Ensaios com Montaigne - Vamos ser?

"Cuidamos das opiniões e do saber alheios e pronto; é preciso torná-los nossos. Nisso nos parecemos com quem, necessitando de lume, o fosse pedir ao vizinho e dando lá com um esplêndido braseiro ficasse a se aquecer sem pensar em levar um pouco para casa. Que adianta ter a barriga cheia de comida se não a digerimos? Se não a assimilamos, se não nos fortalece e faz crescer!"

Certo dia, ouvi o filósofo Luiz Felipe Pondé dizer, em um café filosófico, que na academia de filosofia, ou no universo intelectual, os alunos e intelectuais são ensinados a ter preconceito contra a cultura de massa, a saber, tudo o que faz “sucesso” para o “povo”, sendo o melhor exemplo para esse caso, a fama de Michel Teló por sua obra “Ai se eu te pego”.

Quantas vezes já ouvimos críticas a respeito dessa música, tanto no meio dos intelectuais, como no meio dos moralistas - não os sábios franceses ou inspirados por ele, mas os de quinta categoria -, do tipo: é uma música que não acrescenta em nada, essa música é um sinal do fim dos tempos, da decadência cultural e coisas do gênero. Venho aqui, defender a causa da utilidade da cultura de massa, não somente para a cultura de massa, mas para a cultura intelectual.

Sendo mais claro, a crítica que se faz com relação ao valor de uma obra vinda da cultura de massa é limitada, porque não enxerga o toque de sabedoria que pode acrescentar na vida das pessoas. Trago, aqui, uma cena da novela "Amor à vida", cena esta, que com apenas algumas palavras pode se equiparar a uma tese de doutorado sobre a mercantilização da vida em Adorno. Na cena, uma vendedora de hot dogs, ao ver o início da concretização do seu sonho, a saber, conseguir que sua filha se casasse com um milionário, depois dele pedir a sua filha em casamento, diz mais ou menos o seguinte: agora não teremos mais problemas na vida, riremos a toa, porque rico não tem motivo pra chorar. Tal pensamento, reproduziu o que foi dito para ela e sua filha, pelo milionário, quando ele sugeriu que ela deixasse de vender hot dogs, para ter uma vida boa, sem precisar esquentar a cabeça com o trabalho, lutando pela sobrevivência. Ora, tais pensamentos, não nos mostram por A+B, qual é o espírito do nosso tempo, como diria Hegel? Ou melhor, como disse Nietzsche, em "Assim falava Zaratustra", a respeito do último homem? Aquele que inventou a felicidade, mas se esqueceu que ela foi inventada? Aquele que acredita que uma vida boa é uma vida sem perigo, sem dor, sem sacrifício, e o trabalho apenas uma distração? Aquele que quer o que todo mundo quer? Aquele que é igual a todo mundo? Aquele é louco quem pensa diferente? Aquele que tem tanto o seu "prazerzinho" como o seu "veneno para o dia e para a noite", mas que, apesar de tudo, "venera a saúde"?

E se Epicuro estivesse entre nós, será que ele adotaria a cultura hedonista contemporânea? Com certeza, não, porque ele não era tolo como os homens modernos, para acreditar que, quanto mais bens e riqueza conquistasse, mais felicidade "possuiria" - enquanto crê que mais feliz seria -, porque na realidade, quanto mais dependência o ser cria para si mesmo em coisas que estão fora dele, mais escravo - no sentido de se limitar a existências e a experiências delimitadas, recortadas - ele se torna dessas coisas, e portanto, é possível afirmar, que a paz do homem moderno é fugaz na medida em que depende de novidades. "Ser moderno é fazer parte de um universo no qual, como disse Marx, “tudo o que é sólido desmancha no ar”. As pessoas que se encontram em meio a esse turbilhão estão aptas a sentir-se como as primeiras, e talvez as últimas, a passar por isso".

"Tem dias que a gente se sente como quem partiu ou morreu".

"De todas as coisas existentes algumas estão sob o nosso poder e outras não. Debaixo do nosso poder estão o pensamento, o impulso, a vontade de adquirir e a vontade de evitar e, numa palavra, tudo que resulta das nossas ações. As coisas que não estão sob nosso

poder incluem o corpo, a propriedade, a reputação, o cargo e, numa palavra, tudo aquilo que não resulta das nossas ações."

Ainda não terminei de dizer, o porque a cultura de massa pode ser relevante para nós. O que é mais importante analisarmos, no caso da cena da novela apresentada, é o como é apresentada, o como os ideais do nosso tempo são mostrados. Se fossem apresentados, assim como os comerciais o pintam, logicamente, só reforçariam a ideologia como diria Adorno, mas, contraditoriamente - ou não - e escrachadamente, são apresentados com ironia e deboche - e de forma crítica -, visto que as personagens Tete para-choque para-lama (Márcia, ou vendedora de hot-dog) e sua filha Valdirene, podem ser vistas - dentre os pontos de vista que podemos escolher - como bobas da corte na novela, e significando o quanto é cômico o pensamento hedonista atual.

