Mais sobre os costumes

Anos atrás li um texto chocante e bastante conhecido de Manuel Bandeira sobre um bicho imenso chafurdando no lixo. Horrorizado como o autor, o leitor descobria tratar-se de um bicho homem, absurdamente escorraçado para tal situação.

Depois fomos nos acostumando com o fato, passamos a achar normal que alguns semelhantes vivessem revirando as lixeiras como cães vadios, ou disputassem despojos nos lixões com ratos e urubus.

Também lembro como me horrorizei com um programa da globo no qual os apresentadores enalteciam a situação aviltante, elogiavam o meio de vida dos catadores de lixo, sua condição, seus préstimos. Tinham sorte os espectadores pela possibilidade da televisão transmitir exclusivamente sons e imagens, impedindo o fedor local de invadir suas casas, juntamente com a profusão de moscas a se deleitar com toda a porcaria.

Mas podemos nos acostumar com qualquer coisa, e passamos a aceitar as propagandas de reciclagem, a considerar natural a presença de famílias inteiras vasculhando os lixões, vivendo na imundície. Agora homens urubus nos parecem naturais.

Recentemente, uma nova questão me chocou; choques assim são gerados apenas pelas descobertas, depois vem o costume.

Meu pai era médico, de modo que, naturalmente, defendi a categoria desde criança, repetindo argumentos que ouvia em casa. A questão dos médicos estrangeiros me pegou de outra maneira, não a tratei sob o ponto de vista do costume, mas pelo da razão, fato que me deixou bastante envergonhado.

O ponto de partida da enorme celeuma foi a notória falta de médicos por todo o interior do país. Deveria nos chocar o fato de, em pleno século XXI, existir cidades desprovidas de ao menos um médico. O absurdo deveria ser gritante: é impensável manter, em nossos tempos, imensas populações alijadas da possibilidade de tratamento médico, distantes centenas de quilômetros dessa eventual necessidade.

A inexistência de médicos em muitas localidades deveria causar espanto e gerar de imediato a urgência em corrigir a situação inaceitável. Assim, na impossibilidade de conseguir atrair médicos brasileiros para tais localidades, a tentativa de trazer estrangeiros para suprir carência tão absurda deveria ter sido encarada com naturalidade e aplaudida. Surpreendentemente, ocorreu, no entanto, uma gritaria geral. À beira da histeria, inúmeros médicos vociferaram fortemente contra a medida, repudiaram com veemência a vinda dos estrangeiros tentando barrar-lhes a entrada por diversos meios. Fiquei envergonhadíssimo por eles, com o papelão impudico que vinham fazendo.

A razão do repúdio é bastante óbvia, a carência de profissionais no setor valoriza os escassos profissionais da área; as consequências, no entanto, causam profundo desgosto: em defesa de certas vantagens pessoais, condenam várias populações à impossibilidade de tratamento médico. Tentaram disfarçar suas razões mesquinhas levantando suspeitas quanto às capacidades dos estrangeiros. A solução do impasse era extremamente simples, bastaria aplicar a todos os profissionais, os daqui e os de longe, AS MESMAS provas, os mesmos testes de qualificação, as mesmas exigências. Teria havido consenso pela desqualificação de profissionais incapacitados. Os médicos exigiam, no entanto, um teste especial aplicado UNICAMENTE aos estrangeiros. Uma completa vergonha!

Mas nos acostumamos com qualquer coisa.

Também lembrei de uma outra questão surpreendente. Uns anos atrás, ficamos estarrecidos com a descoberta de que, no oriente, comiam-se cachorros, esses bichinhos que criamos como animais de estimação, um horror! Mas costumamos ver com absoluta naturalidade a criação de bois e de outros animais para o abate. Imagine se não estivéssemos acostumados com tais fatos. Que criaturas sórdidas cuidariam de uma criação com o intuito de devorá-los!