Ensaios com Montaigne - Por que criar?
“Logo que uma coisa qualquer muda de maneira de ser, disso resulta imediatamente a morte do que era antes.”(Lucrecio apud MONTAIGNE, ENSAIOS)
Quem sou eu? Quem é você? Quem é ele? Quem é tu? Quem sois vós? Quem são eles? Fiquemos com o eu, para não nos sobrecarregamos desnecessariamente, visto que o eu está em todos os outros. Montaigne, já dizia: conversemos com apenas um ser humano e nele, já encontraremos o Ser, a condição humana nua diante de nossos olhos, a sua “passagem”. Talvez, seja melhor abraçar apenas uma concretamente, carnalmente, do que ilusoriamente, fantasticamente, o mundo inteiro:
“Tenho apenas duas mãos
e o sentimento do mundo,
mas estou cheio escravos,
minhas lembranças escorrem
e o corpo transige
na confluência do amor.”
Quando me levantar, o céu
estará morto e saqueado,
eu mesmo estarei morto,
morto meu desejo, morto
o pântano sem acordes.
Os camaradas não disseram
que havia uma guerra
e era necessário
trazer fogo e alimento.
Sinto-me disperso,
anterior a fronteiras,
humildemente vos peço
que me perdoeis.
Quando os corpos passarem,
eu ficarei sozinho
desfiando a recordação
do sineiro, da viúva e do microcopista
que habitavam a barraca
e não foram encontrados
ao amanhecer
esse amanhecer
mais noite que a noite.”
Já viu alguém tirar um eu de uma cartola e colocá-lo sobre a mesa? Seria esse eu, uma cebola como pensou Pascal, uma cebola artificialmente edificada sobre o nada, para que pudéssemos nos esquecer de que somos pó, e não sermos atormentados pela ideia de que somos insuficientes, frágeis? Luiz Felipe Pondé bate na tecla de que se tiramos um vício de um homem ele cairá de quatro, imagine, então, se ele perder todas as roupas que sustentam a ideia que tem de si? O que fará? Buscará as mesmas roupas? Tentará viver sem elas?
Conta-nos Montaigne uma história de um homem de condição elevada, que ao passear pelas ruas, num inverno rigoroso, deparou-se com um mendigo sem roupas, e no entanto estava feliz, sem apresentar qualquer sofrimento diante dos ventos cortantes. Questionado a respeito do porque estava sorrindo diante da sua situação, respondeu com outra pergunta: Por que você está com a cabeça descoberta, sem se importar com isso? E completou: todo o meu ser, é como se fosse a sua cabeça careca.
“Os olhos são testemunhas mais acuradas que os ouvidos”. Eis uns dos maiores convites à sabedoria, feito por Heráclito. Como poderei renascer, escrever um novo livro na minha história, fazer novas descobertas se não me desembaraçar de todos os filtros, calculadoras, termômetros e lupas que uso para ver e viver? Parafraseando o filósofo do devir, diria que a cada passo que dou sem um compasso e uma régua o mundo pode ser reinventado:
“Há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas, que já tem a forma do nosso corpo, e esquecer os nossos caminhos, que nos levam sempre aos mesmos lugares. É o tempo da travessia: e, se não ousarmos fazê-la, teremos ficado, para sempre, à margem de nós mesmos.”
O que mais posso costurar por aqui para encerrar o meu devaneio, e fechar as cortinas do meu ensaio? Só a música “Experience” do Ludovico Einaldi pode lhe dizer: http://www.youtube.com/watch?v=hN_q-_nGv4U&hd=1