se. Fazer da palavra um jogo que incorpora múltipos sentidos e estilhaça – até onde for possível - qualquer referência. Saber escutar o que é difícil escutar, fixar esse inaudível, as formas lúcidas do invisível, aquela dobra que se oculta na superfície. A literatura é sempre a espera do que ainda não existe. Determinar que a sombra perdure, revogar, num ímpeto, as regras da linguagem - regras que procuram fixar um poder, uma espécie de interioridade que confere à palavra uma ilusória vocação espelhar. A imposição da palavra como imposição ética, a manipulação da palavra como manipulação da essência do real, é a visão tutelar do que se fez verbo, manifestação totalitária que sufoca toda a espera, que oblitera a criatividade. Este é o projecto que urge inverter. Esperar não é ter esperança, esperar nega a esperança, a simples presença desta incomoda, teríamos a "realização realizada" do previsto, a banalização “do que é”, a norma “do que deve ser”. Talvez a própria esperança encerre em si uma contradição – quem pode esperar do futuro a repetição do presente que já é futuro?

Encontrar na espera a verdadeira sabedoria, só a arte garante essa faculdade. Ela nega toda a esperança, inscreve o acidental, o acaso, a linha no limite, o exterior, o abismo, o nada, o pó fino, a abertura, o pássaro que sou eu, a árvore que escreve, a noite velando a solidão, as emoções da estrada ao ouvido do mar, a paisagem branca de um lugar possível...

Esperar pelo que não há, desde logo, não reconhecer nenhuma Essência, nenhuma Esperança, nenhuma Verdade, nenhum Verbo.

O ideal seria ao escrever inventar uma língua, uma linguagem, um mundo, uma realidade. As utopias são a expressão de um excesso, um pormenor descritivo que anulou todas as possibilidades de esperar, daí essa hipótese da esperança poder ser terrível. Penso que a literatura pode ensinar a política, ao permitir construir sempre novas linguagens e elucidar que nenhuma é definitiva ou sem alternativa. A literatura, isto é, a arte em geral. O que pertence ao domínio dos juízos estéticos faculta uma espera sem esperança, o que significa "novos mundos de fazer mundos". A religião é, por excelência, a tradução de uma promessa, a verdadeira esperança, contrária às forças afirmativas da espera, por isso, a mais totalitária de todas, imperativa, sem saída, bloqueadora da criatividade, antítese absoluta da arte. Dela parte o convite perfeito ao alheamento, à alienação do mundo, a um solipsismo de ressentimento e remissão. O conteúdo religioso é uma manifestação de decadência, transformado por todos os poderes, individuais e colectivos, em recurso de sobrevivência.

O mundo em crise é uma nova categoria inventada para dissimular algo que não convém aprofundar. Fala-se de uma doença para esconder a epidemia, descrevem-se sintomas para elidir a degenerescência do quadro holístico onde a narrativa da crise se forma nos seu dispositivos próprios de expressão.