Sobre ser professor

Acordo e são seis da manhã. Havia dormido tarde, tive que fazer um cansativo trabalho de análise musical. Recebo uma ligação da veterinária que está com meu gato, ele está sofrendo, talvez tenha que ser sacrificado. Engulo essa notícia e espero a lucidez do dia motivar alguma decisão. Lembro das ocasiões de estudo em que meu gato Sheldon curtia comigo, dos abraços que ele me dava logo pela manhã e senti saudades dos momentos de descuido em que, terrivelmente, ele lambia meu rosto.

Minha primeira aluna quis fazer aula às oito da manhã. O nome dela é Laura, tem seis anos e muita vontade de aprender música. Não consegue fazer as notinhas no piano sem cantá-las e, por um lado, isso é excelente e afinadíssimo. Lembro das sinfonias que Mozart compunha em sua infância e me sinto responsável por aquela criaturinha chamada Laura. Isso me deixa feliz. Quase esqueço que devo decidir o futuro do meu gatinho, ele deve estar sofrendo. Uma sequência prazerosa de aulas ocorre até o meio dia, alguns alunos contando sobre seus problemas, frustrações e felicidades. Me sinto importante por ser confidente, atencioso... sou um professor.

Não tenho tempo de almoçar. A veterinária liga de novo, diz que devo tomar uma decisão, Sheldon está sofrendo. Algo me diz que não devo desistir, que meu gatinho pode aguentar um pouco mais e que devo esperar mais um pouco, o dia deve passar e amanhã, certamente, tirarei folga e resolverei tudo isso.

Meu próximo aluno é pela uma da tarde. É uma reposição de horário, uma aula que ele não pôde fazer por motivo qualquer. Reposição me irrita. Mas minha aula deve ser boa! Lembro de Sociedade dos Poetas Mortos, tenho que ser o Capitão, não devo ser catedrático, nunca! O sorriso de minha aluna que também é mãe me desarma, o filho dela esteve doente e agora tudo está bem, ela levou o filho ao médico e me agradeceu por remarcar a aula. Aproveitei o momento para falar do meu Gato, ela me ouviu atentamente e sugeriu que eu cuidasse disso. Respondi: amanhã. Sim, eu me preocupava com Sheldon, mas uma intuição fortíssima me dizia que algo bom poderia acontecer e que, se acaso realmente ele estivesse sofrendo, seria bom esperar, ele aguentaria.

Entrou em sala meu aluno das duas da tarde. Peço licença para atender um próximo telefonema, não tenho intervalo e o aluno poderá esperar um minuto. No celular é minha noiva que também é professora. Conto rapidamente a história, simplesmente um desabafo. Ela se preocupa comigo, mas eu não posso falar muito, o aluno me espera e eu pensava comigo mesmo: amanhã... Tenho paixão pelas histórias desse aluno. Ele também é compositor, tem apenas quinze anos de idade e suas músicas são canções, poemas. A identificação é grande e ele confia em mim. Suas músicas são excelentes, o nome dele é Matheus. Conto o quanto admiro seu empenho e desenvoltura, mas alerto a necessidade de estudar sempre mais. Ele é humilde, não sabe o quanto é bom. Penso comigo mesmo que essa humildade tem seu lado positivo.

Estou com pressa. Não pude explicar os motivos da corrida ao aluno Matheus, mas eu sabia que deveria chegar às três horas e dez minutos na aula de análise musical com o trabalho em mãos. Não compreendo muito bem essa aula, acho o professor simpático, mas não entendo suas divagações. Ele mistura artes, história, filosofia, sociologia, vivências... Tudo isso para explicar partituras! Mas eu estava empenhado em aprimorar meus conhecimentos. Cumprimentei o professor Fernando Mattos e tomei assento. Tentei ao máximo focar minha atenção, o sofrimento de Sheldon me desconcentrava. O professor analisava uma fuga marcha-rancho para piano de Edino Krieger. A peça era linda e isso me deixou aliviado. Alguém ao meu lado comentou dos vídeos que o professor Fernando Mattos postou em sua página pessoal, apresentando seus gatos bebendo água. A aula ficou interessante, Fernando Mattos também gostava de gatos! Lembrei do texto/poema de Artur da Távola: “Ninguém em toda a natureza aprendeu a bastar-se em si mesmo como o gato”. Uma lágrima correu, fingi, foi cisco. A aula ficou ainda mais interessante e a análise musical finalmente fez sentido. Pude comparar os procedimentos compositivos de Edino Krieger aos meus conhecimentos musicais, tive ideias de composição e... num piscar de olhos... a aula acabou.