Tal perspectiva, nos leva para a importância de, tanto os chamados intelectuais, professores, como pais, mães, filhos ou qualquer pessoa que ainda pense nesse mundo, refletirmos sobre as imagens que vemos diariamente, sobre os seus significados, sentidos, e principalmente sobre as referências que nos dão.

O belíssimo filme “Indiferença”, "O substituto" ou no título original "Detachment", nos mostra o porque é indispensável uma conversa desbanalizadora entre as pessoas. Um professor substituto, que tinha como filosofia de vida não criar nenhum vínculo com pessoas, com escolas, e muito menos com alunos, descobre, ao simplesmente ver e ouvir as pessoas - de verdade, prestando atenção -, que tanto os alunos, como seus pais e os professores não são vistos e ouvidos por ninguém; que ninguém está disposto a saber o que pensam da vida, quais são os seus problemas, seus sonhos, ideais. Descobre que as pessoas parecem não perceber que principalmente os jovens estão perdidos, sem referências para seguir um caminho, e por conta disso acabam se tornando niilistas, louvando do "nada" ao absurdo", se rebelando contra o mundo, contra os valores dos professores, pais, fechando seus olhos e ouvidos também para eles, justamente porque não existe uma mediação entre eles. Mas como poderá haver mediação se não há uma linguagem comum para comunicação? Fica a questão!

"Trata-se de um holocausto, 24 horas por dia, para o resto de nossas vidas, a energia que movimenta trabalham arduamente no nosso emburrecimento até a morte. Então, para nos defendermos e pelejarmos contra esse processo de emburrecimento de nosso pensamento precisamos aprender a ler para estimular nossa própria imaginação; cultivar nossa própria consciência, nosso próprio sistema de crenças. Todos nós precismos desta habilidade para defender, preservar nossas vontades próprias."

"Mas as pessoas da sala de jantar

Mas as pessoas da sala de jantar

Mas as pessoas da sala de jantar

Mas as pessoas da sala de jantar

Mas as pessoas da sala de jantar

Essas pessoas da sala de jantar

São as pessoas da sala de jantar

Mas as pessoas da sala de jantar

São ocupadas em nascer e morrer..."

"Ser ou não ser, eis a questão: será mais nobre

Em nosso espírito sofrer pedras e setas

Com que a Fortuna, enfurecida, nos alveja,

Ou insurgir-nos contra um mar de provocações

E em luta pôr-lhes fim? Morrer.. dormir: não mais.

Dizer que rematamos com um sono a angústia

E as mil pelejas naturais-herança do homem:

Morrer para dormir… é uma consumação

Que bem merece e desejamos com fervor.

Dormir… Talvez sonhar: eis onde surge o obstáculo:

Pois quando livres do tumulto da existência,

No repouso da morte o sonho que tenhamos

Devem fazer-nos hesitar: eis a suspeita

Que impõe tão longa vida aos nossos infortúnios.

Quem sofreria os relhos e a irrisão do mundo,

O agravo do opressor, a afronta do orgulhoso,

Toda a lancinação do mal-prezado amor,

A insolência oficial, as dilações da lei,

Os doestos que dos nulos têm de suportar

O mérito paciente, quem o sofreria,

Quando alcançasse a mais perfeita quitação

Com a ponta de um punhal? Quem levaria fardos,

Gemendo e suando sob a vida fatigante,

Se o receio de alguma coisa após a morte,

–Essa região desconhecida cujas raias

Jamais viajante algum atravessou de volta –

Não nos pusesse a voar para outros, não sabidos?

O pensamento assim nos acovarda, e assim

É que se cobre a tez normal da decisão

Com o tom pálido e enfermo da melancolia;

E desde que nos prendam tais cogitações,

Empresas de alto escopo e que bem alto planam

Desviam-se de rumo e cessam até mesmo

De se chamar ação."

Fontes:

Filme "Indiferença" completo: http://www.youtube.com/watch?v=PazIt256aNw&hd=1

Café Filosófico, A castidade impossível e a luxúria maldita, Luiz Felipe Pondé:http://www.cpflcultura.com.br/2013/04/29/a-castidade-impossivel-a-luxuria-maldita-com-luiz-felipe-ponde/

Panis et Circences - Marisa Monte: http://www.youtube.com/watch?v=VPN4lwVcZLo&hd=1

Roda viva - Chico Buarque: http://www.youtube.com/watch?

v=HRFw5u5wR4c&hd=1

Amor à vida, Walcyr Carrasco

Ensaios, Michel de Montaigne.

Assim Falava Zaratustra, Friedrich Nietzsche

Indústria Cultural e Sociedade, Theodor Adorno

Tudo o que é sólido desmancha no ar, Tudo o que é sólido desmancha no ar - A aventura da modernidade

Hamlet, Shakespeare