Esperei o amontoado de gente que aguardava para falar com o professor. Menti: professor, adorei os vídeos dos seus gatinhos! Foi uma tentativa desesperada de orientação, meu gato sofria, eu precisava falar sobre gatos. Ajudei o professor a carregar suas coisas para o carro e falamos sobre o problema de Sheldon. Fernando Mattos abraçou o assunto, ficou intrigado com a necessidade da veterinária de sacrificar o gato, não era comum, ele conhecia veterinários excelentes. Segundo sua orientação, rapidamente devo procurar outras opiniões, era estranho aquela veterinária se interessar tanto pelo sacrifício de Sheldon. Quanto carinho tive por aquela orientação! Tive vontade de dar um abraço naquele professor que também estava com pressa e parou tudo que estava fazendo para me ajudar a pensar em uma solução para o problema do meu gato. Eu estava atrasado para o meu aluno das seis da tarde. Tudo bem, ele pode esperar um pouco, devo ligar para a veterinária. A ordem é clara: não faça nada, vou buscar o Sheldon depois do trabalho, não interessa o quanto ele sofre, ele aguenta. Essa foi minha intuição e eu estava certo, Fernando Mattos orientou. Eu devia seguir sua orientação, deveria procurar outros veterinários, a vida de um gato é muito importante! Fernando Mattos possivelmente está certo, ele sabe tanto de vários assuntos, mistura artes, história, filosofia, sociologia, vivências... vai dar tudo certo!

Meu último aluno é nove horas da noite. Eu já estava ansioso, a clínica me esperaria para pegar o Sheldon e eu já o levaria para outro veterinário. Enfim, muitas aulas/horas se passaram naquele dia e, simplesmente, tive que atender meu último aluno. Somente o conhecimento é tão importante quanto a vida, pensei. Eu deveria ministrar essa última aula. Lembrei novamente: “Ninguém em toda a natureza aprendeu a bastar-se em si mesmo como o gato”. Fiquei certo de que estava dando o melhor de mim naquele dia, assim como em muitos outros. Aquela última aluna que não lembro o nome, indicou um outro veterinário que havia lutado bravamente para salvar seus animais, eu poderia confiar. Nessa altura todos em minha volta sabiam do problema de Sheldon e me ouviam pacientemente. Peguei o contato do novo veterinário e combinei tudo, faria a transferência de clínica hoje mesmo.

Quando cheguei para resgatar meu gato, a veterinária abriu a gaiola e Sheldon pulou no chão e se esfregou insistentemente em minhas pernas. Ele estava bem! Eu estava certo, Fernando Mattos também. Transferi Sheldon, tudo correu bem.

Hoje já faz um ano. Acordei com algumas lambidas e fiquei muito feliz em ter o Sheldon ao meu lado. Ainda sou professor, ainda estudo e quero que seja sempre assim. Tive que escrever.

Todos os dias aprendo a importância de ser Professor

A vida tem um sabor diferente. Não ensino uma única matéria. Nego o conhecimento engessado. Quem me ensinou isso foi o professor Fernando Mattos. Ele me ensinou muitas coisas e tantos outros professores também! Ele é um pouco responsável por Sheldon estar vivo.

O ofício de Ser professor engendra Vida.

Com carinho dedicado ao amigo Fernando Mattos